“Nobody Shares Anymore”

Mike Rugnetta é um dos dinossauros da internet. Ele está há tanto tempo nela, e já observou tantas das transformações da internet, que ele é quase uma parte da história da própria internet. Ele ajudou a criar o formato de “vídeo-ensaio” com o Idea Channel e, depois de alguns anos sem aparecer muito no YouTube, ele voltou com alguns vídeos bem despretenciosos sobre temas que o interessam. Algo como um vlog, mas mais bem escrito.

Em “Nobody Shares Anymore”, ele observa como as redes sociais pararam de enfatizar as palavras como compartilhar em suas páginas iniciais, e como os seus usuários também pararam de “compartilhar”, e dá uma série de motivos para esse movimento de como redes sociais se transformaram em mídias sociais.

Que ele continue observando e documentando essas transformações na internet por muito tempo.

Ninguém está bem

Bill Harder em “Barry”, da HBO.

As cenas de assassinato na série Barry são longas — a tensão cresce lentamente, junto com o desespero das vítimas, que percebem estar na mira de um predador e que dificilmente sairão dela vivos. Mas não é por isso que a terceira temporada da série é tão difícil de assistir.

Barry é uma comédia, com um humor que se alastra, como um temporal, sobre a imagem. As vezes você nem percebe como uma piada está sendo construída bem na sua frente, até que ela explode com suas consequências, trazendo um pouco mais de pavor para a vida de seus personagens. Esse pavor é um verdadeiro vapor emocional sobre eles: Barry e Sally nunca estiveram tão infelizes em seu relacionamento, nunca esconderam tanto um do outro, e nunca estiveram tão próximos. Mesmo assim, uma insatisfação intangível, um desespero de que tudo está caindo fora do combinado ao mesmo tempo que nada parece estar acontecendo, corrói a alma dos dois.

E Barry parece não ser a única série que, em 2022, decidiu observar esse vazio de sentimentos corrosivos. Ruptura, a nova série da Apple TV+, usa esse vazio explicitamente. Nela, um grupo de funcionários de uma empresa misteriosa aceitam passar por um procedimento cirúrgico que divide suas memórias: quando estão no trabalho, eles não lembram de nada da sua vida fora da empresa; quando eles saem de lá, eles não lembram de nada. Seja no escritório ou fora dele, os personagens de Ruptura estão sempre com um sentimento em comum de que algo está faltando — algo indescritível, mas bastante perceptível. Algo, algum sentimento, uma sensação ou uma memória, que estava ali e não está mais.

Tanto a terceira temporada de Barry quanto Ruptura parecem fazer parte de uma segunda onda de arte criada na pandemia da Covid-19. Se na primeira nós vimos obras sobre como é viver em isolamento ou procurar criar alguma conexão em meio a esse isolamento (como a magnífica segunda temporada de Betty e a misteriosa Calls), agora nós vemos obras observando os efeitos desse isolamento e da tragédia.

Não é pouca coisa. Nesses dois últimos anos vimos muito do que idealizamos como sociedade ruir. Falando especificamente do Brasil, fomos impedidos de nos proteger, de enterrar nossos mortos e de nos enlutarmos. Tivemos nossas vacinas negadas por meses, e então tratadas como privilégio. No mundo, vimos a indiferença generalizada aos milhões de mortos, as tentativas de fuga dos bilionários para o espaço, a destruição crescente dos recursos naturais do nosso planeta. Tudo isso — tudo isso — enquanto tentávamos nos adaptar: pessoas precisam trabalhar por menos para comprar comida cada vez mais cara; o sucateamento acelerado da infraestrutura social, causada pelos primeiros dois anos de pandemia, agora cobra seu valor desprovendo aqueles que dependem dela. Aqueles que sobreviveram à pandemia, ao frio e à fome que ela tornou ainda maior.

Então… o que foi perdido? O que é esse vazio que a gente percebe agora, que a gente sabe que sempre esteve, de alguma forma, com a gente. Mas que agora, em que o mundo parece simplesmente continuar girando, é incapaz de ignorar.

Tanto Barry quanto Ruptura observam pessoas percebendo esse vazio absurdo em suas almas, sem necessariamente dar uma resposta de como fugir dela. Existem pistas: algumas pessoas ao redor de nossos protagonistas encontram um balanço entre esse desconforto e a vida que decide continuar. Eles procuram comunidades — amigos perdidos no tempo, familiares antes distantes. Nosso protagonistas não conseguem. Eles não conseguem ignorar esse vazio, e esse vazio só fica maior. Nada parece preencher ele.

