“The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom” dá vida a Hyrule
Uma das minhas memórias favoritas em Breath of the Wild é também uma das mais mundanas: eu subi em uma pequena colina e, lá de cima, eu enxerguei uma fumaça subindo entre as árvores de um bosque. Indo até lá, eu vi uma pessoa — uma das primeiras pessoas que eu encontrei enquanto caminhava por Hyrule pela primeira vez, já com algumas horas de jogo. Ele estava sentado ao lado de uma fogueira, e me comentou sobre como é difícil de ver pessoas por ali. Ele me comentou sobre as ruínas de Hyrule, e para onde eu poderia ir se quisesse encontrar mais pessoas.
Breath of the Wild era cheio de momentos melancólicos como esse. Um jogo esparso, onde a aventura estava em qualquer lugar, bastasse você estar disposto a procurar. Entre elas, você andava por Hyrule. Uma preocupação do jogo e de seus desenvolvedores parecia ser você sentir a textura do solo nos pés de Link, o jeito que a brisa mexe com a grama e as árvores, ou como os animais que pontuam essa vastidão respondem à você ao mesmo tempo que seguiam seus caminhos. A Hyrule de Breath of the Wild era silenciosa, e esparsa, indiferente ao jogador, e ao mesmo tempo responsiva. Você poderia passar longos períodos de jogo sem receber uma missão ou sem cruzar com outros personagens. A principal relação que você cria no jogo é entre Link e Hyrule em si.
A geografia de Hyrule mudou pouco no tempo que se passou entre Breath of the Wild e sua continuação, Tears of the Kingdom. As montanhas que você aprendeu a escalar, os rios que você aprendeu a cruzar e as cidades que você encontrou no meio do caminho estão todas lá. O novo jogo, porém, as enche de vida: personagens estão por todos os lados, todos eles com suas pequenas histórias. Existem trupes musicais, grupos de artistas, pescadores e jornalistas explorando os lugares que você vai encontrar. Eles estão envolvidos em conflitos políticos, mistérios arqueológicos, caças a tesouros e competições de moda.
Esse é o aspecto mais fascinante para mim em The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom. É uma poucas vezes que podemos ver o reino de Hyrule florescendo e prosperando em toda a série. Passando alguns anos depois de Breath of the Wild, ToTK se alimenta da relação que você criou com o ambiente no jogo anterior para encher aquela Hyrule em ruínas com uma nova vida. Cidades estão sendo construídas, a cultura está fluindo, e os pequenos causos da vida de sua população voltou a importar, agora que o perigo do apocalipse iminente parece não existir mais.
É claro que o perigo só “parece” não existir. Logo no início, Ganondorf, o maior vilão da franquia, desperta. E, com ele, um evento chamado de “A Perturbação” começa: monstros voltam a invadir Hyrule mais fortes do que nunca, cavernas há muito fechadas voltam a abrir; e mais do que tudo: fissuras para as Profundezas e ilhas voadoras aparecem no solo e no céu de Hyrule, quase triplicando o tamanho do mapa original.
A Perturbação de Ganondorf, os monstros e o desaparecimento de Zelda, em uma trama que vai alimentar ainda mais teorias sobre a linha temporal da franquia e sobre a mitologia de Hyrule, são os grandes eventos que movem a narrativa dessa vez. E eles “movem” a narrativa de um jeito muito mais direto do que a Calamidade do jogo anterior. Tears of the Kingdom possui uma estrutura narrativa consideravelmente mais dura do que do jogo anterior, apontando constantemente para onde você supostamente deve ir. Do momento que você acorda na Grande Ilha do Céu, cai para Hyrule pela primeira vez, se aventura nas Profundezas, volta para a superfície e ruma ao seu primeiro templo, você possui muito mais indicações do que fazer do que jamais teve em Breath of the Wild.
Mesmo assim, o aspecto mais fundamental do jogo anterior se mantém vivo aqui: a liberdade de escolher como chegar onde precisa continua, e a vastidão de Hyrule agora é repleta dessas pequenas histórias que, muitas vezes, são emocionalmente surpreendentes. A viagem do jornalista indo de estábulo a estábulo, o golpe político acontecendo em Hateno, um homem preso tentando entrar em contato com sua família, a busca de duas irmãs por um mistério em Hebra, e uma penca de outras histórias que você vai encontrar no meio do caminho, são todas opcionais, mas irresistíveis. Eu demorei muito mais tempo do que eu imaginava para encontrar todos os Templos (as dungeons no sentido mais tradicional da franquia, que também fazem um retorno aqui depois de sumirem em BotW), porque fiquei procurando os membros de uma trupe musical perdidos em suas próprias peripécias.
Essas pequenas histórias até influenciam o seu entendimento dos eventos que levaram à Perturbação, ou revelam segredos sobre a enésima vinda de Ganondorf e as lendas dos Zonai, personagens centrais na trama principal. Sua maior contribuição para o jogo, porém, é fazer o mapa de Hyrule receber uma nova importância. Esses personagens estão por toda a parte, e todos eles conhecem Link, o herói de um evento recente, e podem contar com ele para acessar lugares difíceis, ou coletar um item raro que só é visto em um ambiente do outr lado do mapa.
