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As cinco melhores coisas de 2023

Link, de "The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom" conduz Mollie, de "Assassinos da Lua das Flores", no carro da Barbie. "2023" pode ser visto ao fundo.

Duas coisas que percebi fazendo a lista de fim de ano do Pão em 2023:

  1. Minha dieta cultural esse ano foi bem rala. Um pouco culpa do trabalho. Um pouco culpa de Eventos Acontecendo Em Minha Vida (contas).
  2. Eu desaprendi a escrever. Meu maior norte (conte o que acontece, não o que faz) ao escrever minhas resenhas não acontece nas cápsulas a seguir. Me desculpem, eu estou destreinado.

Eu escrevi pouco em 2023. E escrevi menos ainda sobre cultura em 2023. Não é culpa do que eu vi, joguei, li, ouvi, cliquei, etc. Escrever é terapêutico pra mim, mas muito desse último ano eu me descuidei da minha saúde mental, de desvendar o que eu estou sentindo. Eu também fui perdendo, aos poucos, a vontade de falar o que eu estou sentindo ou o que eu experimentei. É algo que eu quero mudar em 2024, e espero que meus queridos leitores, fieis escudeiros, estejam dispostos — eu estou empolgado para uma penca de filmes que vão estrear nos próximos três meses! Espero que estejam preparados para minhas péssimas opiniões!!

Enfim… não foi um ano ruim. Eu consegui realizar meu plano de assistir filmes majoritariamente no cinema, por exemplo. E de jogar quase todos os jogos que eu quis jogar. Eu tive tempo, e eu tive disposição. Mas eu não sei o que houve, mas na maioria das vezes eu não tinha palavras pra descrever o que eu sentia. É pura falta de prática. Como corrida, que eu também parei na segunda parte desse ano, eu só preciso exercitar um pouquinho mais pro ritmo das ideias voltarem. Eu só preciso me organizar. Eu planejo me organizar. Só essa semana eu escrevi bem mais que meses inteiros nesse último ano! Eu tô empolgado por 2024. Vocês acreditam que o blog vai fazer onze anos? Foi nessa idade que eu aprendi a ler!


O filme: Assassinos da Lua de Flores

Lilly Gladstone e Leonardo DiCaprio em cena de "Assassinos da Lua de Flores": Gladstone, no banco de trás, é conduzida por DiCaprio, no banco do motorista, em um carro dos anos 1920.

(Martin Scorsese, 2023). Todo ano eu fico com esse questionamento. Meu filme do ano é a melhor experiência que eu tive no cinema (Barbie)? Ou é o filme que mais me deu material pra pensar (Tár)? Ou é o filme que simplesmente me conectou àquela cinefilia adormecida dentro de mim (Showing Up)?

Assassinos da Lua de Flores não é nenhum desses casos. Mas é o meu filme do ano. O filme que eu saí do cinema sabendo que uma parte de mim mudou, que uma parte de mim nunca tinha visto nada igual. Em parte, porque é um dos meus tipos de filme favorito: parece ser uma coisa, mas Scorsese está fazendo outra. E, quando a gente percebe o que ele está fazendo, o filme se abre na nossa frente. Parece mais um dos seus filmes de gângster, mas Assassinos da Lua de Flores é muito mais. É uma história de amor doentio, de uma ganância monstruosa, da beleza arrancada e perdida dos povos nativos. Tudo isso sob os olhos da melhor atriz de sua geração, com Lilly Gladstone entregando ondas de emoção inteiras através de seu olhar, impenetrável e dilacerante.

Tudo isso. _ Tudo isso _ enquanto Scorsese se questiona, o tempo todo e humildemente, se ele é capaz de contar essa história como deveria ser contada. Se ele tem o que é capaz de ver através dos olhos de sua protagonista como ele queria tanto ver. Se ele fez jus à história dela. Nem ele, o grande mestre do cinema ainda vivo, sabe responder. É uma cicatriz que ele deixa à mostra para seu espectador.

E também:

Barbie (Greta Gerwig, 2023). Provavelmente o filme do ano? Eu sou fascinado pelo cinema de Gerwig, que com apenas três filmes já tem o que é provavelmente a melhor adaptação de um livro para a tela, e agora esse feito inacreditável de um filme realmente questionador, usando o dinheiro de uma mega-corporação. Na primeira vez que eu assisti, ficava me perguntando como a Mattel permitiu um filme desses. Mas foi na segunda, no natal com minha família, que eu me deparei com o filme muito sensível que existe por baixo do conceito de fachada. Uma dramédia às avessas sobre pessoas não aceitando seu espaço na sociedade, e como elas agem para mudar. Umas se fingem de mortas, outras criam o patriarcado, outras conversam umas com as outras e mudam de pouquinho em pouquinho. Quero que o Caetano cresça com esse filme por perto.

Monster (Hirokazu Kore-eda, 2023). Até dezembro, Assassinos da Lua de Flores tinha o meu final favorito do ano. Mas Kore-eda fez o que eu achei impossível: um filme tão bem construído que a mera ideia de um final feliz parece um sonho. Não é só de final que Monster se sustenta, é claro. Talvez o melhor roteiro que eu já tenha visto em tela desde que David Fincher encarou o Facebook, aqui vários pontos de vista se juntam para moldar uma história que eu acharia um crime dar mais detalhes. Grande parte da beleza desse filme tão sensível, tão delicado, está na forma que Kore-eda desdobra-o em nossa frente, com sua precisão estética igualmente sensível. É avassalador, mas também sabe ser belíssimo.

Showing Up (Kelly Reichardt, 2022). Não tem nem previsão de estreia no Brasil, mas Showing Up é mais uma obra-prima de uma diretora que nunca fez um filme menos que impecável. Eu escrevi no meio do ano como esse filme parece conversar com uma parte de mim que acredita no processo artístico como uma forma de arte em si. Mas Showing Up não é tão chato: é uma comédia sobre uma mulher querendo fazer arte, mas a vida se intrometendo no meio. E é nesse vai-e-vem de vida e trabalho que Reichardt, com a ajuda de sua grande escudeira Michelle Williams, encontra sua arte. A arte do processo, das pequenas coisas, que se constroem devagar. Que preciosidade de filme.

Tár (Todd Field, 2022). Nenhum filme esse ano me deu material como o novo do Todd Field. Tár é um colosso de cinema, daqueles poucos filmes que tudo reverbera, que é difícil de apontar e classificar. E, ainda assim, é bem claro sobre o que ele quer: dissecar a alma de uma regente no topo do mundo, no seu poder máximo. Quando se tá no topo, porém, o único movimento possível é a queda. E Tár dá tons operísticos à queda de sua personagem título (Cate Blanchett, em uma performance pra vida toda). O verdadeiro filme ruminante — pra ficar mastigando por meses após visto.

O jogo: The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom

Captura de tela de "The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom": Link, um menino loiro, com traços e esguios, corre por uma ilha no céu, com uma relva dourada e ruínas no horizonte.

(Nintendo, Switch). Eu me debati muito se Mario ou Zelda levariam esse ano, mas foi em uma breve conversa com o Erê, a qual transcreverei abaixo, em que isso foi decidido:

Arthur: É Mario ou Zelda?
Erê: Zelda, né?
Arthur: É, é Zelda.

Significativo, porque Tears of the Kingdom, a continuação do monumentalBreath of the Wild, só fez sentido pra mim quando eu compartilhei o controle com o Erê, e nós tivemos algumas das madrugadas mais divertidas que eu tive em anos. Não só pra ver o que é possível de fazer nesse jogo gigantesco, mas também pra poder dividir essa aventura com alguém. TotK é um jogo de se criar histórias — sobre como você subiu aquela montanha, ou como construiu algo para enfrentar aquele quebra-cabeça — e depois contá-las, compartilhar notas e descobertas. É um jogo comunal, como seu antecessor foi, que expande e aprofunda os conceitos de BotW. Nem sempre de maneiras necessárias, mas sempre inesquecíveis.

E também:

Cocoon (Geometric Interactive; PlayStation, Switch, Windows, Xbox). Como seus antecessores, Limbo e Inside, Cocoon maneja entrar na sua mente. À primeira vista, parece ser um daqueles jogos que se joga automaticamente, que as respostas para seus quebra-cabeças são fáceis demais, ou lineares demais. Mas é a pura alquimia do próprio jogo: de apresentar seus conceitos tão bem e espaçá-los com uma cadência precisa para fazer você pensar na velocidade que seus desenvolvedores delimitaram. É uma delícia de jogar. De uma fluidez de botar inveja em muitos arrasa-quarteirão por aí.

Japanese Rural Life Adventure (GameSTART, Apple Arcade). Obrigado Victor, que me apresentou esse jogo depois de eu (finalmente) aposentar minha ilha em Animal Crossing. JRLA é, acredite, um Stardew Valley aperfeiçoado. Um simulador rural simples, mas charmoso, que me fez perder horas do meu dia enquanto eu tentava coletar bambu o suficiente para construir meu templo. Me fez querer ir morar numa fazenda no Japão, e a me questionar se minhas preocupações são realmente preocupações. Tá aí um novo objetivo de vida.

Lil Gator Game (MegaWobble; macOS, PlayStation, Switch, Windows, Xbox). Não foi só Breath of the Wild que ganhou continuação esse ano. Outro jogo seminal dos anos 2010, A Short Hike, ganhou uma sequência espiritual com esse jogo de aventura carismático e delicado. Inspirado em BotW e, de maneiras peculiares, Link’s Awakening, Lil Gator Game é uma aventura sobre um irmão se deparando com uma irmã que cresceu para além de suas brincadeiras de infância. Curtinho e lindo, foi uma boa entrada para o mundo deZelda antes de Tears of the Kingdom chegar.

Super Mario Bros. Wonder (Nintendo, Switch). Esse é o melhorSuper MariodesdeSuper Mario World (e tenho dito!!!), um jogo pingando criatividade e genialidade, imenso sem ser maçante. O único jogo que eu joguei esse ano em que eu cogitei que, talvez, tivesse superado TotK em sua engenhosidade. Em alguns momentos, eu ainda acho que sim. É tão — mas tão — divertido, de maneiras completamente inesperadas, que foi como jogar um Super Mario pela primeira vez outra vez. Que tipo de feito grandioso, e impossível, é esse?

