Group Listening — “Walks”

Eu não sei como eu descobri Group Listening. É um duo que faz músicas ambiente, mas eu não lembro se me recomendaram ou se eu acabei descobrindo enquanto procurava músicas para trabalhar de manhã.

Enfim, o novo trabalho do Group Listening é “Walks”. Faz jus ao nome: é uma trilha sonora perfeita para caminhadas.

Nesses últimos anos, principalmente desde que comecei a morar sozinho, caminhar se tornou a minha atividade favorita. Mais que ler ou ver filmes, caminhar é algo imprescindível pra mim. Eu preciso colocar os pés no chão e simplesmente caminhar. Parte disso é por que eu trabalho em casa e, se eu deixar, eu não saio do meu apartamento nem vejo ninguém por dias a fio. Quando eu comecei a enlouquecer com isso, eu comecei a caminhar. Eu saía na rua e caminhava para qualquer lugar que me levasse. As vezes eu ia para a Casa de Cultura ou pra Redenção. Geralmente, eu só caminhava.

Eu continuo fazendo isso — no fim do meu turno de trabalho, eu coloco os meus tênis e saio. Eu tento caminhar duas horas por dia, todos os dias. Alguns amigos falam que é muito, e que vai me fazer mal (na verdade, eu desenvolvi uma hérnia por causa disso).

Mas caminhar é uma necessidade básica pra mim. Eu preciso sentir o vento, e ouvir o movimento do mundo ao redor. E essas duas impressões são capturadas muito bem em “Walks”: nem todos os instrumentos que Group Listening usa nas faixas são claros de ouvir, e é algo especialmente bonito. Parece muito com aquele momento no fim do dia que a cidade está voltando para casa, mas ainda tem bastante movimento na rua: você ouve muito mais o som do trânsito, mas lá longe você ouve o ruído das pessoas nas suas casas também. As vezes vem um cheiro — uma janta sendo preparada, um banho sendo tomado.

“Walks” captura essa sensação que é muito especial pra mim — e o melhor, não só no mato. Embora eles usem sons da natureza em algumas faixas, “Walks” também oferece músicas para caminhadas nas cidades, e até mesmo em shoppings. São sons mais eletrônicos, como esperado, mas não são intensos. É uma variedade importante: caminhar não é uma constante, existem momentos que você tem mais impulso e outros que tanto seu corpo quanto seus arredores pedem para você ir mais devagar, para sentir o contrapasso do seu pé no solo e do solo no seu pé. Tá aí um disco que captura bem esse momentinho em meio a tudo o que acontece ao redor.

Histórias de fantasmas

Os filmes de Andrew Haigh são repletos de ausências, de pessoas que não fazem mais parte da vida dos personagens que acompanhamos. Por todas as cenas de 45 Anos, Kate percebe o quanto o “fantasma” da ex-namorada de seu marido assombrou sua vida, décadas depois de sua partida. O clímax de Weekend acontece quando Russell consegue falar para Glen algo que ele queria muito falar para seus pais, que nunca conheceu; e o último segundo de Charley em A Rota Selvagem é com ele finalmente olhando para trás, se deparando com o luto que ele fugiu no filme inteiro — tanto da morte de seu pai quanto de seu amigo.

Então parece natural que Andrew Haigh finalmente tenha feito uma história de fantasma no seu belíssimo Todos Nós Desconhecidos, em que um roteirista começa a visitar a casa em que cresceu e acaba encontrando nela seus pais, mortos em um acidente de trânsito quando ele tinha doze anos. Não surpreende, inclusive, a naturalidade com que Haigh filma esses encontros — a estranheza não está na forma, mas na falta de jeito que um filho adulto tem de falar com seus pais depois de um longo período de tempo. Os fantasmas finalmente dominaram o cinema de um diretor fascinado pela influência deles em seus personagens.

O que difere Todos Nós Desconhecidos dos filmes anteriores de Haigh, porém, não é apenas em olhar diretamente para esses fantasmas, ao invés de observá-los agir na sombra da vida de seus personagens. O protagonista, Adam, é assombrado pela ideia de seus pais em sua cabeça, pela ausência e tudo o que não foi dito ou não compreendido entre eles enquanto eles estavam vivos, enquanto eles eram uma família.

