Posts marcados com esquinas

p.ext. ponto de encontro de pessoas ociosas, para conversar, comentar os assuntos do momento. No Pão, é entre duas ideias, expostas pelos autores para que possamos discutí-las. Puxe o banquinho, tem espaço pra todo mundo.

Eu ainda estou feliz que “Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo” levou o Oscar de Melhor Filme

(Uma apreciação com um ano de atraso).

Cena de “Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo”: uma pedra com olhinhos adesivados no alto de um cânion.

No início de 2022 eu recebi uma mensagem de um amigo que mora em Los Angeles, Joseph, me recomendando um filme. Eu sabia que Joseph estava trabalhando como assistente em um filme para a A24, e ele me explicou que tinha acabado de sair de um corte de trabalho dele. Eu fiquei bem contente com a notícia — meu amigo estava feliz com o trabalho que ele fez! —, até que ele me explicou que o projeto, a nova produção dos Daniels, seria o filme do ano: a história de uma mulher que atravessa todas as realidades paralelas do multiverso para salvar a filha de uma depressão que, ao que tudo indica, ela ajudou a acarretar. Joseph acompanhou a recomendação com um aviso: eu devia tentar ir no cinema, e assistí-lo com o maior número de amigos que eu conseguisse.

No início, eu achei que isso era uma estratégia de marketing — meu amigo estava me pedindo para levar mais gente para fazer minha parte em melhorar a bilheteria de um filme em que ele fez parte — mas foi só ver Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo que eu entendi o que ele queria dizer. O novo filme dos Daniels era um evento, e grande parte da diversão de acompanhar eventos assim é testemunhar a exaltação que ele provoca em sua plateia. E Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo não decepcionou. Quando eu vi ele com uma amiga durante uma viagem para Curitiba, o cinema estava cheio em uma sessão no meio da tarde de um dia de semana, e as reações da plateia eram imensas: pessoas se levantavam da cadeira para conseguir rir com mais força, e outras choravam sonoramente no final do segundo ato. É um filme vertiginoso, sem medo nenhum de explorar sua criatividade imensa que a história propõe com técnica de sobra — lutas de kung-fu (!), realidades paralelas em que a humanidade possui uma forma física diferente (!!), diálogos metafísicos entre piñatas (!!!!!!!!). Joseph tinha toda a razão.

A trajetória de Tudo em Todo Lugar foi meteórica. Embora não tenha sido o arrasa-quarteirões na bilheteria como Joseph previu, o filme cresceu organicamente tanto com críticas quanto com o boca-a-boca até que venceu grande parte das premiações de cinema americano no início de 2023. Como grande parte dos filmes com uma carreira semelhante, as pessoas que não concordam com os méritos dele ficaram mais audíveis, com críticas de que o filme não é tão profundo assim, ou que a forma como lida com a natureza da relação entre a protagonista e sua filha não tem muitas nuances. Um filme com tantos problemas como esse, em um ano em que um filme adulto e maduro como Tár, uma jornada íntima pela memória de um dos maiores diretores como Os Fabelmans, ou uma fábula implacável e precisa como Os Banshees de Inisherin concorriam seria mais uma prova da incapacidade da academia de cinema americana de reconhecer um grande filme quando vê um.

Porém… aqui vai o meu argumento, às vésperas de uma edição que com certeza vai deixar escapar o melhor filme (Segredos de um Escândalo) ou o filme do ano (Barbie), de que o prêmio de Melhor Filme para Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo é uma das raras circunstâncias do Oscar ter acertado. Eu não concordo que ele seja o melhor filme da lista de indicados (esse mérito fica para Tár, na minha opinião), mas tem vezes que o grande reconhecimento da noite precisa ir pro filme que captura uma geração. Não reconhecer o que Tudo em Todo o Lugar faz seria cometer o mesmo erro que o Oscar cometeu em 2000, quando deu o prêmio a Beleza Americana e deixou Matrix, o evento cinematográfico do ano, e de uma geração, sem sequer uma indicação a Melhor Filme.

Cena de “Matrix”: um plano fechado do rosto de Morpheus, com o reflexo de Neo, do outro lado da mesa, refletido em seus óculos escuros.ALT

A comparação com Matrix não é em vão. Tanto o clássico das Wachowskis quanto o filme dos Daniels têm semelhanças — a influência dos filmes de kung-fu e um apreço pelo cinema de Hong-Kong; questionamentos sobre a interpretação humana sobre o tecido do espaço-tempo que usamos para decifrar o que é “realidade”, e o que faz o “eu” e a nossa ideia de “identidade”; um interesse genuíno em usar efeitos especiais de maneiras inventivas. Mas eles também são filmes que conseguem capturar com perfeição o tempo em que são feitos.

Matrix previu, com muita precisão, a forma como a internet mudaria nossa percepção de nós mesmos e a “ameaça” que algoritmos causariam na nossa sociedade. Com Tudo em Todo o Lugar, os Daniels conseguem capturar a amargura inter-geracional que resulta na ansiedade e depressão que assolam as gerações mais novas, um misto de decepções e medos alimentados tanto pela ideia de não sermos quem queremos ser, quanto pela ideia de tudo o que poderíamos ser se algo tivesse sido diferente.

Eventos cinematográficos assim, que atingem um grande público de uma maneira acessível sem abrir mão da realização estética, são cada vez mais raros. Eles já eram anormalidades quando Matrix foi lançado em 1999, e se tornaram ainda mais únicos depois de uma década em que os grandes estúdios estado-unidenses aperfeiçoaram suas franquias até as tornarem grandes veículos automáticos com suas fórmulas precisas e sem inspiração. É claro que Tudo em Todo o Lugar não corta tão profundamente quanto a dissecação provocada por Tár, mas ele nem precisa fazer isso para revelar a humanidade de suas personagens. A exaltação divertida e inventiva de todas as possibilidades nos faz entender quem elas são, mas é na compreensão de que todos esses universos são vistos (por Evelyn e Joy) como uma frustração de cada ideia que não seguiu em frente ou de um sonho que não foi realizado, que os Daniels entregam, como as Wachowskis entregaram há mais de duas décadas, um misto de filme de ação com um questionamento genuíno sobre a vida que vivemos.