Esse sentimento não é novo, nem na vida nem na arte. O vazio existencial trazido pela percepção de que o Homem, a Terra e nem mesmo o Sol são o centro do universo paira sobre nosso íntimo há séculos. A dor de saber que todo esse sofrimento, e também toda a nossa felicidade e nosso amor, são apenas vírgulas na história da poeira cósmica que nos formou e na qual vamos nos transformar depois que morrermos. Nós sabemos, nós enfrentamos essa frieza da existência todos os dias. Mas por que agora, nesse exato momento, parece que todo o mundo está enfrentando ela?

Eu acho que a melhor descrição do que é estar vivo nesse momento vem durante End of Empire, a faixa central de WE, o novo disco do Arcade Fire. A música — um épico de nove minutos sobre um futuro em que o mar tomou o oeste da América e a guerra dizimou o leste — traduz tanto o que torna a música da banda tão especial, mas também a dicotomia do que estamos vivendo hoje.

De um lado, End of Empire descreve o que é viver nos escombros da civilização. É grandiloquente, mas também é honesto. Todos nós temos medo de vivermos a vida errada e então morrer. Temos medo de sentir, lá no fim, que a felicidade não foi suficiente, que o sofrimento não valeu a pena, que o medo foi grande demais.

Mas todas as melhores músicas do Arcade Fire manejam o inacreditável: pegar esses sentimentos íntimos e profundos e torná-los em algo grande o suficiente para poder gritá-los, como um hino, um grito de guerra. Quando a música encontra seu clímax, em “E o oxigênio está acabando, cante uma canção que costumávamos conhecer”, o tom sombrio do início da música dá espaço para o entusiasmo. A música termina com “Temos uma vida, e metade dela se foi”. O tipo de realização simples, mas universal, que as músicas da banda costumam concluir. São específicas o suficiente para serem universais demais.

Mas o que WE consegue como uma ficção científica, Barry com uma comédia e Ruptura com um suspense é fazer esse vazio se encaixar na sua fábrica emocional. O humor ainda existe em meio ao sofrimento de um assassino; os mistérios do dia a dia ainda assolam os empregados com as memórias apagadas; uma família ainda sobrevive nos escombros do fim do mundo, e encontram vestígios do carinho e do amor que existiu das pessoas que viveram nesse lugar antes de todo aquele sofrimento.

Eu não sei se existe uma cura para esse vazio. Provavelmente não. Acho que nós, como uma geração, vamos ficar com uma cicatriz do tamanho de um rombo em nossas almas, por termos vivido e sobrevivido a eventos terríveis, mesmo que de longe. Eu demorei para perceber o quanto as notícias terríveis, a injustiça sistemática e a solidão e o isolamento acabaram consumindo o meu bom humor e meu carinho, coisas que eu sempre achei que eram minhas melhores qualidades. Ali onde eles estavam ficou esse vazio.

Se tem uma coisa que essas histórias me fizeram perceber, porém, é que não sou apenas eu sentindo esse vazio. Ele sempre existiu, sempre vai existir, e a gente já aprendeu a conviver com ele uma vez. A humanidade evoluiu tanto e aprendeu tanto para saber que a história não gira em torno de si. Isso nos torna pequenos e insignificantes como poeira estelar vagando pela imensidão do vazio do universo. Se tem uma coisa que podemos fazer, juntos, é criar algo que faça sentido para nós nesse mero momento que temos de vida no meio desse vazio. Não é perfeito, mas a vida não seria interessante se fosse perfeita. Sortudos que somos.

Sobre linguagens

Eu perdi meu melhor amigo nesses últimos meses. Amizade é uma das coisas mais especiais da minha vida. Elas são as únicas relações que não se tornam mais escassas com o tempo. Nós continuamos disponíveis e suscetíveis às amizades por toda a vida. Nós escolhemos nos dedicar aos afetos e nossas famílias, mas sempre podemos fazer e perder amigos com o passar de todo esse tempo.

Eu sou uma pessoa feita pelos meus amigos. Eu sou um pouquinho de cada um deles, e eu deixo com cada um deles um pedacinho diferente de mim. Quando eu percebi que eu e meu melhor amigo estávamos nos afastando, meu coração se despedaçou como nunca antes, como eu nunca achei possível. Eu vi a vergonha nos olhos dele enquanto ele os desviava para me contar o que seria a pedra que estávamos colocando entre nós, e eu percebi que ele não queria que lutássemos contra ela como lutamos contra as outras. Esse era o fim.

Eu achei que eu ia chorar quando chegasse em casa naquela noite, mas eu não consegui. Ao invés disso, parece que tudo endureceu por dentro. Eu perdi meu amigo, a pessoa que por grande parte da minha vida foi a pessoa mais importante pra mim. Ele registrou o meu tempo como eu registrei ele. Quando a gente se via, eu sabia que ele entendia exatamente o que eu estava pensando enquanto ele me olhava, eu nem precisava dizer nada. Ele só sabia. Quando a gente tava junto, eu sentia que ele me via como a pessoa que eu queria me ver, aquele misto de orgulho e honra, e ele sabia que eu sentia o mesmo. Orgulho da pessoa incrível e fascinante que ele era, e honra de ser seu amigo e acompanhá-lo nesse tempo que estamos juntos no planeta. Quando acabou, eu perdi as palavras. Eu não sabia mais o que dizer nem o que escrever.