A cada encontro, seus pais conhecem um pouco de quem Adam se tornou, mas ele também tem a oportunidade de saber um pouco mais sobre eles como pessoas completas — o que sua mãe achava de seus avós, ou o que seu pai pensava sobre sua mãe. É um marco no nosso amadurecimento, parar de enxergar nossos pais como partes de nós para vê-los como as pessoas que são, com suas falhas e fissuras, manias e humores. Haigh monta com tanta habilidade essas relações que você consegue perceber rapidamente, mesmo em uma conversa entre vivos e mortos, que muito fica não dito entre eles.

Não existe paz na melancolia de encontrar, em nossos sonhos, os os fantasmas de pessoas que amamos. Eles não nos confortam, nem resolvem nada em nosso íntimo saber que uma parte deles ainda está em nós. Se tudo, esses encontros esvoaçados — que Haigh traduz tão bem aqui em planos lânguidos, filmados através de espelhos ou de janelas — trazem saudade, e a incerteza do que essas pessoas pensariam de nós se nos conhecêssemos como somos agora. Sentir a ausência deles só reforça aquela sensação de que estamos, de fato, sozinhos nesse mundo.

Todos Nós Desconhecidos inverte os papeis dessas histórias no cinema de Haigh. Agora, essas ausências são o norte do filme, enquanto a relação entre Adam e seu vizinho, Harry, é construída às margens dessas visitas do roteirista aos fantasmas de seus pais. Como Adam, Harry é uma pessoa solitária, com muito não dito para as pessoas que já foram próximas a ele. Resta aos dois tentarem, entre eles, retribuir um pouco do conforto que não sentiram em lugar nenhum.

Haigh filma essa história de amor com uma melancolia e um melodrama que eu nunca vi no cinema dele até então — seus personagens estão sempre refletidos em superfícies, como se estivessem semitransparentes, se unindo à arquitetura do prédio distópico em que vivem. Eles ganham corpo no toque um do outro, na intimidade que compartilham. Até mesmo os fantasmas ficam mais físicos quando Adam troca um abraço com seu pai, ou deita na cama ao lado da mãe.

E é tão lindo ver como Adam percebe como esse seu luto o isola do mundo mais do que os seus fantasmas o isolaram. Não é por causa deles que ele sente essa solidão — pelo menos, não a que ele sente agora. Mas talvez, ao aceitar o vazio que existe em si, Adam finalmente possa se sentir completo, e possa olhar e abraçar a pessoa ao seu lado. Todos nós estamos sozinhos nesse mundo, de certa forma. Mas tudo o que podemos fazer é enxergar o próximo em sua próxima solidão, e ajudá-lo a enxergar que estamos juntos nesse desconhecido. Sortudos, todos nós.

Eu ainda estou feliz que “Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo” levou o Oscar de Melhor Filme

(Uma apreciação com um ano de atraso).

Cena de “Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo”: uma pedra com olhinhos adesivados no alto de um cânion.

No início de 2022 eu recebi uma mensagem de um amigo que mora em Los Angeles, Joseph, me recomendando um filme. Eu sabia que Joseph estava trabalhando como assistente em um filme para a A24, e ele me explicou que tinha acabado de sair de um corte de trabalho dele. Eu fiquei bem contente com a notícia — meu amigo estava feliz com o trabalho que ele fez! —, até que ele me explicou que o projeto, a nova produção dos Daniels, seria o filme do ano: a história de uma mulher que atravessa todas as realidades paralelas do multiverso para salvar a filha de uma depressão que, ao que tudo indica, ela ajudou a acarretar. Joseph acompanhou a recomendação com um aviso: eu devia tentar ir no cinema, e assistí-lo com o maior número de amigos que eu conseguisse.

No início, eu achei que isso era uma estratégia de marketing — meu amigo estava me pedindo para levar mais gente para fazer minha parte em melhorar a bilheteria de um filme em que ele fez parte — mas foi só ver Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo que eu entendi o que ele queria dizer. O novo filme dos Daniels era um evento, e grande parte da diversão de acompanhar eventos assim é testemunhar a exaltação que ele provoca em sua plateia. E Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo não decepcionou. Quando eu vi ele com uma amiga durante uma viagem para Curitiba, o cinema estava cheio em uma sessão no meio da tarde de um dia de semana, e as reações da plateia eram imensas: pessoas se levantavam da cadeira para conseguir rir com mais força, e outras choravam sonoramente no final do segundo ato. É um filme vertiginoso, sem medo nenhum de explorar sua criatividade imensa que a história propõe com técnica de sobra — lutas de kung-fu (!), realidades paralelas em que a humanidade possui uma forma física diferente (!!), diálogos metafísicos entre piñatas (!!!!!!!!). Joseph tinha toda a razão.