O Oscar vai falhar esse ano nessa missão: Barbie, um outro filme-evento que atingiu o público em massa sem abrir mão da visão de sua diretora, e eu tenho minhas dúvidas se o prêmio vai para os “melhores filmes” do ano, como o imenso Assassino da Lua das Flores, o precioso Vidas Passadas ou o inclassificável Segredos de um Escândalo. O Oscar tende a ficar no meio do caminho — alguém lembra quando ele tinha a opção de premiar um evento como A Rede Social mas escolheu O Discurso do Rei; quando não teve coragem de premiar um filme de ação como Estrada da Fúria para premiar um filme insosso como O Regresso; ou quando deixou Pantera Negra e Roma de lado para premiar Green Book? Raramente o prêmio principal me agrada, e não necessariamente porque ele não se alinha com o melhor filme do ano na minha opinião (eles raramente são sequer indicados), mas porque ele costuma ser covarde demais para reconhecer quando o filme do ano também se dá o luxo de ser bobo e bagunçado e confuso e estranho. Ano passado, como meu amigo Joseph um ano antes, a academia finalmente acertou.

(Eu sei que esse post tá com um ano de atraso, mas o meu bloqueio na escrita finalmente parece ter acabado!)

O fim da história

Tilda Swinton e Idris Elba em “Três Mil Anos de Saudade”ALT

Eu ando pensando em fins. Todo o tipo de fim: o fim de um projeto no trabalho, de um relacionamento, de um ciclo, de uma vida… Eu tenho pensado muito na minha avó, e como o fim da vida dela fez muita coisa desaparecer junto com ela. Eu penso no fim de um relacionamento que tive, e o que se faz com todo aquele carinho que você aprendeu a dar. Eu penso no fim do ciclo de lavagem, e que agora eu preciso estender a roupa.

“Fins” são inerentes da forma como contamos histórias. E histórias são a forma como a gente aprende a dar sentido ao mundo — dos mitos de criação dos povos antigos, às teorias da física quântica, elas nos são contadas como histórias. Nós usamos essas histórias, e a arte como um todo, para enxergarmos as Grandes Questões da Humanidade, e registrá-los em algo que possa existir fora da nossa cabeça — um pedaço de papel, um punhado de barro, uma fita de vídeo.

Histórias começam e terminam, e por muito tempo eu vi a minha vida como uma história. Eu não estava consciente do que acontecia quando ela começou, mas eu vivo no meio dela até que ela chegue ao fim. Só que eu cheguei em um momento da minha vida que eu imaginava que era como ela terminaria. Muitos dos meus objetivos já foram concluídos — eu tenho uma casa, um bom trabalho, eu estudei aquilo que me interessava e me cerquei de pessoas que eu amo. E agora?

Eu tive essa realização em uma sessão de terapia, e alguns dias depois eu assisti ao magnífico Três Mil Anos de Saudade, um filme do diretor George Miller (o mesmo de Mad Max: Estrada da Fúria). Nele, a protagonista encontra um impasse semelhante. Alithea se sente contente com sua vida: ela trabalha com algo que ama, ela teve uma história de amor, ela vive uma vida pacata e sem muitos dramas. Ela é, também, uma “narratologista”, alguém que estuda histórias para compreender como o ser humano registra sua compreensão do universo através do tempo. Em uma conferência, ela descobre uma garrafa e, dentro dela, um gênio.

O grande impasse entre Alithea e o Gênio é que ele precisa realizar três desejos para ela, para então voltar para algo equivalente ao paraíso de sua espécie; mas Alithea está contente com sua vida, e não tem o que desejar. Ela, assim como eu, tem essa sensação de que sua vida está “pronta”, então ela parece só continuar existindo.

Em Três Mil Anos de Saudade, o Gênio decide contar histórias para Alithea, na tentativa de que elas despertem algum desejo. O que acaba acontecendo. O primeiro desejo de Alithea é de viver uma história de amor.

Idria Elba e Tilda Swinton contracenando em “Três Mil Anos de Saudade”.ALT

Eu me inspirei muito em Três Mil Anos de Saudade para encontrar o que fazer agora que eu sinto que minha história, pelo menos aquela que eu parecia estar contando pelos primeiros trinta anos da minha vida, chegou ao fim. Afinal, essa é uma história de uma mulher que busca inspiração nas histórias de outras pessoas para continuar a sua própria.

Mas existe um problema fundamental nessa ideia. A vida não é uma história. Eu vi a minha vida inteira como uma história, mas história (e arte, como um todo) é só uma forma que a humanidade encontrou em tornar a vida um pouquinho mais compreensível. A arte é como um buraco da fechadura, que usamos para enxergar os grandes mistérios da nossa existência. Nós nunca podemos enxergar tudo o que tem do outro lado, o máximo que podemos fazer é saber que ele está lá, e tentar decifrar um pouquinho daquilo que conseguimos perceber que existe.

Essa ideia torna a vida muito mais misteriosa e muito mais incerta. Mas ela, estranhamente, me acalma. Existe tanta coisa que eu não sei, e que eu provavelmente nunca vou saber, que tudo aquilo que eu consigo compreender e experimentar acaba ganhando toda a minha atenção naquele momento. Papo de louco, eu sei, mas eu cheguei nessa realização como eu cheguei em todas as realizações dos últimos anos: jogando Zelda.

“The Legend of Zelda: Breath of the Wild”ALT

Breath of the Wild termina. Você derrota Ganon, Zelda desperta, e vocês salvam Hyrule. Os créditos rolam, e o jogo termina. Ou melhor, a história dele termina. Quando você volta a controlar Link, o protagonista, você tem todo o jogo ao seu dispôr de novo. Todo o vasto reino que você explorou até ali, todos os personagens que você encontrou e as cidades que você conheceu. Elas não possuem mais uma “utilidade narrativa” — você já concluiu as missões que esses personagens solicitavam, as cidades já foram o cenário de suas aventuras.

E, mesmo assim, eu volto para esse jogo de novo e de novo. Não para procurar alguma missão que eu deixei para trás, mas tem algo na fisicalidade dos verbos do jogo que me trazem de volta: a experiência de escalar um rochedo e encontrar, lá em cima, a vista para um lago no entardecer; cruzar com um personagem bem no momento em que a chuva começa, e vocês se abrigam perto de algumas ruínas juntos. As coisas continuam acontecendo em Breath of the Wild sem motivo nenhum, e eu gosto de estar lá para presenciá-las quando elas acontecem.

Tudo acontece o tempo inteiro, e muito pouco de tudo isso tem algum sentido ou alguma “necessidade narrativa” nas nossas vidas. A gente tenta dar algum sentido, é claro: criamos esses rituais, como aniversários, casamentos, festas de quinze anos e de formatura, funerais. Mas, se você parar para observar bem, a gente cria esses eventos para permitir que coisas aconteçam. Eu celebro meu aniversário todos os anos não porque eu vejo um sentido em envelhecer, mas porque é um jeito prático de rever todos os meus amigos.