A música: The Great Collapse

(Joe Hisaishi, The Boy and the Heron). Sabe o que eu mais gosto nos mitos de criação? Como eles dão precisão para os verbos mais complicados. Atos como criar a luz, ou assoprar a vida, são maiores do que a minha cabeça pode compreender. Mas eles trazem essa complexidade inteira com um toque de fascínio, de mágica.

Foi exatamente o mesmo sentimento, de excitação, de presenciar essa mágica primordial que dá vida e que cria sentido, que eu senti ao ouvir The Great Collapse, uma das músicas que Joe Hisaishi compôs para O Menino e a Garça, pela primeira vez. Como ver alguém dobrar um origami na frente dos meus olhos pela primeira vez. Ver algo que eu não sabia o que seria ganhar forma, e então significado. Eu não sei exatamente o que é isso que se cria ao ouvir essa música. Mas ele é real, eu sinto ele no fundo do meu peito. No infinito da minha mente.

E também:

A Running Start (Sufjan Stevens, Javelin). O delicado novo álbum do Sufjan Stevens é pra se ouvir de manhã, tomando café. De certa forma, qualquer música dele poderia estar nessa lista (foi, e ainda é, um dos álbuns que eu mais ouvi logo depois de acordar nos sábados). Mas tem algo em A Running Start que me chama a atenção. Talvez seja o lampejo de animação, ou talvez seja porque ela me faz parar e prestar atenção, não só servir como música de fundo enquanto eu lavo a louça do café da manhã. É íntima, como todo Javelin, mas é estranhamente etérea, como uma música ambiente. Entra na pele.

Deceiver (M83, Fantasy). O novo álbum do M83 foi a trilha-sonora do meu ano. Deceiver, em especial, me acompanhou em dois dos momentos mais inesquecíveis que eu tive. Muito pelo fato de eu estar ouvindo a música certa na hora certa: o primeiro raio de sol em uma estrada infinita, e Anthony Gonzalez gritando “Distance driver” com aquela imensidão musical que ele sabe criar? Foi a minha música do ano até o novo trabalho do Joe Hisaishi aparecer, quase que no último minuto.

Madrugada Maldita (FBC, O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta). A batida dessa música, a abertura do disco, é a mais contagiante que eu ouvi em anos. As letras continuam sendo o que menos me impressiona no trabalho de FBC, mas ele trabalha com o som que as acompanha em um espaço todo dele. Madrugada Maldita é uma daquelas músicas que eu não teria problema nenhum se durasse para sempre.

One Without (Oliver Coates, Aftersun). Provavelmente a música que eu mais ouvi esse ano, essa faixa da trilha-sonora de Aftersun me ajudou a decodificar o que torna o filme tão eficaz, e algo que eu tentei traduzir nesse texto. É um trabalho fantástico de entender o tom de um filme e transpô-lo para outro meio. É como ouvir a maré de um mar até então silencioso finalmente rugir.

A série: Succession

Sarah Snook, Jeremy Strong e Kieran Culkin em cena de "Succession": os três, em roupas pretas e formais, compartilham um abraço enquanto choram.

(4ª temporada, HBO). Talvez seja a resposta mais óbvia de se dar, mas também é a única que eu consigo. Misturando o tom farsesco com uma tragédia shakespereana, Succession finaliza com uma quarta temporada que alcança os pontos altos da segunda, e então os extravasa. Seja na perfeição de um episódio como Connor`s Wedding quanto a construção do arco narrativo que desemboca no devastador All The Bells Say, talvez a series finale mais emblemática desse lado de The Leftovers.

Succession sempre foi de difícil classificação. É uma série sobre seres humanos horríveis que, mesmo assim, nos força a ter empatia por suas dores (é o que nos diferencia deles, afinal de contas). É, também, uma comédia de erros, em que herdeiros se provam incapazes de navegar nos absurdos capitalistas que seu pai ajudou a fundar. É uma típica novela das oito, mas também é uma tragédia de como inescapável e destruidor pode ser o legado de nossas famílias em nós mesmos. É tudo isso, e é também uma baita duma série que me faz passar a vergonha alheia mais dolorosa, semanalmente. Vai fazer muita falta.

E também:

Alguém em Algum Lugar (2ª temporada, HBO). Já faz muito tempo que meu subgênero favorito da TV são as tragicomédias de meia-hora da HBO (Looking, Togetherness, Betty). Alguém em Algum Lugar talvez seja a melhor delas, e a sua segunda temporada aperfeiçoou os acertos da temporada anterior, expandindo a série em intensidade, e não em escopo. Uma série sobre procurar, encontrar e construir uma comunidade ao redor de si, é um deleite e uma preciosidade, sempre carismática e melancólica (e, quase sempre, as duas ao mesmo tempo).

Barry (4ª temporada, HBO). Por toda a sua trajetória na TV, Barry tem sido um joia oculta na programação. É uma comédia, mas não é engraçada. Na maior parte de suas duas últimas temporadas, é até muito depressiva. Mas é única e, se o experimento nem sempre funcionou (principalmente na terceira temporada), ainda assim entregou os episódios mais interessantes dos últimos anos. Unindo o cômico e o doloroso, Barry nunca perdeu o coração humano de seus personagens de vista. Não oferece nenhuma resposta fácil para os dilemas morais de um assassino arrependido, uma atriz arrependida, e um pai arrependido. Mas termina seus arcos com aquela precisão cirúrgica entre absurdo e humanismo em que Barry sempre encontrou algo de muito real.

Mrs. Davis (1ª temporada, seu torrent favorito). Que saudade que eu tava das séries de Damon Lindelof (The Leftovers, Watchmen). A estranheza perfeita. A construção de significados cumulativos através do tempo. O drama absurdo. O manejo entre a tragédia e a comédia. Não existem séries iguais às dele. Mrs. Davis, curtinha (vai ser uma antologia daqui pra frente), hilária e emocionalmente dilacerante em igual medida, faz as nossas perguntas difíceis que todo o mundo está com medo de fazer sobre IA. E as faz sem medo de olhar ao redor das respostas, e de questionar aquele belo e se que Lindelof sabe tão bem fazer. Aposta mais alto, e daí aposta mais alto ainda.

O Urso (2ª temporada, Star+). Das séries que parecem um milagre por existirem, O Urso mistura a comédia de espaço de trabalho com a tragédia da vida mundana. Todos os seus episódios beiram a perfeição (e Fishes e Forks a encontram), então é uma série boa de recomendar por momentos específicos. Para mim, porém, O Urso brilha pela construção, as vezes quase imperceptível, dos seus personagens. É uma série como as poucas que sabem construir e nutrir significado através do tempo. Seja com um talher, com um prato ou um jogo de olhares. O segredo de uma série que vai longe. Eu aceito, no mínimo, oito temporadas.

A sumaúma que comoveu Belém - SUMAÚMA

(texto, Helena Palmquist, SUMAÚMA). Me emociona toda a vez ler o relato sobre a morte da sumaúma. Um apelo à natureza, mas uma lembrança da nossa humanidade, capaz de velar a morte, mesmo daqueles tão diferentes de nós. Eu linkei pra esse texto no início do ano aqui no blog, e eu ainda paro para relê-lo de tempos em tempos.

Também me fez conhecer o site em si, SUMAÚMA, que se transformou em um dos meus feeds favoritos no meu RSS.

E também:

Aftermath (site). Meus escritores favoritos sobre jogos debandaram um a um, o Kotaku nos últimos anos. Foi difícil de acompanhar o trabalho deles desde então, em cadernos de jornais que foram terminados logo depois, ou em sites questionáveis. Um pouco disso porque textos sobre jogos ainda tem muito de publicidade, e o trabalho desse pessoal é questionador e difícil. Outro, porque jornalismo de jogos não é levado a sério, e publicações desistem logo que veem que a comunidade ao redor, geralmente avessa às críticas, tende ao violento. Aftermath segue o exemplo de Defector, e cria algo uma comunidade, sem publicidade, voltado para seus assinantes, e já tem alguns dos melhores textos desde o tempo deles no Kotaku. É bom ter eles de volta.

Everything is Alive Presents: The Animals (podcast, Radiotopia__). Pensando seriamente em tornar Everything is Alive um hors-concurs nessa categoria, porque todo o ano eles entregam um dos meus podcasts favoritos. Esse ano, um spin-off entrevista alguns animais sobre suas vidas, e o charme e deleite em encontrar humanidade em tudo continua. Curtinho, delicado e mágico, como sempre.

Radio Garden (site). Minha dificuldade de listar cinco músicas que me marcaram esse ano se deve ao Radio Garden, meu principal meio de ouvir música desde que eu o descobri: eu sintonizo em uma estação de rádio aleatória no mundo (eu ando gostando muito das rádios romenas, por algum motivo?), e fico ouvindo absurdos. Músicas que eu nunca vou ouvir de novo, comentários em idiomas que eu não entendo. Como a Wikipédia, o Radio Garden deixa o mundo grande.

The Retrievals (podcast, Serial Productions). Desde a terceira temporada de Serial, a equipe de produtores e escritores vem trabalhando em minisséries que seguem a mesma linha do podcast-fenômeno: uma história, contada com maestria em vários episódios. Esse método produziu alguns dos melhores podcasts dos últimos anos, como S-Town e We Were Three. The Retrievals talvez seja o melhor até aqui, e o meu podcast favorito no ano. O caso de um crime médico em uma clínica de fertilidade nos EUA é surreal, mas em cinco episódios, The Retrievals torna a dor e a injustiça palpáveis.

É isso! Muito obrigado por esse décimo ano acompanhando esse espacinho na internet. Muito obrigado, especialmente, ao meu amigo Raul, que fez a ilustração de capa do post (e o sanduíche que você vê em todas as páginas desse blog).

Feliz 2024, nos vemos lá!

“Origem”, o novo filme de Ava DuVernay

Eu não acompanhei muito o circuito de festivais de cinema desse ano, então não fazia ideia de que Ava DuVernay tinha um novo filme estreando esse ano. Bilge Elbiri, da Vulture, amou, mas disse que sua estrutura fragmentada não vai funcionar com todo mundo. Mas eu amo filmes-ensaio fragmentados (como Sans Soleil e Cameraperson), então minha empolgação foi lá pra cima. Ajuda que a prévia é excelente.