A trajetória de Tudo em Todo Lugar foi meteórica. Embora não tenha sido o arrasa-quarteirões na bilheteria como Joseph previu, o filme cresceu organicamente tanto com críticas quanto com o boca-a-boca até que venceu grande parte das premiações de cinema americano no início de 2023. Como grande parte dos filmes com uma carreira semelhante, as pessoas que não concordam com os méritos dele ficaram mais audíveis, com críticas de que o filme não é tão profundo assim, ou que a forma como lida com a natureza da relação entre a protagonista e sua filha não tem muitas nuances. Um filme com tantos problemas como esse, em um ano em que um filme adulto e maduro como Tár, uma jornada íntima pela memória de um dos maiores diretores como Os Fabelmans, ou uma fábula implacável e precisa como Os Banshees de Inisherin concorriam seria mais uma prova da incapacidade da academia de cinema americana de reconhecer um grande filme quando vê um.

Porém… aqui vai o meu argumento, às vésperas de uma edição que com certeza vai deixar escapar o melhor filme (Segredos de um Escândalo) ou o filme do ano (Barbie), de que o prêmio de Melhor Filme para Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo é uma das raras circunstâncias do Oscar ter acertado. Eu não concordo que ele seja o melhor filme da lista de indicados (esse mérito fica para Tár, na minha opinião), mas tem vezes que o grande reconhecimento da noite precisa ir pro filme que captura uma geração. Não reconhecer o que Tudo em Todo o Lugar faz seria cometer o mesmo erro que o Oscar cometeu em 2000, quando deu o prêmio a Beleza Americana e deixou Matrix, o evento cinematográfico do ano, e de uma geração, sem sequer uma indicação a Melhor Filme.

Cena de “Matrix”: um plano fechado do rosto de Morpheus, com o reflexo de Neo, do outro lado da mesa, refletido em seus óculos escuros.ALT

A comparação com Matrix não é em vão. Tanto o clássico das Wachowskis quanto o filme dos Daniels têm semelhanças — a influência dos filmes de kung-fu e um apreço pelo cinema de Hong-Kong; questionamentos sobre a interpretação humana sobre o tecido do espaço-tempo que usamos para decifrar o que é “realidade”, e o que faz o “eu” e a nossa ideia de “identidade”; um interesse genuíno em usar efeitos especiais de maneiras inventivas. Mas eles também são filmes que conseguem capturar com perfeição o tempo em que são feitos.

Matrix previu, com muita precisão, a forma como a internet mudaria nossa percepção de nós mesmos e a “ameaça” que algoritmos causariam na nossa sociedade. Com Tudo em Todo o Lugar, os Daniels conseguem capturar a amargura inter-geracional que resulta na ansiedade e depressão que assolam as gerações mais novas, um misto de decepções e medos alimentados tanto pela ideia de não sermos quem queremos ser, quanto pela ideia de tudo o que poderíamos ser se algo tivesse sido diferente.

Eventos cinematográficos assim, que atingem um grande público de uma maneira acessível sem abrir mão da realização estética, são cada vez mais raros. Eles já eram anormalidades quando Matrix foi lançado em 1999, e se tornaram ainda mais únicos depois de uma década em que os grandes estúdios estado-unidenses aperfeiçoaram suas franquias até as tornarem grandes veículos automáticos com suas fórmulas precisas e sem inspiração. É claro que Tudo em Todo o Lugar não corta tão profundamente quanto a dissecação provocada por Tár, mas ele nem precisa fazer isso para revelar a humanidade de suas personagens. A exaltação divertida e inventiva de todas as possibilidades nos faz entender quem elas são, mas é na compreensão de que todos esses universos são vistos (por Evelyn e Joy) como uma frustração de cada ideia que não seguiu em frente ou de um sonho que não foi realizado, que os Daniels entregam, como as Wachowskis entregaram há mais de duas décadas, um misto de filme de ação com um questionamento genuíno sobre a vida que vivemos.