E, honestamente, é muito mais fácil e um tantinho mais bonito admitir isso. Essa percepção acabou me liberando das histórias que contava para mim mesmo, e me permitiu apreciar que as coisas acontecem o tempo todo, quer eu esteja lá para percebê-las ou não. Por via das dúvidas, eu gosto de estar. Eu gosto de ouvir a risada de um amigo quando algo estranho acontece na nossa frente. Eu gosto de sentir aquele arrepio que o frio inesperado me causa quando eu abro a minha casa de manhã.

Eu acabei fazendo como Alithea em Três Mil Anos de Saudade, e usando as histórias que eu gosto para tentar entender a minha vida. E, então, eu comecei a entender melhor o porquê de eu gostar de filmes como Certas Mulheres, em que muito pouco acontece; ou de jogos como Animal Crossing, que não possuem objetivos. A vida é um pouco mais gostosa, um pouco mais misteriosa, e um pouco mais bonita se eu tenho tempo para perceber os detalhes das coisas acontecendo, e não se me perguntando se algo está acontecendo.

Há uns meses, no inverno, eu tinha um companheiro que fazia o café da manhã para mim. Ele não é mais meu companheiro, eu não tomo mais café da manhã com ele. Por um bom tempo nos últimos meses, eu sofri com a ideia de que esse momento em específico da minha vida tinha chegado ao fim. Se minha vida fosse uma história, aquele teria sido um capítulo que eu não poderia reescrever ou ler de novo.

Mas agora eu sei que a vida não é uma história. É um apinhado de coisas acontecendo ao mesmo tempo, o tempo todo, e eu preciso estar prestando atenção nelas para perceber aquilo que eu quero. Eu não tomo mais café com aquela pessoa, mas eu lembro de como os meus dedos gelados iam aquecendo devagarinho com a xícara quente. É o que eu lembro quando eu faço o meu próprio café toda a manhã. Algo aconteceu, e algo continua acontecendo enquanto eu estou vivo. Eu só vou poder traduzir isso como uma história para outras pessoas. Mas, dentro de mim, ainda existe tudo o que eu senti.

Ninguém está bem

Bill Harder em “Barry”, da HBO.

As cenas de assassinato na série Barry são longas — a tensão cresce lentamente, junto com o desespero das vítimas, que percebem estar na mira de um predador e que dificilmente sairão dela vivos. Mas não é por isso que a terceira temporada da série é tão difícil de assistir.

Barry é uma comédia, com um humor que se alastra, como um temporal, sobre a imagem. As vezes você nem percebe como uma piada está sendo construída bem na sua frente, até que ela explode com suas consequências, trazendo um pouco mais de pavor para a vida de seus personagens. Esse pavor é um verdadeiro vapor emocional sobre eles: Barry e Sally nunca estiveram tão infelizes em seu relacionamento, nunca esconderam tanto um do outro, e nunca estiveram tão próximos. Mesmo assim, uma insatisfação intangível, um desespero de que tudo está caindo fora do combinado ao mesmo tempo que nada parece estar acontecendo, corrói a alma dos dois.

E Barry parece não ser a única série que, em 2022, decidiu observar esse vazio de sentimentos corrosivos. Ruptura, a nova série da Apple TV+, usa esse vazio explicitamente. Nela, um grupo de funcionários de uma empresa misteriosa aceitam passar por um procedimento cirúrgico que divide suas memórias: quando estão no trabalho, eles não lembram de nada da sua vida fora da empresa; quando eles saem de lá, eles não lembram de nada. Seja no escritório ou fora dele, os personagens de Ruptura estão sempre com um sentimento em comum de que algo está faltando — algo indescritível, mas bastante perceptível. Algo, algum sentimento, uma sensação ou uma memória, que estava ali e não está mais.

Tanto a terceira temporada de Barry quanto Ruptura parecem fazer parte de uma segunda onda de arte criada na pandemia da Covid-19. Se na primeira nós vimos obras sobre como é viver em isolamento ou procurar criar alguma conexão em meio a esse isolamento (como a magnífica segunda temporada de Betty e a misteriosa Calls), agora nós vemos obras observando os efeitos desse isolamento e da tragédia.

Não é pouca coisa. Nesses dois últimos anos vimos muito do que idealizamos como sociedade ruir. Falando especificamente do Brasil, fomos impedidos de nos proteger, de enterrar nossos mortos e de nos enlutarmos. Tivemos nossas vacinas negadas por meses, e então tratadas como privilégio. No mundo, vimos a indiferença generalizada aos milhões de mortos, as tentativas de fuga dos bilionários para o espaço, a destruição crescente dos recursos naturais do nosso planeta. Tudo isso — tudo isso — enquanto tentávamos nos adaptar: pessoas precisam trabalhar por menos para comprar comida cada vez mais cara; o sucateamento acelerado da infraestrutura social, causada pelos primeiros dois anos de pandemia, agora cobra seu valor desprovendo aqueles que dependem dela. Aqueles que sobreviveram à pandemia, ao frio e à fome que ela tornou ainda maior.

Então… o que foi perdido? O que é esse vazio que a gente percebe agora, que a gente sabe que sempre esteve, de alguma forma, com a gente. Mas que agora, em que o mundo parece simplesmente continuar girando, é incapaz de ignorar.

Tanto Barry quanto Ruptura observam pessoas percebendo esse vazio absurdo em suas almas, sem necessariamente dar uma resposta de como fugir dela. Existem pistas: algumas pessoas ao redor de nossos protagonistas encontram um balanço entre esse desconforto e a vida que decide continuar. Eles procuram comunidades — amigos perdidos no tempo, familiares antes distantes. Nosso protagonistas não conseguem. Eles não conseguem ignorar esse vazio, e esse vazio só fica maior. Nada parece preencher ele.

Esse sentimento não é novo, nem na vida nem na arte. O vazio existencial trazido pela percepção de que o Homem, a Terra e nem mesmo o Sol são o centro do universo paira sobre nosso íntimo há séculos. A dor de saber que todo esse sofrimento, e também toda a nossa felicidade e nosso amor, são apenas vírgulas na história da poeira cósmica que nos formou e na qual vamos nos transformar depois que morrermos. Nós sabemos, nós enfrentamos essa frieza da existência todos os dias. Mas por que agora, nesse exato momento, parece que todo o mundo está enfrentando ela?