Origem ainda não tem previsão de lançamento no Brasil. Ele está fazendo o circuito limitado nos EUA agora, para poder concorrer a alguns Oscares, mas será lançado por lá em 19 de janeiro.

Big Walk é o novo jogo da House House, desenvolvedora do ótimo Untitled Goose Game, aquele charme de jogo em que você controlava (?) um ganso causando o caos em uma pequena cidade no interior do Reino Unido.

Big Walk parece ser diferente, mas tem o mesmo espírito do jogo anterior. É um mundo aberto de exploração e passatempos para se jogar com seus amigos, em que você controla uma espécie de smilinguido. É um “walker-talker”, como descreve a House House: um jogo para caminhar e conversar (e, as vezes, atirar seus amigos no mar). A previsão de lançamento é em 2025, o que o torna o segundo jogo mais esperado daquele ano.

Um ranking de todos os Super Mario

Durante a maior parte de 2017, ninguém suspeitava que algum outro jogo ia conseguir destronar Breath of the Wild dos prêmios de melhor jogo do ano. Foi o GOTY mais rápido e mais unânime que eu já vi: logo na semana do lançamento, no início de março, parecia que não importava o que fosse lançado, nada seria do tamanho do último Zelda. Até que outubro chegou e com ele veio o outro jogo que a Nintendo tinha preparado para o primeiro ano do seu novo videogame, Super Mario Odyssey chegou e as listas de final de ano indicavam que a Nintendo não tinha só um GOTY na manga. Se algum jogo fosse destronar um clássico instantâneo da Nintendo, só mesmo o próprio Mario.

Durante os meses seguintes ao lançamento de Odyssey eu não largava o jogo de jeito nenhum. Eu já tinha atingido o lado escuro da lua (e o lado mais escuro da lua), e o novo jogo do Mario ainda não tinha clicado em mim. O que esse jogo faz de tão bom que as pessoas denominaram como o melhor jogo de plataforma do Mario desde Super Mario Bros. 3? Por que ele não tinha funcionado comigo?

Essas perguntas ficaram na minha cabeça nos últimos dois anos, e eu decidi respondê-las com o único jeito saudável. Para entender o que faz um bom Super Mario, eu precisava jogar todos eles. Pra entender o que Super Mario Odyssey tinha de tão bom, eu precisava jogar por todas as fases que o jogo referenciava. E, mais importante, pra compreender o que me faz um fã dos jogos Super Mario, eu precisava observar o que me leva a amar esses jogos, e talvez entender exatamente o que nunca me pareceu no lugar em Odyssey.

Então me acompanhe na minha jornada de três meses em que eu joguei todos os jogos de plataforma do Super Mario, que podem também ser considerados três meses de febre intensa em que eu nunca tive tanta raiva da imprecisão dos meus dedos enquanto um Bullet Bill me persegue enquanto eu cruzo um bosque cheio de Koopas e morro não porque o Bullet Bill me alcança ou porque eu errei um pulo e um Koopa acabou me pegando, mas porque eu fui tentar pegar uma moeda que eu nunca precisava em primeiro lugar e logo acima dela tinha a porra de um espinho e puta que pariu eu amo esses jogos demais.

Nota de atualização: esse post foi publicado originalmente em 14 de agosto de 2019, e foi atualizado em 28 de novembro de 2023 para incluir Bowser’s Fury e Super Mario Bros. Wonder.

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22. New Super Mario Bros. 2 (3DS, 2012)

Vamos deixar claro que nenhum jogo de plataforma do Mario é ruim. Essa é a franquia mais bem cuidada da Nintendo, e o padrão de qualidade é muito alto. Ainda assim, o aparato técnico e a criatividade que são dois elementos que elevam outros jogos da série à algo próximo da perfeição não salvam New Super Mario Bros. 2 da sensação de que esse jogo é apenas um cash grab. A própria temática do jogo parece um meta-comentário da Nintendo pra existência dele: Mario agora quer ficar (mais) rico, e a principal missão do jogo é você coletar o máximo de moedas possível.

Coletar moedas é um aspecto essencial dos jogos de plataforma do Mario, e em muitos é um dos desafios mais difíceis que existem para que jogadores mais experientes possam voltar em fases mais simples e encontrarem um novo nível de dificuldade que beira à insanidade emocional. NSMB2 coloca esse aspecto na frente e acaba por tirar todo o fator de replay que a franquia aperfeiçoou por décadas. Nos seus melhores momentos, NSMB2 é uma versão bem simplória de uma das melhores séries dos videogames; nos seus piores, é uma visão desesperadora da Nintendo de tentar conseguir um dinheiro rápido enquanto o Wii U afundava.

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21. Super Mario Land (Game Boy, 1989)

NSMB2 é o único jogo dessa lista que pode ser considerado desnecessário. Cada Super Mario apresenta algum novo aspecto do gênero de plataforma ou aprofunda uma mecânica até ela parecer completamente revolucionária. Super Mario Land, o primeiro jogo do gênero em um dispositivo portátil, não faz nada disso, mas apresenta o conceito básico da jogabilidade da franquia em uma nova escala. É um jogo curto com fases muito curtas, que parece ter sido pensado para ser jogado em intervalos de cinco minutos ou menos.

Super Mario Land só não é um jogo melhor porque é curto demais, mas ele também não tem grandes ideias para expandir como seus irmãos maiores fizeram. Então… isso também é algo bom? Ajuda que alguns níveis são tão bem fechadinhos que dá vontade de você se aperfeiçoar neles até conseguir terminá-los em 30 segundos. E isso é bem difícil de fazer.

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20. Super Mario Run (iOS/Android, 2016)

Geralmente os jogos do Mario apresentam uma mecânica de jogabilidade de uma forma simples, e vão gradualmente dificultando e reformulando ela conforme as fases seguintes. Quando você volta para uma fase anterior, você descobre que seu novo domínio dessa determinada mecânica possibilita descobrir passagens secretas com inimigos mais difíceis ou especiais.

No primeiro jogo de plataforma fora de um console da Nintendo, Super Mario Run pula por todo o período de adaptar seu jogador à uma mecânica, e vai direto ao ponto: em uma mistura única de endless runner com plataforma, SMR já começa demandando ao jogador a extrapolar a tela de toque do seu celular. É uma curva de aprendizado que a série nunca explorou com tanta força antes, e que demora para começar a recompensar o jogador. Eventualmente, Super Mario Run supera esses tropeços inicias e entrega uma experiência que é desafiadora mas divertida com um multiplayer simples, mas muitíssimo eficaz.

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19. Super Mario Bros.: The Lost Levels (Famicom, 1996)

Talvez a coisa que mais me impressionou jogando os Super Mario um atrás do outro por meses seguidos foi perceber como esses jogos aperfeiçoaram o balançeamento de jogabilidade. Super Mario sabe ensinar o seu jogador uma mecânica sem nunca pegá-lo pela mão, e então incentivá-lo a aperfeiçoar essas mecânicas com estágios cada vez mais desafiadores. Quando a franquia subverte uma regra é para ensinar algo ao jogador, e não para vencê-lo. É uma regra de confiança que a maioria dos Super Mario segue à risca.

Não é o que The Lost Levels faz. Lançado originalmente como a continuação direta do Super Mario Bros. original no Japão, e chegando no ocidente uma geração depois como parte do pacote Super Mario All-Stars, The Lost Levels é um jogo que subverte muitas das regras fundamentais do jogo anterior de Mario mais para aumentar a dificuldade do que para propôr uma nova maneira de jogar. Inimigos são empilhados ou escondidos, espinhos e buracos aparecem inesperadamente, e bugs infestam essa versão do jogo. Jogar The Lost Levels nem sempre é recompensador como os outros jogos são, mas é um dos títulos da série que envelhece muito bem graças aos glitches que permitem aos jogadores descobrirem todas as excelentes formas de quebrar o jogo.

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18. Super Mario Sunshine (GameCube, 2002)

Olhando agora, Super Mario Sunshine é o jogo perfeito para continuar o legado de Super Mario 64. Não teria um jeito mais Mario (e mais Nintendo Geração GameCube) do que levar os personagens para uma ilha paradisíaca e apresentar toda uma nova jogabilidade baseada no FLOOD, um instrumento que serve como veículo/arma de Mario, que precisa limpar as manchas de petróleo da Ilha Delfino.

Sunshine é perfeito também por dificultar a comparação com Super Mario 64. Se o jogo anterior reintroduzia todos os conceitos de Mario para uma dimensão nova, o Mario do GameCube não tem uma missão tão importante. Ele é mais uma prova de que a execução de 64 foi tão impecável que muito pouco precisou ser aperfeiçoado em termos de jogabilidade — e o FLOOD, a grande novidade, é mais um artifício para impressionar com uma ou outra invenção bacana, mas nada que a franquia fosse herdar.

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17. Super Mario Land 2: 6 Golden Coins (Game Boy, 1992)

A simplicidade de Mario Land é uma qualidade e um problema para o primeiro Mario portátil, mas Super Mario Land 2 encontrou o ponto ideal entre um jogo mais breve mas que parece um Super Mario: os estágios mais curtos se transformam em experimentos únicos em que os desenvolvedores permitem apresentar uma mecânica diferente de cada vez, e remixando-as com os bonés que dão ao Mario seus superpoderes.

Essa experimentação se estica até o ponto que Land apresenta um vilão novo, uma versão ao contrário de Mario (Wario, que hoje em dia tem suas próprias aventuras) e uma jornada mais pessoal para o herói em um mundo que as vezes parece o oposto do Reino do Cogumelo. Land 2 é uma constante brincadeira, com seus visuais cartunescos e uma aparente simplicidade que está sempre surpreendendo por causa do seu fator de replay. É provavelmente tudo o que o Land original precisava ser.