O Oscar vai falhar esse ano nessa missão: Barbie, um outro filme-evento que atingiu o público em massa sem abrir mão da visão de sua diretora, e eu tenho minhas dúvidas se o prêmio vai para os “melhores filmes” do ano, como o imenso Assassino da Lua das Flores, o precioso Vidas Passadas ou o inclassificável Segredos de um Escândalo. O Oscar tende a ficar no meio do caminho — alguém lembra quando ele tinha a opção de premiar um evento como A Rede Social mas escolheu O Discurso do Rei; quando não teve coragem de premiar um filme de ação como Estrada da Fúria para premiar um filme insosso como O Regresso; ou quando deixou Pantera Negra e Roma de lado para premiar Green Book? Raramente o prêmio principal me agrada, e não necessariamente porque ele não se alinha com o melhor filme do ano na minha opinião (eles raramente são sequer indicados), mas porque ele costuma ser covarde demais para reconhecer quando o filme do ano também se dá o luxo de ser bobo e bagunçado e confuso e estranho. Ano passado, como meu amigo Joseph um ano antes, a academia finalmente acertou.

(Eu sei que esse post tá com um ano de atraso, mas o meu bloqueio na escrita finalmente parece ter acabado!)

Deixa eu começar os posts desse ano com uma dica rápida de música. Parte da trilha-sonora de Tears of the Kingdom, o tema do céu (longa história) é esparso e transmite muito bem o que é passar horas brincando sozinho no meio do campo (longa história também, mas eu vivi isso). É uma lembrança que eu não estava esperando quando joguei o novo Zelda, mas foi muito bem vinda — e traduz um bocado o que é a experiência de jogar ele.

As cinco melhores coisas de 2023

Link, de "The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom" conduz Mollie, de "Assassinos da Lua das Flores", no carro da Barbie. "2023" pode ser visto ao fundo.

Duas coisas que percebi fazendo a lista de fim de ano do Pão em 2023:

  1. Minha dieta cultural esse ano foi bem rala. Um pouco culpa do trabalho. Um pouco culpa de Eventos Acontecendo Em Minha Vida (contas).
  2. Eu desaprendi a escrever. Meu maior norte (conte o que acontece, não o que faz) ao escrever minhas resenhas não acontece nas cápsulas a seguir. Me desculpem, eu estou destreinado.

Eu escrevi pouco em 2023. E escrevi menos ainda sobre cultura em 2023. Não é culpa do que eu vi, joguei, li, ouvi, cliquei, etc. Escrever é terapêutico pra mim, mas muito desse último ano eu me descuidei da minha saúde mental, de desvendar o que eu estou sentindo. Eu também fui perdendo, aos poucos, a vontade de falar o que eu estou sentindo ou o que eu experimentei. É algo que eu quero mudar em 2024, e espero que meus queridos leitores, fieis escudeiros, estejam dispostos — eu estou empolgado para uma penca de filmes que vão estrear nos próximos três meses! Espero que estejam preparados para minhas péssimas opiniões!!

Enfim… não foi um ano ruim. Eu consegui realizar meu plano de assistir filmes majoritariamente no cinema, por exemplo. E de jogar quase todos os jogos que eu quis jogar. Eu tive tempo, e eu tive disposição. Mas eu não sei o que houve, mas na maioria das vezes eu não tinha palavras pra descrever o que eu sentia. É pura falta de prática. Como corrida, que eu também parei na segunda parte desse ano, eu só preciso exercitar um pouquinho mais pro ritmo das ideias voltarem. Eu só preciso me organizar. Eu planejo me organizar. Só essa semana eu escrevi bem mais que meses inteiros nesse último ano! Eu tô empolgado por 2024. Vocês acreditam que o blog vai fazer onze anos? Foi nessa idade que eu aprendi a ler!


O filme: Assassinos da Lua de Flores

Lilly Gladstone e Leonardo DiCaprio em cena de "Assassinos da Lua de Flores": Gladstone, no banco de trás, é conduzida por DiCaprio, no banco do motorista, em um carro dos anos 1920.

(Martin Scorsese, 2023). Todo ano eu fico com esse questionamento. Meu filme do ano é a melhor experiência que eu tive no cinema (Barbie)? Ou é o filme que mais me deu material pra pensar (Tár)? Ou é o filme que simplesmente me conectou àquela cinefilia adormecida dentro de mim (Showing Up)?