Amor é linguagem, é quase um idioma. A gente cria um sistema complexo de comunicação com outra pessoa — um misto de palavras, de gestos, de referências ocultas, de momentos só vividos entre os dois lados desse amor. E essa linguagem não deixa de existir quando as pessoas se afastam. Ela fica ali, esse conjunto de memórias e piadas e dores e palavras e tons que só duas pessoas entendem, e que você não vai poder usar com mais ninguém. Se você tiver sorte, como eu tenho, vai ter outras linguagens para usar com seus outros amigos, e essa vai só fazer companhia, as vezes vai voltar à mente e você vai lembrar de algum detalhe.

Nada substitui uma pessoa que foi especial para você. Acho que nem é saudável. Eu tentei, substituindo por casinhos de romance, que logo depois de conhecer já somem da nossa vista. Essas são sortudas. Você não cria nenhuma linguagem com essas pessoas. Você tem as suas, elas têm as delas. Mas ninguém conversava no mesmo tom que o meu melhor amigo. Ninguém me via como ele. Acho que ninguém vai ver.

Eu sempre escrevo pra alguém. É o meu modo de escrever. Eu imagino como eu contaria para a pessoa sobre aquilo que eu estou escrevendo. Geralmente, por todos esses anos escrevendo aqui, eu imaginava o Pão como um acervo de ideias e dicas e conversas que eu estava tendo com o meu melhor amigo. Eu não conversava sobre as coisas que eu escrevia aqui — geralmente nossos assuntos são outros —, mas eu imaginava que, se eu conversasse com ele sobre, ia ser dessa maneira. Isso me ajudava a me abrir, a buscar aqueles sentimentos e pensamentos que eu costumo ter quando estava com meu amigo.

Eu perdi isso. Eu genuinamente perdi o jeito de escrever. Eu não tenho mais as palavras que eu tinha, eu não tenho mais o tom nem aquela pontinha de inspiração que vinha as vezes. Eu não acho que ela vai voltar. Talvez algo diferente apareça. Um novo jeito de escrever, um novo jeito de me inspirar. Eu espero que sim. Eu não quero que esse lugar vire o registro de uma amizade do passado. Eu quero que ele seja um lugar que capture o meu presente e me lembre, no futuro, de tudo o que eu já amei e já senti.

Mas acho que isso demanda algum tempo. E eu preciso de um pouco de paciência.

Earth Clock

O Earth Clock é um relógio formado por imagens da superfície do planeta Terra que parecem com números (e com o sinal de dois pontos, é impressionante quantos lugares no mundo parecem com dois pontos vistos do céu).

O site é desenvolvido pelo estúdio de projetos experimentais da web CW&T. Você também pode baixar esse experimento como um protetor de tela para o macOS.

The HTML Review

The HTML Review é uma seleção anual de literatura feita para existir na web. Eu adorei a ideia desse projeto.

Na web a gente usa o hipertexto para nos comunicarmos. O hipertexto é único da web, a gente não pode fazer ele no mundo real, porque suas interligações (os links) são próprios da descentralização digital na qual a web foi fundada.

Mesmo assim, muito do que a gente lê na internet usa muito pouco dos recursos mais únicos do hipertexto. Essa última década a web pareceu regredir ainda mais nesse sentido. Ao invés de experimentarmos mais, estamos cada vez menos explorando as possibilidades do hipertexto como formato, reduzindo-o à representações reais do texto convencional: sites de revista parecem revistas, sites de jornal se comportam como jornais de papel. Instagram sequer aceita links nos seus posts.

O The HTML Review é um movimento contra isso. O próprio site é algo visualmente único da web, e os textos que ele destaca, como “GUESS WORDS” só poderiam fazer sentido num navegador.

Eu já favoritei esse site e salvei ele na minha barra de favoritos. Eu mal posso esperar pela próxima edição, no ano que vem.

Hoje é o “Dia de olhar para o céu”

Eu não sei aí onde vocês moram, mas aqui o céu estava lindo hoje. Pelo visto tinha um motivo, hoje é o Dia Nacional de Olhar Para O Céu em alguns países do mundo.

Eu descobri essa “data” e o detalhe da pintura acima nesse post da Biblioteca de Belas Artes de Harvard. O quadro é de autoria de John Constable, conhecido por seus estudos sobre o céu, que ele acreditava ser “o padrão para a escala, e o principal fator para o sentimento”.