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16. New Super Mario Bros. (DS, 2006)

New Super Mario Bros. foi o primeiro jogo do Mario em 2D em onze anos (desde Super Mario World 2: Yoshi’s Island em 1995). A linha de jogos do personagem para o Game Boy Advance foi uma série de remakes dos clássicos, e o Nintendo DS precisava de algo novo mas parecido para tomar o lugar do atual rei da empresa. E New Super Mario Bros. era exatamente isso.

NSMB segue à risca a fórmula de plataforma que os clássicos Super Mario Bros. 3 e Super Mario World definiram décadas antes e apresenta poucos elementos que adicionam à experiência — um cogumelo gigante e um pequenininho são os mais divertidos. Mas o visual novo e o uso inventivo das duas telas do DS fazem New Super Mario Bros. ser refrescante de jogar: é exatamente aquele Mario que a gente conhece e que tinha sumido por um tempo, mas está mais bonito e colorido. Como não amar?

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15. Super Mario Bros. 2 (NES, 1992)

De maneira semelhante a Super Mario World 2: Yoshi’s Island, a continuação americana para Super Mario Bros. (que no Japão recebeu o título de Super Mario USA) fundamenta as mecânicas de jogabilidade de vários personagens, como os pulos longos de Luigi, a velocidade de Toad ou o vestido que flutua da Peach. Hoje essas mecânicas são básicas e são exploradas de formas diferentes em cada jogo da franquia, mas em SMB2 elas brilham como fator central da jogabilidade.

Super Mario Bros. 2 ainda é uma continuação de um jogo muito maior, mas as mecânicas diferentes de seus personagens fazem com que os estágios sejam repletos de segredos muito específicos que só podem ser desbloqueados em condições específicas, o que faz o jogador querer voltar a esse jogo diversas vezes (algo que a Nintendo ia aperfeiçoar tanto nos jogos seguintes que foi um problema pra execução própria deste post!)

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14. Super Mario Odyssey (Switch, 2017)

É um problema fazer um ranking de jogos tão bons porque parece que eles não são tão bons assim. Mas acredite, mesmo estando em 12º nessa lista, Super Mario Odyssey é um dos melhores jogos dos últimos anos. É um jogo que expande Super Mario 64 mas que, diferente do que Sunshine faz, não o faz de formas superficiais. Odyssey leva Mario a vários outros reinos novos para poder expandir os limites criativos de um jogo do Mario para além dos conceitos que a série fundamentou nesses trinta anos.

Odyssey transforma Mario em sapos, árvores, estátuas e até mesmo em Goombas para apresentar todas as novas maneiras que os futuros jogos da franquia vão poder explorar mais a fundo. É um jogo imenso que está sempre apresentando uma mecânica nova em uma série de desafios tão bem concatenados um ao outro que é fácil de você achar que o jogo é curto, mas na verdade você está 17 horas sentado na frente do sofá (aconteceu).

Mas também, embora apresente tantas mecânicas novas e satisfaça até mesmo o mais experiente dos jogadores, que vai conseguir realizar os movimentos dificílimos que o jogo pede com sequências de botões surreais, Odyssey nunca leva todas essas mecânicas a um clímax onde elas se complementam da mesma forma que outros jogos da franquia conseguiam. Ao invés de dificultar, jogos como Mario 64 e Galaxy 2 brincam de reformular suas mecânicas somando umas às outras de maneiras inventivas que nos fazem repensar os fundamentos de Mario. Odyssey nunca vai a tal ponto, mas nos apresenta todas as novas brincadeiras que em breve vão ser elevadas dessa forma.

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13. New Super Mario Bros. U (Wii U, 2012)

Muitas vezes é difícil de ver porque um jogo do Mario é bom, como eu falhei com Odyssey antes. New Super Mario Bros. U não faz pouca coisa, e mesmo assim é fácil confundir ele com mais do mesmo. Mas é um jogo que está trabalhando incansavelmente em retribuir a habilidade do jogador com desafios à altura sem nunca desencentivá-lo. Considerando que o jogo faz isso tão frequentemente, é fácil esquecer o quão difícil é conseguir alcançar esse balanço delicado. Mas essa é a magia de Super Mario, fazer a perfeição da jogabilidade parecer ter sido feita naturalmente, tão naturalmente quanto pular de um barranco na cabeça de um Koopa, jogando o casco dele em uma fileira de Goombas e ganhando um 1-Up com isso.

É gratificante como poucas coisas nessa vida. E NSMBU faz isso em um jogo enorme, e na quarta potência (e ei, pra um jogo dessa década funcionar tão bem em um videogame já é um milagre, imagina num Wii U).

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12. Super Mario World 2: Yoshi’s Island (SNES, 1995)

Yoshi’s Island é uma continuação de um jogo quase perfeito, e não tem o fôlego de Super Mario World. E nem quer ter, porque é um experimento de Miyamoto em expandir o universo de Super Mario tanto em visual quanto em cânone. E em ambos os sentidos, Yoshi’s Island excede expectativas. É um jogo fantástico que impressiona até hoje, e que define muito do que a gente conhece do Yoshi.

Em World, Yoshi possui duas características principais: sua língua comprida e sua velocidade. É fácil esquecer que não é de SMW que o pulo flutuante e o carisma do Yoshi que são característicos do personagem. Yoshi’s Island apresenta esses detalhes através de uma mecânica de jogabilidade tão intensa e intrincada com seus visuais riquíssimos (o jogo faz o SNES suar) ao expandir as capacidades do dino que pode atirar ovinhos (!), mudar de forma (!!) e tem uma voz fofa pra caramba (!!!). É tão estranho a gente não lembrar tanto de Yoshi’s Island hoje em dia, porque muito do que consideramos fundamental da franquia foi apresentado aqui.

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11. Super Mario Bros. (NES, 1985)

Imagina como deve ser difícil você criar um personagem que o jogador possa confiar suas habilidades. Saber que quando você apertar o botão de pular com determinada intensidade, o personagem vai pular em determinada distância. Que, quando apertar o botão de correr, ele vai demorar tantos passos para impulsionar, e vai derrapar por mais tantos passos.

Por trás da aparente simplicidade de um jogo como Super Mario Bros. vive a exceção à regra que os jogos dessa série levam como cotidiano: a extrema perfeição de jogabilidade, de um game design calculado de tal maneira que retribui o jogador por aprender uma mecânica ou por aperfeiçoá-la. É tão difícil fazer isso, e é mais difícil fazer isso parecer tão natural como Super Mario Bros. faz ser. E ele ganha mais pontos pela sua simplicidade — é um jogo que pode ser vencido em menos de uma hora, porque essa perfeição natural se estende a cada elemento na tela em um tempo que era necessário calcular o quanto era possível colocar num cartucho. Cada bloco e cada pulo de Mario teve que ser calculado para esse jogo ser tão bom quanto pudesse ser. E hoje, mais de trinta anos depois, ainda é.

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10. Super Mario 3D World (Wii U, 2013)

Super Mario 3D World  expande as experiências de habilidades de personagens de Super Mario Bros. 2 com o multiplayer de New Super Mario Bros. Wii e o game design intrincado de Super Mario 3D Land. E mesmo assim ele consegue ser mais do que apenas um monte de experimentos juntos, porque ele próprio tem novas ideias para explorar.

3D World expande e preenche os mundos de 3D Land para dar mais espaço para os quatro jogadores poderem explorar os níveis com liberdade o suficiente, mas mesmo assim o jogo continua sendo baseado em cursos e todos precisam seguir até o poste que termina esses cursos. Mas ao invés de incentivar o caos como NSMBW, 3D World investe em permitir que os jogadores explorem esses cursos da forma que melhor suprir seus personagens. Ajuda também que o jogo retribui com uma pancada de itens (inclusive a novíssima roupinha de gato que meu deus) e uma beleza visual que dá inveja até mesmo no Odyssey.

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9. New Super Mario Bros. Wii (Wii, 2010)

Aqui vai um grande segredo: New Super Mario Bros. Wii não é um jogo do Super Mario. É um jogo com os personagens de Mario e parece um jogo de plataforma. Mas na verdade o que move ele é o mesmo preceito de Super Smash Bros.: completo caos.

NSMBWii pode ser jogado como um jogo singleplayer, mas isso honestamente é contra seu propósito: é um jogo com cenários espaçosos que está pronto para deixar os quatro personagens (Mario, Luigi e dois Toads) se destruirem enquanto decidem quem vai conseguir alcançar o poste no final dos cursos. Em certos momentos sequer importa que a câmera está mais distante dos personagens, é impossível ver qualquer coisa porque alguém explodiu um Koopa que bateu num POW e tudo se transformou em moeda e agora todo o mundo morreu em menos de três segundos.

Sério, é perfeito.

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8. Bowser’s Fury (Switch, 2021)

Talvez o jogo mais curto da série desde Super Mario Land, e divulgado como um “conteúdo bônus” para o relancamento de Super Mario 3D World no Nintendo Switch, Bowser’s Fury é o pequeno notável: o experimento que pode se transformar na fórmula de sucesso para o futuro dos Super Mario em 3D.

A mecânica é genial, e extrapola o conceito de “Mario em mundo-aberto” explorado nos reinos de Super Mario Odyssey. Em Bowser’s Fury, o vilão está dominado por uma substância que o tornou gigante e furioso, uma espécie de Godzilla mesmo, e Mario precisa enfrentá-lo de igual para igual, se transformando em um Mario-Gato super saiyajin. Para isso, você precisa coletar “sóis” que iluminam os farois do arquipélago de ilhas que você e Bowser Jr. se encontram, e é você que decide como vai fazer isso. Tem sóis por todos os lados, alguns mais difíceis que os outros, e praticamente qualquer um deles está disponível depois de você liberar o primeiro farol. Itens são intercambiáveis, e os desafios em plataforma são tão bem integrados com a exploração do mundo aberto, que parece um trabalho de relojoeiro, de tão preciso. Bowser’s Fury estabelece um parâmetro muito alto para os próximos Super Mario em 3D e de exploração livre, algo que vem muito de como os desenvolvedores dominam tão bem o legado de…

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7. Super Mario 64 (N64, 1996)

Super Mario 64 tem o peso da idade, sem dúvidas. Eu tenho a impressão que mecânicas em 3D tendem a envelhecer mais do que as em 2D, e mesmo que Mario 64 tenha feito tanta coisa tão bem, o fato é que suas plataformas são mais imprecisas do que deveriam, os seus movimentos são mais truncados e… bem, o jogo não é tão bonito quanto um dia a gente pensou ser.