Assassinos da Lua de Flores não é nenhum desses casos. Mas é o meu filme do ano. O filme que eu saí do cinema sabendo que uma parte de mim mudou, que uma parte de mim nunca tinha visto nada igual. Em parte, porque é um dos meus tipos de filme favorito: parece ser uma coisa, mas Scorsese está fazendo outra. E, quando a gente percebe o que ele está fazendo, o filme se abre na nossa frente. Parece mais um dos seus filmes de gângster, mas Assassinos da Lua de Flores é muito mais. É uma história de amor doentio, de uma ganância monstruosa, da beleza arrancada e perdida dos povos nativos. Tudo isso sob os olhos da melhor atriz de sua geração, com Lilly Gladstone entregando ondas de emoção inteiras através de seu olhar, impenetrável e dilacerante.

Tudo isso. _ Tudo isso _ enquanto Scorsese se questiona, o tempo todo e humildemente, se ele é capaz de contar essa história como deveria ser contada. Se ele tem o que é capaz de ver através dos olhos de sua protagonista como ele queria tanto ver. Se ele fez jus à história dela. Nem ele, o grande mestre do cinema ainda vivo, sabe responder. É uma cicatriz que ele deixa à mostra para seu espectador.

E também:

Barbie (Greta Gerwig, 2023). Provavelmente o filme do ano? Eu sou fascinado pelo cinema de Gerwig, que com apenas três filmes já tem o que é provavelmente a melhor adaptação de um livro para a tela, e agora esse feito inacreditável de um filme realmente questionador, usando o dinheiro de uma mega-corporação. Na primeira vez que eu assisti, ficava me perguntando como a Mattel permitiu um filme desses. Mas foi na segunda, no natal com minha família, que eu me deparei com o filme muito sensível que existe por baixo do conceito de fachada. Uma dramédia às avessas sobre pessoas não aceitando seu espaço na sociedade, e como elas agem para mudar. Umas se fingem de mortas, outras criam o patriarcado, outras conversam umas com as outras e mudam de pouquinho em pouquinho. Quero que o Caetano cresça com esse filme por perto.

Monster (Hirokazu Kore-eda, 2023). Até dezembro, Assassinos da Lua de Flores tinha o meu final favorito do ano. Mas Kore-eda fez o que eu achei impossível: um filme tão bem construído que a mera ideia de um final feliz parece um sonho. Não é só de final que Monster se sustenta, é claro. Talvez o melhor roteiro que eu já tenha visto em tela desde que David Fincher encarou o Facebook, aqui vários pontos de vista se juntam para moldar uma história que eu acharia um crime dar mais detalhes. Grande parte da beleza desse filme tão sensível, tão delicado, está na forma que Kore-eda desdobra-o em nossa frente, com sua precisão estética igualmente sensível. É avassalador, mas também sabe ser belíssimo.

Showing Up (Kelly Reichardt, 2022). Não tem nem previsão de estreia no Brasil, mas Showing Up é mais uma obra-prima de uma diretora que nunca fez um filme menos que impecável. Eu escrevi no meio do ano como esse filme parece conversar com uma parte de mim que acredita no processo artístico como uma forma de arte em si. Mas Showing Up não é tão chato: é uma comédia sobre uma mulher querendo fazer arte, mas a vida se intrometendo no meio. E é nesse vai-e-vem de vida e trabalho que Reichardt, com a ajuda de sua grande escudeira Michelle Williams, encontra sua arte. A arte do processo, das pequenas coisas, que se constroem devagar. Que preciosidade de filme.

Tár (Todd Field, 2022). Nenhum filme esse ano me deu material como o novo do Todd Field. Tár é um colosso de cinema, daqueles poucos filmes que tudo reverbera, que é difícil de apontar e classificar. E, ainda assim, é bem claro sobre o que ele quer: dissecar a alma de uma regente no topo do mundo, no seu poder máximo. Quando se tá no topo, porém, o único movimento possível é a queda. E Tár dá tons operísticos à queda de sua personagem título (Cate Blanchett, em uma performance pra vida toda). O verdadeiro filme ruminante — pra ficar mastigando por meses após visto.

O jogo: The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom

Captura de tela de "The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom": Link, um menino loiro, com traços e esguios, corre por uma ilha no céu, com uma relva dourada e ruínas no horizonte.

(Nintendo, Switch). Eu me debati muito se Mario ou Zelda levariam esse ano, mas foi em uma breve conversa com o Erê, a qual transcreverei abaixo, em que isso foi decidido:

Arthur: É Mario ou Zelda?
Erê: Zelda, né?
Arthur: É, é Zelda.