Eu acho que a melhor descrição do que é estar vivo nesse momento vem durante End of Empire, a faixa central de WE, o novo disco do Arcade Fire. A música — um épico de nove minutos sobre um futuro em que o mar tomou o oeste da América e a guerra dizimou o leste — traduz tanto o que torna a música da banda tão especial, mas também a dicotomia do que estamos vivendo hoje.

De um lado, End of Empire descreve o que é viver nos escombros da civilização. É grandiloquente, mas também é honesto. Todos nós temos medo de vivermos a vida errada e então morrer. Temos medo de sentir, lá no fim, que a felicidade não foi suficiente, que o sofrimento não valeu a pena, que o medo foi grande demais.

Mas todas as melhores músicas do Arcade Fire manejam o inacreditável: pegar esses sentimentos íntimos e profundos e torná-los em algo grande o suficiente para poder gritá-los, como um hino, um grito de guerra. Quando a música encontra seu clímax, em “E o oxigênio está acabando, cante uma canção que costumávamos conhecer”, o tom sombrio do início da música dá espaço para o entusiasmo. A música termina com “Temos uma vida, e metade dela se foi”. O tipo de realização simples, mas universal, que as músicas da banda costumam concluir. São específicas o suficiente para serem universais demais.

Mas o que WE consegue como uma ficção científica, Barry com uma comédia e Ruptura com um suspense é fazer esse vazio se encaixar na sua fábrica emocional. O humor ainda existe em meio ao sofrimento de um assassino; os mistérios do dia a dia ainda assolam os empregados com as memórias apagadas; uma família ainda sobrevive nos escombros do fim do mundo, e encontram vestígios do carinho e do amor que existiu das pessoas que viveram nesse lugar antes de todo aquele sofrimento.

Eu não sei se existe uma cura para esse vazio. Provavelmente não. Acho que nós, como uma geração, vamos ficar com uma cicatriz do tamanho de um rombo em nossas almas, por termos vivido e sobrevivido a eventos terríveis, mesmo que de longe. Eu demorei para perceber o quanto as notícias terríveis, a injustiça sistemática e a solidão e o isolamento acabaram consumindo o meu bom humor e meu carinho, coisas que eu sempre achei que eram minhas melhores qualidades. Ali onde eles estavam ficou esse vazio.

Se tem uma coisa que essas histórias me fizeram perceber, porém, é que não sou apenas eu sentindo esse vazio. Ele sempre existiu, sempre vai existir, e a gente já aprendeu a conviver com ele uma vez. A humanidade evoluiu tanto e aprendeu tanto para saber que a história não gira em torno de si. Isso nos torna pequenos e insignificantes como poeira estelar vagando pela imensidão do vazio do universo. Se tem uma coisa que podemos fazer, juntos, é criar algo que faça sentido para nós nesse mero momento que temos de vida no meio desse vazio. Não é perfeito, mas a vida não seria interessante se fosse perfeita. Sortudos que somos.

Tudo o que eu voltei a sentir enquanto ouvia as músicas que eu esqueci

Eu enfrentei um dos piores momentos da minha vida entre 2015 até meados de 2019, vivendo com uma depressão que durou tanto tempo que eu achei que eu nunca ia conseguir sair dela. Com o tempo, ele deixou de ser uma constante na minha vida e se transformou em algo como o clima: as vezes fica calmo e bonito, as vezes fica agitado e confuso, e as vezes ele muda de uma hora para a outra.

Meu processo de recuperação foi, em parte, aceitar que eu precisava reaprender a sentir as coisas de novo, a buscar significados que eu perdi naqueles anos de novo. É uma via de mão dupla, porque eu fico feliz de reencontrar um velho sentimento ou de perceber algo ou de me inspirar com algo de novo; mas ao mesmo tempo eu percebo que esse sentimento está um pouco diferente, que existe um peso em algum lugar. É como se eu convivesse com um fantasma no canto do meu cérebro, que nem sempre quer me assombrar, mas que só por estar ali já me causa um desconforto.

Isso causou um efeito interessante aqui no Pão, que se tornou em uma espécie de documentação dessas redescobertas. Durante os anos em que eu estive doente, o blog caiu em desuso e era atualizado pouquíssimas vezes, então ele documenta muito a empolgação da época em que ele foi criado, entre 2013 e 2014, o silêncio dos anos seguintes até eu voltar a escrever em 2019. E, de 2019 pra cá, muitos desses posts são minha reação à pequenas percepções que eu tenho no meu dia a dia que em ajudaram a ficar melhor. A primeira vez que eu escrevi sobre isso foi em julho de 2019, mas vários posts desde então registram essas pequenas redescobertas do dia a dia.

A última veio nesse último fim de semana, enquanto eu fazia uma limpeza no meu computador antigo. Eu encontrei um backup das minhas playlists do serviço de streaming que eu usava antes do Spotify, o Rdio.

Captura de tela do reprodutor de músicas Rdio, exibindo a biblioteca de discos do usuário O Rdio era muito bonito.

O Rdio foi o primeiro dos streamings de música a fazer (um relativo) sucesso no Brasil, principalmente porque ele possuía um plano gratuito muito bacana, que te dava acesso a todos os recursos na versão web (você precisava pagar para usar no celular). Na época eu não tinha um smartphone, e usava o Rdio principalmente no meu primeiro trabalho, entre os anos 2011 e 2014. Foi a primeira vez que eu tive o acesso à muitas músicas sem precisar ficar baixando, e o Rdio tinha uma função de enviar dicas de música para os amigos de uma forma fácil, então eu e meus amigos ficávamos compartilhando músicas uns com os outros o dia inteiro.

Essa foi a mesma época que eu tenho algumas das minhas melhores memórias antes de adoecer. Eu era um estagiário em uma empresa bacana e recebia bem, o que me dava tempo e dinheiro — eu já tinha saído da casa dos meus pais, morava perto do trabalho e podia fazer o que bem entendesse. Eu tava saindo do ensino médio, e essa perspectiva de já ter um emprego sem nem ter se formado ainda me deu muita independência de uma hora pra outra. Eu não sabia, mas muito desse sentimento tinha sido guardado nas músicas que eu ouvia nessa época.

E muitos desses sentimentos vieram esse fim de semana, quando encontrei esse backup de playlists e músicas salvas daquela época e recuperei no meu Spotify. Discos e músicas que eu tinha esquecido completamente apareceram na minha biblioteca, e muitas memórias voltaram à tona. Memórias são bonitas, mas podem ser frias se não vêm acompanhadas de sentimentos muito específicos do momento que elas relembram. Eu armazeno muito dos meus sentimentos nas músicas que eu ouço, foi como abrir um velho baú de várias coisas que eu não sentia há muitos anos.