Isso faz com que Super Mario 64 seja pior de jogar hoje em dia do que Ocarina of Time, por exemplo, que depende menos da mudança visual e mais do design dos dungeons. Mas quando Mario 64 pede para explorarmos seu game design lembramos porque o jogo nos vislumbrou nos anos 90: não só esse mundo do Mario é lindo mesmo quadriculado e com esses ângulos estranhos, mas ele está disposto a todo o momento em pegar algo que você conhecia da plataforma em 2D e dar literalmente uma dimensão nova enquanto explora uma forma de você experimentar ela através de um espaço novo (quando o jogo experimenta com profundidade vertical no mundo do relógio, lá no final, dá vontade de entrar na tela da TV e beijar seja lá quem foi esse game designer).

Ajuda muito que Mario 64 ainda é muito divertido de jogar: há um apreço pelos detalhes no jogo que estabeleu um nível muito alto para seus sucessores bater (e é compreensível porque Sunshine teve que se esticar do jeito que se esticou para ser inventivo). 64 brinca com a ênfase dos seus conceitos mais simples para revitaliza-los e prepará-los para toda uma nova geração. Considerando que demorou anos para que outros jogos alcançassem esse patamar, e mais ainda para superá-lo, é um legado imenso que o escopo de Mario 64 faz questão de nos lembrar — desde os controles de câmera até os pulos infinitos de Mario, tudo aqui parece novo a todo o momento, e ainda assim funciona do mesmo jeito que funcionava antes. É como mágica.

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6. Super Mario Galaxy (Wii, 2007)

Odyssey é um retorno do Mario à fórmula de 64 e Sunshine, em que Mario pode explorar livremente um amplo espaço aberto. Durante a geração do Wii, a Nintendo decidiu reconsiderar a forma que os jogadores abordavam esses espaços, criando delimitações com a câmera do jogo para direcionar os jogadores do ponto A ao ponto B de forma mais direta.

Se isso faz você imaginar que Super Mario Galaxy é um jogo que restringe a jogabilidade mais do que seus antecessores, não se engane. Galaxy usa essa delimitação da câmera para reconsiderar os espaços 3D que Super Mario 64 nos apresentou na década anterior. Levando em conta uma nova relação com a gravidade e a forma como Mario pode explorar mundos distintos, Galaxy extrapola os sentidos de direção do jogador fazendo plataformas mudarem de lugar ou transformando cursos de 3D em 2D e de volta em 3D de forma orgânica. O que é teto vira chão e planetas feitos por um oceano gigante apresentam essa nova relação de Mario com seus cenários com surpresas constantes e aquela sensação de estar conduzindo o único personagem que você pode confiar para explorar esses lugares com a precisão necessária.

Poucos jogos são tão perfeitos como Super Mario Galaxy, que tem o uso mais ideal do sensor de movimentos do Wii e explora o poder de processamento do videogame até o seu limite. É impressionante como a Nintendo conseguiu tirar visuais tão lindos e tão únicos de uma plataforma tào fraca, mas Galaxy faz isso 120 vezes seguidas.

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5. Super Mario 3D Land (3DS, 2011)

É comum ouvirmos que toda a vez que a Nintendo lança um videogame é preciso esperar pelo Super Mario para ver por que o videogame existe. E, honestamente, Super Mario 3D Land é basicamente o pretexto para que o 3DS exista. 3D Land é um exercício de criar níveis visualmente intrincados que mais parecem vindos de um The Legend of Zelda, com todos esses elementos que se conversam e que precisam ser explorados para que você possa seguir em frente.

É exatamente essa pequena revolução que torna 3D Land em um título como nenhum outro na franquia. Uma caixa bem escondida que só pode ser descoberta se você encontrar uma tocha e usar a Fire Flower nela esconde os níveis menores e permite que eles possam ser explorados de formas menos lineares.

3D Land também é lindo. Herdando a beleza visual de Galaxy, o jogo usa o poder gráfico do 3DS para entregar um dos mundos mais vívidos da franquia, cheio de cores, texturas e pesos. E tem uma pequena surpresa final, quando você enfrenta o Bowser e descobre que essa é só a primeira metade do jogo, apresentando depois ainda mais boas ideias para você explorar.

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4. Super Mario Bros. 3 (NES, 1990)

Super Mario Bros. elevou à perfeição a relação entre jogador e personagem. Mas é Super Mario Bros. 3 que elevou todo o resto do game design ao mesmo nível. Do mapa de mundos ao ritmo das fases, que possuem ênfases e climaxes, Super Mario Bros. 3 pega toda a ambição de game design da Nintendo e as une de uma forma compreensível, onde uma leva à outra até que as mecânicas se somam e se confundem, se transformando em um sistema complexo de labirintos e inimigos que funcionam exatamente do jeito que você espera, e ao mesmo tempo se tornam mais desafiadores conforme você vai tomando conhecimento de como eles agem.

SMB3 foi lançado já no fim da vida do NES, e por anos os consoles de 16 bits que o sucederam receberam inúmeros clones do jogo que não só deixavam claro como era difícil alcançar tamanha criatividade como a equipe de Miyamoto alcançou, mas também como a técnica estava muito a frente de seu tempo. Super Mario Bros. 3 ajustou praticamente todas as mecânicas do jogo, desde o tamanho do pulo do Mario à distância da câmera para suas medidas ideais. É uma tentativa de alcançar a perfeição que se transformou em um fantasma para a franquia, mas que nunca soou como um peso, e sim como um legado. É difícil conseguir fazer algo tão bem como Super Mario Bros. 3 fez com seu gênero. Mas chegar perto de algo assim já é bom o suficiente.

Coloque um controle na mão de uma pessoa ela aprenderá os conceitos mais básicos logo na primeira tela de forma quase instintiva. Super Mario Bros. 3 conversa com seu jogador de uma forma íntima e animal. Não é a toa que ainda é considerado o ápice da franquia e um dos melhores jogos de todos os tempos. Ele é. É só jogar para provar.

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3. Super Mario Bros. Wonder (Switch, 2023)

Não precisava ser tão bom assim. O retorno da Nintendo ao Super Mario em 2D, e o primeiro não sendo um New Super Mario em 17 anos, é um absurdo. Super Mario Bros. Wonder é um jogo tão repleto de ideias, que uma fase possui mecânicas que poderiam ser exploradas em jogos inteiros.

E Wonder, como os melhores Super Mario, não é sobre coesão. É sobre excesso. É um apanhado gigante de ideias e experimentos que se conversam de maneiras únicas, todas de maneiras imprevisíveis. Já em sua segunda fase, apresenta um musical de Plantas-Piranha, e a coisa só cresce exponencialmente a partir daí. E isso até metade de cada fase. A outra metade, influenciada pelas Flores Fenomenais, mudam absolutamente tudo, apresentando ainda mais ideias e experimentos.

Super Mario Bros. Wonder consegue o feito magnífico de apresentar Super Mario a você pela segunda vez. Ainda é, fundamentalmente, o mesmo jogo, a mesma fórmula, dos clássicos. Mas é tudo novo, de novo. Desde a apresentação visual, cuidadosamente reconstruída para se tornar em uma continuação espiritual de Super Mario Bros. 3 e Super Mario World, aos níveis repletos de segredos e caminhos intrincados, que remetem tanto ao Super Mario Bros. original quanto a World, tudo é pensado no menor detalhe, trazendo mudanças fundamentais que parecem heresia antes, mas são obviamente uma evolução necessária depois de experimentá-las (a retirada do timer nas fases, por exemplo, libera a exploração do jogador da urgência de finalizá-la, tornando toda a experiência muito mais rica e divertida). É um jogo cheio de vida, cheio de ideias, e cheio daquela magia que apaixonou o mundo pelos videogames nos anos 80 e 90. E está de volta agora.

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2. Super Mario Galaxy 2 (Wii, 2009)

No fim das contas, Super Mario são jogos de confiança. Você quer subir aquela colina em Super Mario Galaxy 2, que é difícil de subir onde a gravidade é um obstáculo a ser dominado, porque sabe que atrás dela os desenvolvedores te deixaram uma surpresa. Quando você finalmente consegue, e descobre o que é, é aquele misto de recompensa e confiança que uma boa relação possui — ambos estão investidos na mesma medida. O desenvolvedor sabia que você era capaz de chegar até lá, e você sabia que ele tinha deixado algo lá para você.

É difícil, como um desenvolvedor, criar essa confiança com a pessoa que vai interagir com o punhado de códigos que você coloca na frente dela. Seja na forma de um jogo ou de um editor de texto, essa relação depende de expectativas e desejos e, principalmente, de confiança. Galaxy 2 tem um legado imenso para defender — ele é o ápice criativo de uma equipe, e uma segunda chance dessa equipe de mostrar tudo o que é capaz de fazer. É um jogo que sequer consegue conter todo o conteúdo que foi desenvolvido para ele. É feito com uma diversidade de vozes e de experiências, e respeita todas elas. Você aprende a compreendê-las e a respeitá-las. Desde aquele pulo milimetricamente mais longo que você precisa dar para alcançar uma nuvem e pegar a centésima moeda, ou aquele estágio em que você não consegue ver o chão, mas já está tão acostumado com o ritmo daquela galáxia que você simplesmente sabe, instintivamente, onde tem que pular.

É algo que Galaxy já fazia, mas não com a mesma frequência ou intensidade. Galaxy 2 não só eleva tudo à enésima potência, mas também reapresenta o Yoshi na jogada, que revitaliza as mecânicas de Yoshi’s Island que há anos foram relegadas a spin-offs. Super Mario Galaxy queria dar a impressão que você atravessava um espaço sideral de fases do Super Mario, mas é Galaxy 2 que entrega essa promessa naquele que talvez seja o jogo 3D definitivo.