Significativo, porque Tears of the Kingdom, a continuação do monumentalBreath of the Wild, só fez sentido pra mim quando eu compartilhei o controle com o Erê, e nós tivemos algumas das madrugadas mais divertidas que eu tive em anos. Não só pra ver o que é possível de fazer nesse jogo gigantesco, mas também pra poder dividir essa aventura com alguém. TotK é um jogo de se criar histórias — sobre como você subiu aquela montanha, ou como construiu algo para enfrentar aquele quebra-cabeça — e depois contá-las, compartilhar notas e descobertas. É um jogo comunal, como seu antecessor foi, que expande e aprofunda os conceitos de BotW. Nem sempre de maneiras necessárias, mas sempre inesquecíveis.

E também:

Cocoon (Geometric Interactive; PlayStation, Switch, Windows, Xbox). Como seus antecessores, Limbo e Inside, Cocoon maneja entrar na sua mente. À primeira vista, parece ser um daqueles jogos que se joga automaticamente, que as respostas para seus quebra-cabeças são fáceis demais, ou lineares demais. Mas é a pura alquimia do próprio jogo: de apresentar seus conceitos tão bem e espaçá-los com uma cadência precisa para fazer você pensar na velocidade que seus desenvolvedores delimitaram. É uma delícia de jogar. De uma fluidez de botar inveja em muitos arrasa-quarteirão por aí.

Japanese Rural Life Adventure (GameSTART, Apple Arcade). Obrigado Victor, que me apresentou esse jogo depois de eu (finalmente) aposentar minha ilha em Animal Crossing. JRLA é, acredite, um Stardew Valley aperfeiçoado. Um simulador rural simples, mas charmoso, que me fez perder horas do meu dia enquanto eu tentava coletar bambu o suficiente para construir meu templo. Me fez querer ir morar numa fazenda no Japão, e a me questionar se minhas preocupações são realmente preocupações. Tá aí um novo objetivo de vida.

Lil Gator Game (MegaWobble; macOS, PlayStation, Switch, Windows, Xbox). Não foi só Breath of the Wild que ganhou continuação esse ano. Outro jogo seminal dos anos 2010, A Short Hike, ganhou uma sequência espiritual com esse jogo de aventura carismático e delicado. Inspirado em BotW e, de maneiras peculiares, Link’s Awakening, Lil Gator Game é uma aventura sobre um irmão se deparando com uma irmã que cresceu para além de suas brincadeiras de infância. Curtinho e lindo, foi uma boa entrada para o mundo deZelda antes de Tears of the Kingdom chegar.

Super Mario Bros. Wonder (Nintendo, Switch). Esse é o melhorSuper MariodesdeSuper Mario World (e tenho dito!!!), um jogo pingando criatividade e genialidade, imenso sem ser maçante. O único jogo que eu joguei esse ano em que eu cogitei que, talvez, tivesse superado TotK em sua engenhosidade. Em alguns momentos, eu ainda acho que sim. É tão — mas tão — divertido, de maneiras completamente inesperadas, que foi como jogar um Super Mario pela primeira vez outra vez. Que tipo de feito grandioso, e impossível, é esse?

A música: The Great Collapse

(Joe Hisaishi, The Boy and the Heron). Sabe o que eu mais gosto nos mitos de criação? Como eles dão precisão para os verbos mais complicados. Atos como criar a luz, ou assoprar a vida, são maiores do que a minha cabeça pode compreender. Mas eles trazem essa complexidade inteira com um toque de fascínio, de mágica.

Foi exatamente o mesmo sentimento, de excitação, de presenciar essa mágica primordial que dá vida e que cria sentido, que eu senti ao ouvir The Great Collapse, uma das músicas que Joe Hisaishi compôs para O Menino e a Garça, pela primeira vez. Como ver alguém dobrar um origami na frente dos meus olhos pela primeira vez. Ver algo que eu não sabia o que seria ganhar forma, e então significado. Eu não sei exatamente o que é isso que se cria ao ouvir essa música. Mas ele é real, eu sinto ele no fundo do meu peito. No infinito da minha mente.