Se você quer dar uma olhadinha em algumas das músicas que eu acabei de redescobrir, eu tô juntando elas nessa playlist:

Isso me ajudou a perceber como eu escuto música de um jeito diferente do que naquele tempo. Por boa parte da última década, meu contato com músicas — principalmente músicas que eu não conheço — se deram por meio de playlists, geralmente criadas por algoritmos do Spotify. Isso parece que tirou muito a cara dessas músicas pra mim. Antes, músicas vinham de alguém ou de algum lugar: uma amiga me recomendou, ou eu vi em um filme que eu gostei muito, ou tocaram em uma festa e eu gostei tanto que tive que anotar o nome na palma da mão e torcer que eu não borrasse tudo quando chegasse em casa. Cada música era um achado, um momento perfeito porque traduzia o momento em som, e que deixava o momento mais perfeito por causa disso. Essas músicas então me levavam a artistas ou discos inteiros. Foi como eu conheci a minha banda favorita, por exemplo.

Tá sendo muito bacana voltar a reencontrar essas músicas, porque eu sinto que eu tô reencontrando velhos amigos depois de muito tempo. Eu tô muito diferente daquele tempo, e eu enxergo eles de um jeito muito diferente agora. Mas tem algo ali que não mudou. Falando objetivamente, são as ondas sonoras que continuam as mesmas. Mas parece que é algo mais. É como se fosse uma máquina do tempo.

Eu espero aprender essa lição, e voltar a descobrir músicas (e também filmes e livros e séries e jogos) através de pessoas e de momentos como esses que eu acabei de recuperar. De ficar curioso pelo que elas acham, e pelo que elas esperam que eu veja e escute e sinta. Eu não troco isso por nada, porque me mostra como é bom de sentir de novo, como é bom estar de volta.

Reaprendendo a amar o cinema

Se você acompanha o Pão há um tempo, pode perceber que nos últimos dois anos eu falei muito pouco sobre filmes. No início, o Pão era quase inteiro um blog sobre os filmes que eu gostava ou tinha descoberto recentemente, mas de meados de 2019 pra cá isso mudou um bocado.

Antes, eu era uma pessoa empolgada por descobrir diretores novos e explorar a filmografia de um país longínquo. Eu gostava de ir no cinema e pegar uma sessão sem nem saber a sinopse do filme que eu ia assistir, eu me importava com filmes que foram selecionados para festivais e organizava calendários de estreia para ficar atento a quando eu ia ver o quê.

Mas de lá pra cá, minha relação com o cinema mudou profundamente. Primeiro eu achei que era algo momentâneo, como acontecia antes, de eu passar umas semanas sem ver tantos filmes até que o fôlego de assistir um filme (ou mais!) por dia voltasse. Mas esses intervalos começaram a durar mais e mais, até que eu percebi que talvez fosse algo diferente, definitivo.

A verdade é que não foi só a minha relação com o cinema que mudou nesse tempo, mas a forma com que eu enxergo os filmes também1. Eu comentei um pouco sobre isso em uma edição recente da Baguete: eu leio resenhas antigas que eu publiquei aqui no blog lá por 2013 e 2014 e vejo o quanto isso mudou. Eu reduzia os filmes que eu assistia, até mesmo aqueles que eu gostava muito, a temas simples. Antes eu achava que meus posts sobre Zodíaco e Ela não eram bons porque eu não conseguia formular bem os motivos pelos quais esses filmes são bons. A verdade é que esses textos são ruins porque eu mesmo não era honesto sobre o que eu gostava sobre eles, conscientemente ou não.

Por exemplo, no post sobre Zodíaco, eu digo que o filme é bom porque é um retrato obsessivo sobre pessoas obsessivas, e a obsessão do personagem sobre a identidade do assassino do Zodíaco reflete a obsessão do diretor, David Fincher, em esmiuçar os eventos. Esse é uma das características que me fazem apreciar esse filme, mas não é por isso que eu gosto dele.

Eu passei o último ano sem falar muito de cinema por aqui, e não porque eu não vi filmes excelentes. Foi pensando nos motivos de eu não conseguir escrever um post sobre First Cow e Minari que eu comecei a entender o que mudou em mim. Esses são dois filmes que parecem simples: First Cow conta a história de dois amigos na era colonial dos Estados Unidos que começam a roubar o leite da primeira e única vaca da região para fazer quitutes e vendê-los por uns trocados. Minari conta a história de uma família de imigrantes coreanos na década de 1980 tentando criar uma plantação de legumes.

Porém, quando eu tentei aplicar minha abordagem pra resenhar eles, eu não consegui. Isso porque First Cow e Minari não são filmes “sobre” algo, não existe uma força temática forte sobre eles com a qual eu pudesse reduzir os filmes. Não que Zodíaco seja um filme com apenas um tema como eu dou a entender naquela resenha, mas eu “descasquei” um tema do filme e saí correndo com ele. Se eu fosse escrever sobre Zodíaco hoje, eu não saberia como.

Eu acho que isso tá acontecendo porque eu tô vendo filmes de um jeito diferente. Eu não vejo mais filmes “sobre um acontecimento”, mas sim filmes no momento em que algo acontece. É um jeito diferente de olhar, e eu acho mais difícil de escrever sobre o que eu gosto nesses filmes. Eles capturam algo que eu gosto, e me mostram de um jeito que eu gosto.

Minha impressão é que esse é um jeito mais gentil de ver filmes. Eu parei de cobrar que coisas aconteçam nos filmes, ou que eles me falem sobre algo — que eles tenham um Grande Tema, que eles me expliquem Uma Grande Situação. Eu ando assistindo filmes como se eu estivesse olhando pra janela enquanto tenho uma folga do trabalho. Eu vejo as coisas acontecerem naquele momento que eu enxergo elas. As vezes elas fazem sentido, as vezes não. É sobre o que elas me fazem sentir, bem mais do que elas fazem no filme em si.

Não sei se dá pra entender isso, mas essa mudança foi crucial pra eu voltar a gostar de ver filmes. Por um tempo, foi ficando cada vez mais difícil de escolher um filme pra assistir — eu fui ficando mais chato, eles tinham que ser mais inteligentes do que os anteriores, mais formalmente impressionantes, etc. Até um ponto que eu não tava gostando de mais nada do que eu assistia, e parei de querer ver filmes. E então eu percebi essa mudança em filmes pequenos. Filmes como First Cow, em que muito pouco acontece, mas que limparam a minha mente e me fizeram enxergar o que tava acontecendo neles, e não “sobre” o que eles tavam tentando me dizer.