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1. Super Mario World (SNES, 1991)

É difícil perceber, hoje em dia, o pulo tecnológico que foi dado entre o NES e o SNES. Mas o dobro de poder de processamento é muita coisa. Seja de 8 para 16 ou de 512 para 1024. Mas é fácil de ver ele em execução: coloque Super Mario Bros. 3 e Super Mario World lado a lado e você vê que perfeição de game design não envelhece, mas com certeza melhora quando há mais para se jogar.

É na variedade, na constante surpresa, no escopo. Se SMB3 parecia espremido em um cartucho de NES com tanto conteúdo, Super Mario World parece se estender com tantas fases para explorar e tantos caminhos para desbravar. Se a mecânica já havia sido aperfeiçoada no jogo anterior, cabe a Mario World colocar ela à prova na exaustão em um jogo imenso que retribui os jogadores menos experientes com a sensação de estarem desbravando um jogo que constantemente pede mais de suas habilidades; e retribui os mais experientes com ainda mais fases para aprender e se aperfeiçoar.

Seu nível de qualidade é tão alto e tão constante que é difícil de absorvê-lo em uma só sessão como os outros jogos do Super Mario foram pensados antes dele. Explorando fases que são extensas e propositalmente cansativas, ou fases que desvirtuam completamente aquilo que o jogador espera de determinada mecânica, World está disposto a, de forma semelhante a Odyssey anos depois, extrapolar e apresentar o máximo possível de novas possibilidades para o jogador. Mas em World há uma clara progressão de jogabilidade — um ponto em que essas mecânicas convergem ou que trabalham para levar o jogador a uma experiência específica.

Seu mapa imenso e cheio de passagens secretas e caminhos alternativos liberta o jogador a experimentar o jogo da sua própria maneira, e o pulo tecnológico da Nintendo permite que seus desenvolvedores possam experimentar com novos modos de jogo em um jogo de plataforma. O que resulta é um jogo de aprendizado, troca, e descobertas constantes, onde Super Mario encontra um ápice criativo e nunca é desapontado pela sua plataforma (algo que é meio constante com os videogames da empresa). É um jogo que foi feito na hora certa para a plataforma certa, que expande aquilo que sabemos que pode ser um jogo do Super Mario para todo o dobro de poder de processamento. Algum jogo pode parecer ser maior e mais diverso e mais repleto de vida que Super Mario World?

Ah, e tem o Yoshi, que coloca tudo isso em dobro na sua frente. É só dar um soquinho na cabeça dele.

O momento em que eu me apaixonei por “The Bear”

Meu momento favorito de The Bear acontece no quarto episódio: Tina, uma das cozinheiras mais antigas do restaurante em que a primeira temporada da série se passa, precisa apresentar um purê novo para a avaliação da nova chefe, Sydney. Durante todo o episódio (e por parte dos episódios anteriores), Tina e Sydney se confrontaram. A novata quer implementar um novo sistema na cozinha do “The Beef”, e Tina não quer saber.

É o clássico setup de uma série de espaços de trabalho: uma pessoa nova quer mudar como as coisas funcionam, alguns colegas se adaptam bem, mas os mais experientes não aceitam a mudança, até perceberem que ela veio para o bem. O que torna esse momento incrível em The Bear é que ela une justamente o que faz a série ser brilhante pra mim: ela usa a brutalidade visual e do ambiente (a cozinha do “The Beef” não é saudável para a cabeça de ninguém) e vê dessa brutalidade sair algo muito humano e sensível.

Não só o purê que Tina precisa entregar é de uma delicadeza (quando ela prova o leite com ervas que Sydney preparou para ela é um detalhezinho brilhante de construção de personagem), mas a crueza estética de The Bear realça quando um breve momento de beleza acontece. Nesse caso, quando Tina leva o purê para Sydney provar, Sydney elogia o prato com um misto de surpresa e costume: sim, está gostoso, mas é claro que está gostoso — foi a Tina que fez, e ela é uma grande cozinheira. Em uma breve troca, The Bear aproxima essas personagens enquanto elas se nivelam.

The Bear sabe ser cruel. É uma série de momentos bastante cruéis em um ambiente cruel, mas é na beleza que essa crueza cria, de vez em quando, que mora tanto a genialidade da série quanto, eu acredito, a de uma cozinha. Tina errou o processo do purê várias vezes durante o episódio. Mas quando ela acertou, um breve momento em que duas grandes personagens finalmente se encontram no mesmo patamar acontece. The Bear não precisa chamar atenção para esse momento esteticamente. Já no quarto episódio de sua primeira temporada, a série já ensinou o espectador a saboreá-los.

O Talking Heads decifrou o que faz “Stop Making Sense” ser um grande filme

Stop Making Sense, o filme-concerto dirigido por Jonathan Demme para a turnê dos Talking Heads lançado em 1984, foi restaurado e relançado no Festival de Toronto esse ano.

No debate com Spike Lee após a exibição do filme, os integrantes da banda (reunidos pela primeira vez em vinte anos) simplesmente entregaram a melhor descrição do faz Stop Making Sense ser considerado o melhor filme-concerto já feito. Em um relato de Jill Krajewski para a Vulture:

“Eu percebi que ele [Demme, o diretor] estava encarando como um filme de conjunto”, disse Byrne sobre o diretor falecido. “Você tem um grupo de atores, você acaba conhecendo cada um dos personagens, e então você assiste eles interagindo uns com os outros. Eu pensei, eu estou no meu próprio mundo, mas ele enxergou o que estava acontecendo ali”.

A comparação com “filme de conjunto” (ou “ensemble film”) é perfeita, e algo que eu não tinha percebido nem visto alguém ter feito antes. Um filme de conjunto constrói cada personagem, para então exibir todo o grupo se confrontando ou trabalhando junto (geralmente, um caos entre as duas coisas). É assim com Nashville e MASH, por exemplo. Dois grandes filmes de conjunto dirigidos por Robert Altman que, junto com Max Ophüls, é considerado o grande diretor desse tipo de filme.

Quando um filme acerta, o resultado é mágico. Você entra na dinâmica que o diretor quer capturar e vê, ao mesmo tempo, cada um dos personagens pelo que são, e como eles coexistem juntos.

Pra ter uma ideia de como funciona, essa performance de “Once Upon a Lifetime” em Stop Making Sense é um bom exemplo. Note como o filme se preocupa em exibir cada integrante da banda tocando o seu som, mas perceba como a sua mente “soma” cada uma das ações, formando a performance da banda. Você entende os comportamentos deles como um grupo tanto quanto como indivíduos:

Uma prova do que fazia Demme o grande diretor. Ele entendia como dar espaço para compreendermos seus personagens, por mais difíceis que eles fossem. É o que torna, por exemplo, O Silêncio dos Inocentes no grande filme que ele é: ele absorve tanto o modo como Clarice enxerga o mundo, que você começa a enxergar como ela; o que torna o baque de conhecer Hannibal tremendo tanto para o personagem quanto para o espectador. Em O Casamento de Rachel, ele estende essa empatia para toda uma família de uma forma muito parecida com o que Demme fez em Stop Making Sense, eu acabei de perceber.

O trailer do misterioso novo filme do Studio Ghibli

O novo (e, ao que tudo indica, último) filme de Hayao Miyazaki no Studio Ghibli foi lançado no Japão com quase nenhuma divulgação. Tudo o que as pessoas sabiam era o título e o belíssimo cartaz:

Para o lançamento americano em dezembro, a distribuidora G-Kids divulgou esse trailer, que mostra algumas das imagens estonteantes que os filmes do estúdio costumam ter, mas muito pouco sobre a história.

É mais sobre o tom do filme do que qualquer outra coisa. Acho que os melhores trailers são assim. Você vai preparado para o tom do filme, sem saber muito de como a história vai progredir.

O novo filme, intitulado como O Menino e a Garça nos EUA (o título japonês é Como Você Vive), não tem data de estreia no Brasil. Como é quase certo que ele vai para o Oscar de melhor filme de animação, eu não duvido que chegue aqui no início do ano que vem.

“The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom” dá vida a Hyrule

Imagem promocional de The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom - Link corre em uma ilha voadora, repleta de vegetação dourada.

Uma das minhas memórias favoritas em Breath of the Wild é também uma das mais mundanas: eu subi em uma pequena colina e, lá de cima, eu enxerguei uma fumaça subindo entre as árvores de um bosque. Indo até lá, eu vi uma pessoa — uma das primeiras pessoas que eu encontrei enquanto caminhava por Hyrule pela primeira vez, já com algumas horas de jogo. Ele estava sentado ao lado de uma fogueira, e me comentou sobre como é difícil de ver pessoas por ali. Ele me comentou sobre as ruínas de Hyrule, e para onde eu poderia ir se quisesse encontrar mais pessoas.

Breath of the Wild era cheio de momentos melancólicos como esse. Um jogo esparso, onde a aventura estava em qualquer lugar, bastasse você estar disposto a procurar. Entre elas, você andava por Hyrule. Uma preocupação do jogo e de seus desenvolvedores parecia ser você sentir a textura do solo nos pés de Link, o jeito que a brisa mexe com a grama e as árvores, ou como os animais que pontuam essa vastidão respondem à você ao mesmo tempo que seguiam seus caminhos. A Hyrule de Breath of the Wild era silenciosa, e esparsa, indiferente ao jogador, e ao mesmo tempo responsiva. Você poderia passar longos períodos de jogo sem receber uma missão ou sem cruzar com outros personagens. A principal relação que você cria no jogo é entre Link e Hyrule em si.

A geografia de Hyrule mudou pouco no tempo que se passou entre Breath of the Wild e sua continuação, Tears of the Kingdom. As montanhas que você aprendeu a escalar, os rios que você aprendeu a cruzar e as cidades que você encontrou no meio do caminho estão todas lá. O novo jogo, porém, as enche de vida: personagens estão por todos os lados, todos eles com suas pequenas histórias. Existem trupes musicais, grupos de artistas, pescadores e jornalistas explorando os lugares que você vai encontrar. Eles estão envolvidos em conflitos políticos, mistérios arqueológicos, caças a tesouros e competições de moda.