E também:

A Running Start (Sufjan Stevens, Javelin). O delicado novo álbum do Sufjan Stevens é pra se ouvir de manhã, tomando café. De certa forma, qualquer música dele poderia estar nessa lista (foi, e ainda é, um dos álbuns que eu mais ouvi logo depois de acordar nos sábados). Mas tem algo em A Running Start que me chama a atenção. Talvez seja o lampejo de animação, ou talvez seja porque ela me faz parar e prestar atenção, não só servir como música de fundo enquanto eu lavo a louça do café da manhã. É íntima, como todo Javelin, mas é estranhamente etérea, como uma música ambiente. Entra na pele.

Deceiver (M83, Fantasy). O novo álbum do M83 foi a trilha-sonora do meu ano. Deceiver, em especial, me acompanhou em dois dos momentos mais inesquecíveis que eu tive. Muito pelo fato de eu estar ouvindo a música certa na hora certa: o primeiro raio de sol em uma estrada infinita, e Anthony Gonzalez gritando “Distance driver” com aquela imensidão musical que ele sabe criar? Foi a minha música do ano até o novo trabalho do Joe Hisaishi aparecer, quase que no último minuto.

Madrugada Maldita (FBC, O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta). A batida dessa música, a abertura do disco, é a mais contagiante que eu ouvi em anos. As letras continuam sendo o que menos me impressiona no trabalho de FBC, mas ele trabalha com o som que as acompanha em um espaço todo dele. Madrugada Maldita é uma daquelas músicas que eu não teria problema nenhum se durasse para sempre.

One Without (Oliver Coates, Aftersun). Provavelmente a música que eu mais ouvi esse ano, essa faixa da trilha-sonora de Aftersun me ajudou a decodificar o que torna o filme tão eficaz, e algo que eu tentei traduzir nesse texto. É um trabalho fantástico de entender o tom de um filme e transpô-lo para outro meio. É como ouvir a maré de um mar até então silencioso finalmente rugir.

A série: Succession

Sarah Snook, Jeremy Strong e Kieran Culkin em cena de "Succession": os três, em roupas pretas e formais, compartilham um abraço enquanto choram.

(4ª temporada, HBO). Talvez seja a resposta mais óbvia de se dar, mas também é a única que eu consigo. Misturando o tom farsesco com uma tragédia shakespereana, Succession finaliza com uma quarta temporada que alcança os pontos altos da segunda, e então os extravasa. Seja na perfeição de um episódio como Connor`s Wedding quanto a construção do arco narrativo que desemboca no devastador All The Bells Say, talvez a series finale mais emblemática desse lado de The Leftovers.

Succession sempre foi de difícil classificação. É uma série sobre seres humanos horríveis que, mesmo assim, nos força a ter empatia por suas dores (é o que nos diferencia deles, afinal de contas). É, também, uma comédia de erros, em que herdeiros se provam incapazes de navegar nos absurdos capitalistas que seu pai ajudou a fundar. É uma típica novela das oito, mas também é uma tragédia de como inescapável e destruidor pode ser o legado de nossas famílias em nós mesmos. É tudo isso, e é também uma baita duma série que me faz passar a vergonha alheia mais dolorosa, semanalmente. Vai fazer muita falta.

E também:

Alguém em Algum Lugar (2ª temporada, HBO). Já faz muito tempo que meu subgênero favorito da TV são as tragicomédias de meia-hora da HBO (Looking, Togetherness, Betty). Alguém em Algum Lugar talvez seja a melhor delas, e a sua segunda temporada aperfeiçoou os acertos da temporada anterior, expandindo a série em intensidade, e não em escopo. Uma série sobre procurar, encontrar e construir uma comunidade ao redor de si, é um deleite e uma preciosidade, sempre carismática e melancólica (e, quase sempre, as duas ao mesmo tempo).

Barry (4ª temporada, HBO). Por toda a sua trajetória na TV, Barry tem sido um joia oculta na programação. É uma comédia, mas não é engraçada. Na maior parte de suas duas últimas temporadas, é até muito depressiva. Mas é única e, se o experimento nem sempre funcionou (principalmente na terceira temporada), ainda assim entregou os episódios mais interessantes dos últimos anos. Unindo o cômico e o doloroso, Barry nunca perdeu o coração humano de seus personagens de vista. Não oferece nenhuma resposta fácil para os dilemas morais de um assassino arrependido, uma atriz arrependida, e um pai arrependido. Mas termina seus arcos com aquela precisão cirúrgica entre absurdo e humanismo em que Barry sempre encontrou algo de muito real.