Não sei se um dia eu vou voltar a resenhar filmes, mas provavelmente não. Eu ainda tô experimentando formas de escrever sobre os filmes que eu vi, e ainda não achei uma forma ideal. As vezes eu acerto em cheio, como essa observação de Certas Mulheres, que é até hoje um texto meu favorito sobre filme, mas é difícil de escrever algo assim. As vezes eu prefiro descrever como o filme me fez sentir, e acho que essa é uma boa saída também. As vezes eu faço uma observação mais pontual. Pode ser que eu escreva mais coisas assim.

Vocês provavelmente vão ler alguns desses experimentos no Pão daqui pra frente. Eu só precisava desabafar sobre isso em primeiro lugar. Acho que, agora, eu consigo ser mais honesto sobre os filmes que eu vejo.

  1. Tem uma questão de tempo aí também, eu simplesmente não tenho mais tanto tempo livre pra assistir a quantidade de filmes que eu via antes. 

“Lore” é uma armadilha

Um dos melhores textos que eu li nas últimas semanas é “What we argue about when we argue about WandaVision”, da Emily VanDerWerff. Como os melhores textos da autora, ela pega uma série como contexto para destrinchar e analisar outros assuntos da cultura em geral. Seu último ponto é sobre como muito da recepção e discussão sobre os filmes e séries que assistimos hoje em dia se dá sobre sua trama: será que ela faz sentido no contexto maior do MCU? Será que um easter egg que apareceu no segundo episódio não significa outra coisa? O texto é fantástico, em especial essa última parte:

In a piece for Current Affairs, Aisling McCrea put something that lots of culture writers have been circling for years so succinctly, I actually am jealous. McCrea discusses culture via two terms used by the ancient Greeks: logos (stuff pertaining to the material world, which we can see and measure and quantify in some way) and mythos (stuff that is more elusive, which we mostly feel or contemplate). Around the piece’s midpoint, she writes:

This rejection of imagery, symbolism, or any higher meaning that cannot be reduced to the literal, has become especially pervasive in contemporary art criticism. This is not to say that there isn’t still great art criticism; it’s just that the internet has led to a much greater volume of all criticism, and much of it is dominated by a worldview that seems to reject metaphor, symbolism, mood and tone, or at least render them secondary to “plot.”

What McCrea touches on here is something I would imagine you’ve noticed if you consume a lot of pop culture writing. Though there are a ton of great critics out there working, by far the most popular articles and videos about culture are those that purport to “explain” to you what’s happening. At their best, these articles and videos reach beyond the cultural artifact at hand to talk about connections to other pop culture topics or dig into the long, complicated history of the characters whose adventures we so enjoy. At their worst, they more or less repeat the plot and tell you how to feel about it. (If you doubt me, watch any given YouTube video with “the ending, explained” in its title.)

But the problem is that when you boil down a piece of art to its most immediately obvious qualities — the plot and/or the lore underlying the story, for instance — you turn it into something tangible. You place boundaries on it that are designed to make it easier to consume so you can move on to the next pop culture artifact.

But art isn’t tangible. Even the worst, most cynical Marvel movie is full of things worth discussing for their more intangible qualities, like how particular visuals made you feel or the way the themes intersect with your life, or just the way a joke made you laugh really hard. There are a lot of superhero movies I strongly dislike, such as Batman v Superman, that are still worth dissecting as art rather than as commerce because they’re trying to say something and express some fundamental truth of the human condition.

Eu concordo com tudo o que VanDerWerff diz, e sua definição de logos e mythos é tão boa e simples que me revigora toda a vez que eu leio. Esses são termos que estudamos na faculdade de cinema (e que você provavelmente já se deparou se lê bastante sobre narrativas), e ela os usa aqui de uma maneira bem objetiva: por causa da natureza das histórias como WandaVision, nós somos impelidos a dissecar seu logos — sua história tangível, seus enigmas, sua representação daquilo que a gente sabe, como os personagens da Marvel — e deixamos o mythos — o intangível, o misterioso, o que é sentido, o que a gente sabe que existe, mas não sabe bem explicar o que é — para trás, ou até mesmo consideramos ele um problema de roteiro.

Eu acho que isso é um efeito cíclico. Como eu argumentei no meu post sobre WandaVision, a série é um misto de duas coisas que fazem muito sucesso no boca-a-boca da internet: o universo da Marvel e séries que usam o modelo da caixinha de surpresas que Lost aperfeiçoou. São filmes e séries feitos para serem decodificados, para suas referências serem compreendidas e assinalar o que vem pela frente nos próximos filmes e séries. Como eles fazem muito sucesso, mais gente se junta nessas discussões, que as tornam ainda mais onipresentes (você se lembra a loucura que era Lost? O Obama chegou a remarcar um discurso por causa da série).

Eu tenho a impressão que um dos efeitos colaterais desse tipo de discussão é uma canonização da mitologia dessas histórias. O MCU está passando por um ponto que Lost alcançou em sua quarta temporada, em que o sua própria história trabalha contra ele, limitando o que o público acha que pode acontecer, e limitando o que seus autores podem explorar. São histórias que dependem e presenteiam a dedicação de seus espectadores em relação aos detalhes e as referências, mas isso cria uma impressão de autoridade sobre seus fãs1, que cobram e reclamam toda a vez que essas histórias contradizem esse cânone, ou ignoram algum evento anterior.


Essa mitologia que existe dentro de uma ficção é chamada pelos fãs de “lore” (de “folclore”). Existem iniciativas para organizar e explorar o lore de franquias famosas, e é um trabalho realmente impressionante quando você confere a dedicação do trabalho em mapear O Senhor dos Anéis e Star Wars com tanta precisão.

Mas eu sinto que, conforme a voz dos fãs vai ficando mais alta, esse lore que antes servia mais para dar contexto à uma história acaba se transformando em uma armadilha para essas próprias histórias, como uma forca onde você mesmo dá a quantidade de corda.

E isso me faz pensar em como eu gosto quando algo tá nem aí pro lore, ou pro que você pensa que aconteceu. A terceira temporada de Twin Peaks faz isso com maestria, e a série seguinte do criador de Lost, The Leftovers, faz questão de criar uma história onde o que aconteceu é propositalmente incerto.