Esse é o aspecto mais fascinante para mim em The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom. É uma poucas vezes que podemos ver o reino de Hyrule florescendo e prosperando em toda a série. Passando alguns anos depois de Breath of the Wild, ToTK se alimenta da relação que você criou com o ambiente no jogo anterior para encher aquela Hyrule em ruínas com uma nova vida. Cidades estão sendo construídas, a cultura está fluindo, e os pequenos causos da vida de sua população voltou a importar, agora que o perigo do apocalipse iminente parece não existir mais.

É claro que o perigo só “parece” não existir. Logo no início, Ganondorf, o maior vilão da franquia, desperta. E, com ele, um evento chamado de “A Perturbação” começa: monstros voltam a invadir Hyrule mais fortes do que nunca, cavernas há muito fechadas voltam a abrir; e mais do que tudo: fissuras para as Profundezas e ilhas voadoras aparecem no solo e no céu de Hyrule, quase triplicando o tamanho do mapa original.

Imagem promocional de Tears of the Kingdom mostra Link usando seu planador para acessar ilhas voadoras em meio às nuvens.

A Perturbação de Ganondorf, os monstros e o desaparecimento de Zelda, em uma trama que vai alimentar ainda mais teorias sobre a linha temporal da franquia e sobre a mitologia de Hyrule, são os grandes eventos que movem a narrativa dessa vez. E eles “movem” a narrativa de um jeito muito mais direto do que a Calamidade do jogo anterior. Tears of the Kingdom possui uma estrutura narrativa consideravelmente mais dura do que do jogo anterior, apontando constantemente para onde você supostamente deve ir. Do momento que você acorda na Grande Ilha do Céu, cai para Hyrule pela primeira vez, se aventura nas Profundezas, volta para a superfície e ruma ao seu primeiro templo, você possui muito mais indicações do que fazer do que jamais teve em Breath of the Wild.

Mesmo assim, o aspecto mais fundamental do jogo anterior se mantém vivo aqui: a liberdade de escolher como chegar onde precisa continua, e a vastidão de Hyrule agora é repleta dessas pequenas histórias que, muitas vezes, são emocionalmente surpreendentes. A viagem do jornalista indo de estábulo a estábulo, o golpe político acontecendo em Hateno, um homem preso tentando entrar em contato com sua família, a busca de duas irmãs por um mistério em Hebra, e uma penca de outras histórias que você vai encontrar no meio do caminho, são todas opcionais, mas irresistíveis. Eu demorei muito mais tempo do que eu imaginava para encontrar todos os Templos (as dungeons no sentido mais tradicional da franquia, que também fazem um retorno aqui depois de sumirem em BotW), porque fiquei procurando os membros de uma trupe musical perdidos em suas próprias peripécias.

Essas pequenas histórias até influenciam o seu entendimento dos eventos que levaram à Perturbação, ou revelam segredos sobre a enésima vinda de Ganondorf e as lendas dos Zonai, personagens centrais na trama principal. Sua maior contribuição para o jogo, porém, é fazer o mapa de Hyrule receber uma nova importância. Esses personagens estão por toda a parte, e todos eles conhecem Link, o herói de um evento recente, e podem contar com ele para acessar lugares difíceis, ou coletar um item raro que só é visto em um ambiente do outr lado do mapa.

Ao invés de parecerem pessoas chatas que não sabem fazer nada, elas parecem pessoas vivendo suas vidas e resolvendo seus problemas que, por acaso, você encontrou em um momento oportuno. Ao ajudá-los, você percebe sua importância na jogabilidade. Diferente de BotW, que apresentava seu punhado de mecânicas na primeira hora e o liberava para explorar o mapa como você quisesse, Tears of the Kingdom possui muito mais mecânicas e recursos de jogabilidade para ensinar ao jogador, e dominá-las vai demandar muito mais tempo. As missões curtíssimas, aparentemente desimportantes que populam Hyrule são um aspecto de jogabilidade genial por parte da Nintendo: entregar ao jogador a oportunidade de (tentar) dominar suas mecânicas no ritmo que ele quiser.

Essas mecânicas se apresentam principalmente como quatro habilidades principais: Ascend permite que Link trafegue verticalmente pelo mapa, passando por uma superfície e chegando ao seu topo; Rewind vai “retroceder” o movimento de um objeto por um período de tempo; Fusion permite que você una um objeto, como partes de monstros, comidas, pedaços do ambiente, à sua arma e ao seu escudo, ampliando suas possibilidades.

Imagem promocional de Tears of the Kingdom mostra Link utilizando uma de suas habilidades especiais para construir um veículo.

Além dessas, a maior dessas novas habilidades é o Ultrahand, que permite ao jogador manipular o ambiente, movendo e unindo objetos uns aos outros, criando embarcações, pontes, armadilhas e armas com as ferramentas ao seu redor. É o resultado do que parecem várias críticas apresentadas à BotW: expande seu arsenal de armas, dá ainda mais opções de navegação, e “enche” o mapa de Tears of the Kingdom com ainda mais possibilidades aos seus jogadores serem ainda mais criativos do que antes.

Na minha honesta opinião, em alguns momentos Tears of the Kingdom parece demais. As novas habilidades enchem o jogo de possibilidades, mas ao mesmo tempo tornam os controles mais complexos, um balanço que eu achei ideal em BotW. Embora a dificuldade do jogo não extrapole (eu encontrei poucos desafios que eu passei mais de dez minutos pensando em como resolver), eles demandam muita naturalidade com os controles mais no início, o que tornam a primeira hora do jogo bastante maçante. E o mapa, ainda mais extenso com a adição das Profundezas, não parece possuir aquela precisão milimétrica do jogo anterior, onde cada pedra parecia estar disposta em um jeito específico para acentuar mais o sentimento de aventura potencial.

Mas, ao mesmo tempo, esses pequenos problemas são pontuações breves em um jogo que expande Breath of the Wild de maneiras inventivas e geniais. E elas dão espaço, e possibilidades, para a verdadeira textura emocional de Tears of the Kingdom: a nova vida que os vários novos personagens espalhados pelo mapa ainda maior trazem, que permitem que você conheça Hyrule, seu passado e seus mistérios de maneiras ainda mais criativas que antes.

Tears of the Kingdom continua com todas as virtudes técnicas do jogo anterior: a direção de arte é estonteante, e a profundidade dos detalhes que os desenvolvedores e artistas da Nintendo levaram à Hyrule e aos personagens, com seus visuais reminiscentes dos filmes de Hayao Miyazaki (principalmente O Castelo Animado e Nausicaä do Vale do Vento, com um misto de tecnologia primordial e magia) explodindo em cor e em movimento. A trilha-sonora continua pontuando muito mais do que definindo o tom, o que eu acho um acerto em um jogo que, como o anterior, pode passar horas em uma meditação silenciosa pelas pradarias.

Eu acho que nenhum jogo vai conseguir parecer monumental desde os menores detalhes aos maiores como Breath of the Wild conseguiu, um jogo onde a intenção de seus desenvolvedores ressoava pelo seu ciclo de jogabilidade perfeito. Tears of the Kindom expande esse sentimento com experimentação e diversão, mesmo que tire um pouco da perfeição anterior. É um jogo que aprecia o incerto e o incomum, a tentativa, o erro e até mesmo a bagunça.

Se minhas memórias favoritas de BotW têm a ver com a solidão, a contemplação e a melancolia de uma Hyrule do passado; minha memória favorita de Tears of the Kingdom é uma noite que eu e o Erê passamos a madrugada adentro dividindo um controle e explorando as novas maneiras de construir veículos para viajar pelos céus ou explorar as profundezas, descobrindo ilhas que parecem luas, cavernas que nos levaram à morte certeira e dragões que eu até hoje não tive coragem de enfrentar. A cada nova descoberta (“então você pode fazer isso?!”) e cada novo acerto, Tears of the Kingdom revela duas ou três novas mecânicas para você experimentar. É de se perguntar como eles conseguiram colocar tanta coisa em um jogo só, com esse grau de refinamento e qualidade. É a prova da fundação sólida que BotW ofereceu, claro, mas também da criatividade estonteante que Tears of the Kingdom oferece para seus jogadores, e demandou para sua própria criação. Um jogo tão vivo quanto a Hyrule que ele apresenta.

Quando você dá um email para uma árvore

People Are Writing Thousands of Emails to Trees

A história é de 2015, mas vale a lida ainda hoje. A cidade de Melbourne criou um endereço de email para cada árvore. A princípio, os emails eram para ser utilizados para a população reportar problemas com as árvores, como galhos caídos, ou raízes expostas, etc.

Acabou que a população começou a enviar mensagens de amor e carinho às suas árvores favoritas:

To: Golden Elm, Tree ID 103714821 May 2015
I’m so sorry you’re going to die soon. It makes me sad when trucks damage your low hanging branches. Are you as tired of all this construction work as we are?

Essa foi enviada por outra árvore, nos EUA:

To: Oak, Tree ID 107054611 February 2015
How y’all? Just sayin how do. My name is Quercus Alba.  Y’all can call me Al.  I’m about 350 years old and live on a small farm in N.E. Mississippi, USA.  I’m about 80 feet tall, with a trunk girth of about 16 feet.  I don’t travel much (actually haven’t moved since I was an acorn).  I just stand around and provide a perch for local birds and squirrels. Have good day, Al

É tão linda a forma que nossa relação com árvores aparece no nosso cotidiano, como a sumaúma que comoveu Belémno início desse ano.

Adrianne LaFrance, no The Atlantic:

These sorts of initiatives encourage civic engagement and perhaps help with city maintenance, but they also enable people’s relationship with their city to play out at the micro level. Why have a favorite park when you can have a favorite park bench?

The trees I have loved do not have email addresses. But if they did, I might take the time to remark on the lovely crook of one question-mark-shaped branch, and the softness of summer maple leaves dappling four o’clock sunlight onto my desk.

“Dear 1037148,” wrote one admirer to a golden elm in May. “You deserve to be known by more than a number. I love you. Always and forever.”

Dolphin is a man’s best friend in Brazil’s South

Amanda Audi, The Brazilian Report:

O golfinho fêmea Caroba teve uma atitude estranha. Nadou até o fim da praia de Laguna (SC) e entrou no rio Tubarão. Foi localizada a mais de 200 km de distância. Alguns diziam que ela bateu numa rede e se perdeu tentando fugir. Outros, que nadou para longe para morrer sozinha.