Ao invés de parecerem pessoas chatas que não sabem fazer nada, elas parecem pessoas vivendo suas vidas e resolvendo seus problemas que, por acaso, você encontrou em um momento oportuno. Ao ajudá-los, você percebe sua importância na jogabilidade. Diferente de BotW, que apresentava seu punhado de mecânicas na primeira hora e o liberava para explorar o mapa como você quisesse, Tears of the Kingdom possui muito mais mecânicas e recursos de jogabilidade para ensinar ao jogador, e dominá-las vai demandar muito mais tempo. As missões curtíssimas, aparentemente desimportantes que populam Hyrule são um aspecto de jogabilidade genial por parte da Nintendo: entregar ao jogador a oportunidade de (tentar) dominar suas mecânicas no ritmo que ele quiser.
Essas mecânicas se apresentam principalmente como quatro habilidades principais: Ascend permite que Link trafegue verticalmente pelo mapa, passando por uma superfície e chegando ao seu topo; Rewind vai “retroceder” o movimento de um objeto por um período de tempo; Fusion permite que você una um objeto, como partes de monstros, comidas, pedaços do ambiente, à sua arma e ao seu escudo, ampliando suas possibilidades.
Além dessas, a maior dessas novas habilidades é o Ultrahand, que permite ao jogador manipular o ambiente, movendo e unindo objetos uns aos outros, criando embarcações, pontes, armadilhas e armas com as ferramentas ao seu redor. É o resultado do que parecem várias críticas apresentadas à BotW: expande seu arsenal de armas, dá ainda mais opções de navegação, e “enche” o mapa de Tears of the Kingdom com ainda mais possibilidades aos seus jogadores serem ainda mais criativos do que antes.
Na minha honesta opinião, em alguns momentos Tears of the Kingdom parece demais. As novas habilidades enchem o jogo de possibilidades, mas ao mesmo tempo tornam os controles mais complexos, um balanço que eu achei ideal em BotW. Embora a dificuldade do jogo não extrapole (eu encontrei poucos desafios que eu passei mais de dez minutos pensando em como resolver), eles demandam muita naturalidade com os controles mais no início, o que tornam a primeira hora do jogo bastante maçante. E o mapa, ainda mais extenso com a adição das Profundezas, não parece possuir aquela precisão milimétrica do jogo anterior, onde cada pedra parecia estar disposta em um jeito específico para acentuar mais o sentimento de aventura potencial.
Mas, ao mesmo tempo, esses pequenos problemas são pontuações breves em um jogo que expande Breath of the Wild de maneiras inventivas e geniais. E elas dão espaço, e possibilidades, para a verdadeira textura emocional de Tears of the Kingdom: a nova vida que os vários novos personagens espalhados pelo mapa ainda maior trazem, que permitem que você conheça Hyrule, seu passado e seus mistérios de maneiras ainda mais criativas que antes.
Tears of the Kingdom continua com todas as virtudes técnicas do jogo anterior: a direção de arte é estonteante, e a profundidade dos detalhes que os desenvolvedores e artistas da Nintendo levaram à Hyrule e aos personagens, com seus visuais reminiscentes dos filmes de Hayao Miyazaki (principalmente O Castelo Animado e Nausicaä do Vale do Vento, com um misto de tecnologia primordial e magia) explodindo em cor e em movimento. A trilha-sonora continua pontuando muito mais do que definindo o tom, o que eu acho um acerto em um jogo que, como o anterior, pode passar horas em uma meditação silenciosa pelas pradarias.
Eu acho que nenhum jogo vai conseguir parecer monumental desde os menores detalhes aos maiores como Breath of the Wild conseguiu, um jogo onde a intenção de seus desenvolvedores ressoava pelo seu ciclo de jogabilidade perfeito. Tears of the Kindom expande esse sentimento com experimentação e diversão, mesmo que tire um pouco da perfeição anterior. É um jogo que aprecia o incerto e o incomum, a tentativa, o erro e até mesmo a bagunça.
Se minhas memórias favoritas de BotW têm a ver com a solidão, a contemplação e a melancolia de uma Hyrule do passado; minha memória favorita de Tears of the Kingdom é uma noite que eu e o Erê passamos a madrugada adentro dividindo um controle e explorando as novas maneiras de construir veículos para viajar pelos céus ou explorar as profundezas, descobrindo ilhas que parecem luas, cavernas que nos levaram à morte certeira e dragões que eu até hoje não tive coragem de enfrentar. A cada nova descoberta (“então você pode fazer isso?!”) e cada novo acerto, Tears of the Kingdom revela duas ou três novas mecânicas para você experimentar. É de se perguntar como eles conseguiram colocar tanta coisa em um jogo só, com esse grau de refinamento e qualidade. É a prova da fundação sólida que BotW ofereceu, claro, mas também da criatividade estonteante que Tears of the Kingdom oferece para seus jogadores, e demandou para sua própria criação. Um jogo tão vivo quanto a Hyrule que ele apresenta.