Mas acho que minhas abordagens favoritas para resolver a armadilha do lore vêm dos jogos de The Legend of Zelda e das tirinhas de Peanuts.

Zelda segue uma fórmula: todas as histórias dos jogos aconteceram, de uma forma ou de outra. A única coisa que é certa no lore dos jogos é de que Hyrule é um reino mantido sobre o balanço de três forças: coragem, poder e sabedoria, e quando esse balanço está instável, três figuras nascem para reestabelecer esse balanço: a princesa Zelda (sabedoria), o seu cavaleiro Link (coragem), e o monstro Ganon/Malice (poder).

Pronto. Nós sabemos porque a história básica de Zelda é sempre a mesma. É uma explicação direta que esconde uma limitação técnica na época que os primeiros jogos foram criados, mas que define a estrutura de todos os jogos até hoje. Zelda trata cada aparição de Zelda, Link e Ganon como eventos isolados com gerações e gerações de diferença. Quando um jogo referencia outro, ele o faz com a incerteza de uma lenda: alguns duvidam do que aconteceu, outros consideram isso uma verdade absoluta, etc.

Isso dá uma liberdade para os game designers de Zelda se desprenderem da história dura de sua franquia e se dedicar mais à jogabilidade, criando uma “lenda” que se adapta aos interesses do que o jogo quer explorar, e não o contrário. A própria linha do tempo “oficial” que eles oferecem para os fãs é revisada constantemente (e não faz muito sentido, o que eu acho que é exatamente o ponto).

Zelda usa esse aspecto de lenda em suas histórias justamente para enriquecê-las através das incertezas. O que acontece entre as centenas de anos que separam Ocarina of Time e The Wind Waker, por exemplo? O que a Hyrule de um ainda existe na de outro?

Peanuts faz um trabalho ainda mais surpreendente em sua simplicidade. Foi uma tirinha escrita por mais de cinquenta anos, e seu autor, Charles Schulz, conseguiu estabelecer uma identidade para seus personagens sem nunca limitá-los.

Existe algo específico da forma. Peanuts trata de um breve momento do dia-a-dia de Charlie Brown, Snoopy e seus amigos. isso não impedia que Schulz se aventurasse em narrativas maiores — alguns eventos na vida dessas crianças se desenrolavam um pouquinho todos os dias por semanas a fio.

Mas esses eventos nunca era jogado contra seus personagens. As coisas que acontecem em Peanuts nos informam sobre a personalidade de nossos personagens, e não de suas histórias. E é isso que tornou as tirinhas no marco que são: você não precisa ler todas para saber tudo o que acontece com a turma do Charlie Brown. Em poucas tiras você consegue identificar que o Minduim é um fracassado, a Lucy é irritada, o Linus é sabio, o Schroeder é esnobe, e o Snoopy é um sonhador. Se você lê continua lendo, você descobre algo mais bonito: com esses pequenos momentos quase irrelevantes no dia-a-dia deles, a gente descobre que esses traços não são tudo o que esses personagens são. Nós observamos como Linus trata os irmãos, como Charlie Brown se relaciona com o pai, e assim por diante.

Dessa forma — fazendo as tirinhas explorarem quem essas pessoas são, e não o que acontece com elas —, Schulz conseguiu tornar Peanuts no marco editorial que foi, porque se baseou em uma verdade da nossa existência: a gente nunca conhece alguém completamente. A gente sempre vai se surpreender com as pessoas que a gente conhece, e eu diria que a chance disso acontecer conforme a gente convive mais tempo com elas é ainda maior. Nós usamos os eventos do nosso dia-a-dia para conhecer as pessoas que nos acompanham nele. Os eventos acontecem, mas as pessoas ficam.

Eu acho que se nos prendemos demais à esses eventos, esse lore, nós acabamos caindo na armadilha de julgarmos demais o presente, a história que a gente estamos acompanhando. Entender o passado e como ele informa nosso presente é necessário para a nossa vida, mas se usarmos o passado para enxergar o presente — e não o contrário —, caímos na armadilha de ignorarmos o que está acontecendo em detrimento daquilo que já conhecemos, de supervalorizarmos aquilo que sabemos bem, e negarmos o desconhecido.

A gente pode acabar deixando de descobrir um ponto de vista novo, uma pessoa legal, um momento importante, ou uma nova faceta de alguém que a gente achava que não tinha mais como nos surpreender. E por que apreciaríamos a arte, se ela não olhasse para quem somos e onde estamos agora para nos ajudar a enxergar aquilo que, na nossa mera existência humana não conseguiríamos enxergar sozinhos?


  1. A gente tá passando por um momento em que os fãs andam com muita força em tomar decisões, e se isso é bom ou não (não é) é um tema para outro post. 

Em defesa de assistir séries semanalmente

A quarentena aqui por casa já dura seis meses e a cada mês — as vezes à cada semana — eu vou repensando e reavaliando algumas coisas na minha vida. Eu me reaproximei da música, por exemplo. Eu parei de assistir tanto filme e a ler mais (ainda vou escrever sobre isso!). Hoje eu vou falar de uma nova redescoberta.

Como todo o jovem com acesso à internet em meados dos anos 2000, eu sou um adepto da maratona de séries há um bom tempo, desde quando isso significava baixar um pacote de RMVB legendado ou de AVI com pacotes de legendas do Legendas.tv. Foi assim que eu vi Família Soprano e A Sete Palmos e Deadwood pela primeira vez, foi como eu descobri a primeira temporada de Community ou de United States of Tara também. Passar uma semana inteira baixando (porque a velocidade da internet naquela época era um… problema) pra poder maratonar temporadas inteiras no sábado e no domingo.

Quando a Netflix começou a lançar seus conteúdos originais ali na primeira metade de 2010, com temporadas completas de House of Cards e Orange is the New Black sendo lançadas simultaneamente, era quase que uma “formalização” de como os ~jovens~ assistiam TV. Ter que esperar uma semana pros novos episódios das últimas temporadas de Breaking Bad e Mad Men era algo que estava saindo de moda.

E pelos últimos anos eu me acostumei a assistir séries assim. Eu sempre acompanhei uma ou outra série semanalmente — as que eu sempre fui mais fiel, como Community ou Veep ou The Leftovers e Watchmen —, mas a grande maioria das séries da década passada pra cá foram vistas em questões de dias. Até que, nos últimos meses, eu comecei a sentir o peso de ficar muito tempo na frente da TV, e de ter tempo sobrando pra ficar todo esse tempo na frente da TV. As histórias que eu assistia nas séries que eu assisti nesses últimos meses viraram borrões narrativos.