Mrs. Davis (1ª temporada, seu torrent favorito). Que saudade que eu tava das séries de Damon Lindelof (The Leftovers, Watchmen). A estranheza perfeita. A construção de significados cumulativos através do tempo. O drama absurdo. O manejo entre a tragédia e a comédia. Não existem séries iguais às dele. Mrs. Davis, curtinha (vai ser uma antologia daqui pra frente), hilária e emocionalmente dilacerante em igual medida, faz as nossas perguntas difíceis que todo o mundo está com medo de fazer sobre IA. E as faz sem medo de olhar ao redor das respostas, e de questionar aquele belo e se que Lindelof sabe tão bem fazer. Aposta mais alto, e daí aposta mais alto ainda.

O Urso (2ª temporada, Star+). Das séries que parecem um milagre por existirem, O Urso mistura a comédia de espaço de trabalho com a tragédia da vida mundana. Todos os seus episódios beiram a perfeição (e Fishes e Forks a encontram), então é uma série boa de recomendar por momentos específicos. Para mim, porém, O Urso brilha pela construção, as vezes quase imperceptível, dos seus personagens. É uma série como as poucas que sabem construir e nutrir significado através do tempo. Seja com um talher, com um prato ou um jogo de olhares. O segredo de uma série que vai longe. Eu aceito, no mínimo, oito temporadas.

A sumaúma que comoveu Belém - SUMAÚMA

(texto, Helena Palmquist, SUMAÚMA). Me emociona toda a vez ler o relato sobre a morte da sumaúma. Um apelo à natureza, mas uma lembrança da nossa humanidade, capaz de velar a morte, mesmo daqueles tão diferentes de nós. Eu linkei pra esse texto no início do ano aqui no blog, e eu ainda paro para relê-lo de tempos em tempos.

Também me fez conhecer o site em si, SUMAÚMA, que se transformou em um dos meus feeds favoritos no meu RSS.

E também:

Aftermath (site). Meus escritores favoritos sobre jogos debandaram um a um, o Kotaku nos últimos anos. Foi difícil de acompanhar o trabalho deles desde então, em cadernos de jornais que foram terminados logo depois, ou em sites questionáveis. Um pouco disso porque textos sobre jogos ainda tem muito de publicidade, e o trabalho desse pessoal é questionador e difícil. Outro, porque jornalismo de jogos não é levado a sério, e publicações desistem logo que veem que a comunidade ao redor, geralmente avessa às críticas, tende ao violento. Aftermath segue o exemplo de Defector, e cria algo uma comunidade, sem publicidade, voltado para seus assinantes, e já tem alguns dos melhores textos desde o tempo deles no Kotaku. É bom ter eles de volta.

Everything is Alive Presents: The Animals (podcast, Radiotopia__). Pensando seriamente em tornar Everything is Alive um hors-concurs nessa categoria, porque todo o ano eles entregam um dos meus podcasts favoritos. Esse ano, um spin-off entrevista alguns animais sobre suas vidas, e o charme e deleite em encontrar humanidade em tudo continua. Curtinho, delicado e mágico, como sempre.

Radio Garden (site). Minha dificuldade de listar cinco músicas que me marcaram esse ano se deve ao Radio Garden, meu principal meio de ouvir música desde que eu o descobri: eu sintonizo em uma estação de rádio aleatória no mundo (eu ando gostando muito das rádios romenas, por algum motivo?), e fico ouvindo absurdos. Músicas que eu nunca vou ouvir de novo, comentários em idiomas que eu não entendo. Como a Wikipédia, o Radio Garden deixa o mundo grande.

The Retrievals (podcast, Serial Productions). Desde a terceira temporada de Serial, a equipe de produtores e escritores vem trabalhando em minisséries que seguem a mesma linha do podcast-fenômeno: uma história, contada com maestria em vários episódios. Esse método produziu alguns dos melhores podcasts dos últimos anos, como S-Town e We Were Three. The Retrievals talvez seja o melhor até aqui, e o meu podcast favorito no ano. O caso de um crime médico em uma clínica de fertilidade nos EUA é surreal, mas em cinco episódios, The Retrievals torna a dor e a injustiça palpáveis.

É isso! Muito obrigado por esse décimo ano acompanhando esse espacinho na internet. Muito obrigado, especialmente, ao meu amigo Raul, que fez a ilustração de capa do post (e o sanduíche que você vê em todas as páginas desse blog).

Feliz 2024, nos vemos lá!