Séries de TV são ótimas oportunidades pra acompanhar narrativas que se desenvolvem durante muitos anos, que espiralam e se transformam, mas têm a qualidade específica de serem feitas através de momentos — sejam eles de 20, 40 ou 60 minutos — que acompanhamos. A tragédia de Walter White em Breaking Bad envolve dezenas de personagens por um período de anos, mas ela é considerada uma grande série de TV porque cada episódio não era só uma parte dessa tragédia, mas uma própria história em si. Grandes séries de TV têm essa qualidade — nós nos lembramos tanto da sua grandiosidade narrativa quanto da sua profundidade. O primeiro fator é feito pelas temporadas, que se estendem através dos anos, mas o segundo só é possível de construir episódio por episódio.

Antes da Netflix, séries de TV precisavam criar grandes episódios semanalmente — eles precisam ficar na sua mente durante a semana inteira para que você volte na semana seguinte, e precisam desenvolver uma relação com você que seja forte o suficiente para você esperar meses até a próxima temporada. Com o streaming, e com a Netflix e o Prime Video disponibilizando temporadas inteiras de suas séries na quinta ou sexta-feira, para você poder assistir elas inteiras durante o fim de semana, essa qualidade da série de TV se perdeu, e temporadas de séries se tornaram mais próximos de filmes de dez ou quinze horas. É muito mais difícil discernir o que acontece em um episódio de Stranger Things do que de Succession, por exemplo.

E tem um motivo formal pra isso: o “gancho” do episódio mudou. O gancho é aquele evento que nos instiga a querer continuar assistindo a série. Tecnicamente todos os episódios de TV usam ganchos. Quanto mais tempo uma série está no ar, menos ela precisa desse artifício porque seu público já está naturalmente investido nos acontecimentos dos personagens, mas o “gancho” ainda existe. Seja uma série exibida semanalmente ou disponibilizada por inteiro no streaming, o gancho de seus episódios está bem no finalzinho, provavelmente na última cena ou na última sequência de cada episódio.

Em uma série de TV exibida semanalmente, esse gancho é o “desenredo”, a consequência do clímax do episódio. O clímax é aquele evento mais forte da narrativa, o ponto alto onde o conflito estoura. Em Succession, por exemplo, é quando o patriarca da família trai um de seus filhos, deixando ele pra ser comido vivo pelos jornalistas. O episódio não termina nesse evento, mas termina no desenredo — em como o filho traído precisa aguentar a traição do seu pai quieto, por exemplo. Esse desenredo geralmente é marcante, mas também é vago. A gente não sabe o que está na mente do personagem, como ele está reagindo ao evento do clímax. Tanto o personagem quanto o espectador precisam amadurecer esse sentimento durante a semana.

Já um episódio de série da Netflix usa o clímax como gancho. O momento mais marcante de um episódio de House of Cards ou Stranger Things é exatamente aquele evento final, o que torna o episódio em um crescendo dramático. Isso tem dois efeitos: o primeiro, a gente não vê a consequência desse evento importante, o que nos leva a querer começar o próximo episódio imediatamente; o segundo, que eu acho menos intencional e mais problemático, é que torna as temporadas de séries assim um crescendo gigante. A série nunca pode “diminuir” os riscos do clímax do episódio anterior sem desmentir seus próprios eventos, o que torna um episódio extremamente dependente do outro1.

Eu não quero fazer um juízo de valor aqui e dizer que séries de TV semanais são melhores. Elas tendem a criar episódios de TV muito melhores, é claro, mas acho que é um fator que precisa ser avaliado caso-a-caso Por exemplo, minisséries como Olhos que Condenam caem muito bem na fórmula da Netflix porque são visivelmente séries com capítulos extremamente dependentes uns dos outros. Mas séries de TV que duram vários anos, e que precisam nos fazer nos conectar com seus personagens muito além da narrativa, precisam criar grandes momentos. E tá sendo muito bom, pra mim, experimentar essas histórias com um tempo pra refletir sobre elas. Eu tô revendo Enlightened agora, e ver a personagem de Laura Dern aprender que lidar com as adversidades do seu dia-a-dia é parte essencial do que é a vida adulta é algo belo, mas que eu acho que perderia muito da magia se eu fosse ver tudo de uma vez. O crescimento da personagem acontece “em tempo real” se eu dou uma pausa entre episódios.

Minhas séries favoritas dos últimos anos, como Succession e Betty também são pensados em episódios fechados. Em nenhum dos casos eu acho recomendável você olhar essas séries fora de ordem, mas você sabe exatamente o que acontece em cada um dos episódios porque seus eventos — o conflito, o clímax e o desenredo — são muito bem estabelecidos, e levam mais naturalmente um episódio ao outro assim. Os personagens dessas séries crescem em cada episódio, mas nossa relação com eles amadurece durante a semana. O jeito que eu deixo o Kendall em um episódio de Succession pode ser extremamente diferente de como eu vou reencontrá-lo na semana seguinte.

Tenho a impressão que isso é algo que outros serviços de streaming estão observando. Em termos comerciais, a Netflix domina alguns finais de semana do ano com três ou quatro séries que dominam a conversa, como Dark e Stranger Things e Sex Education. Mas olhe como a HBO conseguiu dominar semanas a fio ano passado com Watchmen e a última temporada de Game of Thrones e a segunda temporada de Succession, que acabou levando os principais prêmios da noite ontem no Emmy. E vale a pena de lembrar como Twin Peaks hipnotizou todo o mundo por dezesseis semanas em 2017, com episódios que nunca eram parecidos um com o outro.

Outros serviços de streaming parecem ter observado e estão agindo de acordo. Algumas séries do Prime Video estão sendo lançadas semanalmente, e o Disney+ e o Hulu lançam tudo semanalmente hoje em dia. Para os serviços, isso mantém suas séries como assunto para conversas por mais tempo durante o ano, tornando-os mais essenciais para pessoas com o mínimo de convívio social. Para nós, isso provavelmente vai resultar em episódios melhores para nossas séries favoritas, e eu honestamente não vou reclamar.

  1. Acho importante explicar que isso vale principalmente pras séries dramáticas da Netflix, mas ainda mais para suas produções live action. As animações originais da Netflix são bem menos “maratonáveis”, embora sejam criadas pra isso. BoJack Horseman é uma série visivelmente pensada pra que cada episódio se sustente sozinho.