Uma força-tarefa de pescadores viajou para resgatar o animal. Passaram dias tentando guiar ele de volta pra casa. Falar sobre Caroba era engolir emoção. “Este boto trabalha na nossa região há muitos e muitos anos. Eu tenho 42 anos e o meu pai já pescava com ele”, disse um deles.

Caroba foi encontrada sem vida uma semana depois da fuga. A foto de seu corpo estampou os jornais da região – ela foi publicada borrada, como se costuma fazer com cadáveres humanos. Não se sabe a causa da morte. https://t.co/ASlo6OIJnO

O corpo foi levado de volta a Laguna e enterrado no cemitério dos botos, ao lado da baía onde eles costumam ficar. Cada boto que morre ganha uma cruz com o seu nome. Lá estão Batman, Borracha, Leleco, Tapete, Lata Grande, Prego, entre outros que se foram nos últimos anos.

“Tudo na vida tem um prazo. Para animais e humanos”, disse, melancólico, um morador enquanto prestava homenagem ao lado da lápide do amigo Caroba. “E ainda existe gente orgulhosa, que se acha melhor que o outro, mesmo sabendo que logo todos iremos embora”.

Caroba era um dos mais velhos da antiga prática de pesca com botos de Laguna – um dos raros casos de colaboração mútua entre humanos e animais. Há mais de 150 anos, pescadores e golfinhos trabalham e se beneficiam juntos. Estudos mostram que a relação é exemplo para o mundo.

Os golfinhos “pastoreiam” os peixes e emitem um alerta, então os pescadores lançam a tarrafa (rede pequena), em uma ação coordenada. Assim, os pescadores pegam mais tainhas e os golfinhos não precisam nadar até áreas perigosas para se alimentar –aumentando a chance de sobreviver.

Os chamados “bons botos”, são selvagens, e não há tentativa de domesticação. Mas é inegável que existe um carinho entre os envolvidos. “O meu melhor amigo não é um cachorro, é um boto”, diz um dos pescadores.

Os golfinhos são do tipo nariz de garrafa (o mesmo do Flipper). Aqueles que pulam pra fora da água e fazem gracinha para as pessoas.

A sumaúma que comoveu Belém

Helena Palmquist, SUMAÚMA:

Nas redes sociais, uma moradora definiu: “De madrugada, generosa, não feriu ninguém. A gente chora”. A câmera de vigilância registrou o momento, numa sequência que foi transmitida várias vezes pela televisão e pelas redes sociais. Pelo amanhecer a notícia e a comoção já se espalhavam pela cidade e moradores, primeiro os de perto, depois os de longe, não paravam de chegar, olhando para os restos da árvore, entre tristes e assustados, como se estivessem passando pelo velório de alguém famoso e querido. E estavam.

Tumblelogs

A definição de tumblelogs por Jason Kottke, o maior blogueiro da internet, é fantástica (lá de 2005):

A tumblelog is a quick and dirty stream of consciousness, a bit like a remaindered links style linklog but with more than just links. They remind me of an older style of blogging, back when people did sites by hand, before Movable Type made post titles all but mandatory, blog entries turned into short magazine articles, and posts belonged to a conversation distributed throughout the entire blogosphere. Robot Wisdom and Bifurcated Rivets are two older style weblogs that feel very much like these tumblelogs with minimal commentary, little cross-blog chatter, the barest whiff of a finished published work, almost pure editing…really just a way to quickly publish the “stuff” that you run across every day on the web.

Fazia um tempo que eu não escutava Soviet Kitsch, o terceiro álbum da cantora e compositora Regina Spektor. Soviet Kitsch foi um daqueles álbuns que ajudaram a moldar o meu gosto pra música quando eu tinha treze ou quatorze anos.

Eu não sei o que me levou a me afastar desse disco e de Regina Spektor como um todo, mas fazia ao menos um bom bocado de década que eu não ouvia Soviet Kitsch, mas ele deixou essa sexta-feira muito mais leve por reaparecer na minha vida. Spektor tem uma voz perfeita, e escreve com uma liberdade de dar inveja: coisas que parecem bobas se tornam em ótimas anedotas do dia-a-dia através da poesia dela. Ghost of Corporate Future, minha música favorita do disco e que eu simplesmente tinha esquecido até o momento que começou a tocar agora há pouco aqui na sala, me fez chorar com esse charme.

People are just people
They shouldn’t make you nervous
The world is everlasting
It’s coming and it’s going
If you don’t toss your plastic
The streets won’t be so plastic
And if you kiss somebody
Then both of you’ll get practice

Bom fim de semana, pessoal!

Ondas da memória — a beleza dilacerante de “Aftersun”

O que eu lembro da minha avó é o jeito que ela repousava a sua mão pesada e dura nas minhas costas enquanto eu dormia, e me massageava gentilmente até eu acordar com a voz profunda dela entoando uma canção. Essa memória — dessa específica manhã, mas também de todas as manhãs que ela estava na casa dos meus pais durante a minha infância — é tudo o que eu tenho da minha avó, que partiu no dia do meu aniversário quando eu tinha dez anos, e que mesmo assim teve uma influência profunda em minha vida.

Até hoje, eu durmo de bruços. Mesmo depois de um médico me explicar que dormir assim é horrível para a sua coluna e para a sua respiração, e para o descanso que você supostamente deveria estar tendo. Mas eu não consigo evitar. Em algum lugar do meu cérebro, as memórias de minha avó chegam ao meu corpo quando eu vou dormir, e eu lembro dela me acordando em um dia de aula há mais de duas décadas. É tudo o que eu tenho dela.

Memórias fazem parte de nós da maneira mais íntima e misteriosa. É como aprendemos, como quantificamos nossa vida. Pode nos destruir ou nos salvar. Memórias podem mudar de forma conforme vamos vivendo. Algumas são esquecidas. Outras parecem continuar vívidas em nossas mentes. Mesmo que sejam, na verdade, apenas visuais nebulosos de um sentimento.

Essa natureza das memórias, mantidas como a mais pura expressão de nossos sentimentos, é perfeita para o cinema — que são, em essência, imagens em movimento como nossas memórias e nossos sonhos. Nos melhores filmes, essas imagens são capazes de moldar nossos sentimentos, como nossas memórias, em uma experiência quase sobrenatural. Mas filmes sobre memórias são difíceis de serem feitos, porque filmes são dirigidos, um meio “proposto” em que tudo é planejado e ensaiado e filmado. É quase impossível de capturar a qualidade fugidia das memórias.

Só no ano passado, três filmes tentaram capturar essa sensação de uma peça de memória. Dois são de grandes diretores, com Steven Spielberg examinando sua infância e seu relacionamento com seus pais no lindo e mágico Os Fabelmans; e James Gray observando as raízes profundas do seu privilégio e de seu modo de ver o mundo no desolador Armageddon Time.

Mas é Aftersun, da estreante Charlotte Wells, que usa suas memórias da infância com seu pai para fazer um filme com a mesma sensação que é se lembrar de algo assim, que captura o que é lembrar de alguém que não existe mais. Ao menos em uma forma física.

Aftersun começa com Sophie, uma mulher no início dos trinta, olhando para as fitas-cassete de uma viagem com seu pai, Calum, para a Turquia. Não é um início fácil de decodificar: nós só vemos Sophie como um reflexo numa tela de TV enquanto as fitas estão sendo rebobinadas.

É no passado que a maior parte de Aftersun se passa, quando Sophie — então uma garota de onze anos — está começando a mostrar interesse na vida adulta. Ela tem curiosidade sobre a intimidade entre os jovens que estão hospedados no mesmo hotel, e tem uma leve ideia da dificuldade financeira pela qual seu pai está passando. Mas o que Sophie não consegue enxergar direito, muito porque ela é muito nova para entender a frustração e o vazio da vida adulta e porque seu pai a protege, é o estado mental de Calum. E é isso o que Sophie adulta está tentando entender. Ela é, afinal de contas, em uma idade próxima a de seu pai, e a mãe de um bebê.

Em filmes assim, você geralmente espera por um grande momento catártico de confronto entre a criança e seus pais, que pode ou fortalecer ou destruir seu relacionamento. Mas Aftersun aborda esse relacionamento em seus próprios termos. Não há dúvida que Calum ama sua filha, nem que Sophie ama seu pai. Mas Sophie não consegue remover uma certa distância que existe entre ela e Calum. Ela é uma criança honesta e espirituosa, desejando que seu pai compartilhe com ela seus pensamentos da mesma forma que ele pede que ela o faça.

Não há um conflito em Aftersun. Suas cenas perduram, criando lentamente uma maré emocional, com planos dos restos de jantar, de paragliders no céu, ou da lama em uma piscina, pontuando o que parece ser uma narrativa banal. Calum e Sophie na piscina, ou comendo o jantar, ou falando sobre o céu. Mas Wells e seu time deixam essas imagens continuar mesmo quando uma cena normalmente terminaria, perdurando em um quarto vazio depois que eles saem, ou na piscina que eles vão mergulhar.

Parece inconsequente, até que o filme começa a acumular esses momentos e você se dá conta de que talvez essas sejam as últimas memórias de Sophie com seu pai, e você começa a entender porque ela — que não está mais somente assistindo vídeos daquele lugar, mas lembrando de coisas que nunca foram filmadas — se mantém nesses detalhes, procurando por pistas que seu pai talvez tenha deixado: um cartão postal que ele deixou, as marcas no espelho, o modo como ele olha para ela enquanto ela canta um parabéns…

Essas pistas começam a se acumular como uma foto sendo revelada aos poucos, até tomar forma, e Aftersun representa essa busca de sua protagonista por compreender seu pai de uma maneira mais metafórica, no que parece ser uma festa. Esses momentos que ela e seu pai compartilharam começam a ficar nebulosos; seus detalhes, escassos. Ao mesmo tempo, nós queremos que eles fiquem juntos, que não desperdicem um segundo sequer. Nós sabemos que eles vão, que eles não conseguirão. É assombrador, porque é real.

O que Aftersun tem de clímax não é um confronto, nem uma culminação. Como suas cenas parecem formar uma maré levantando, subitamente as suas ondas começam a quebrar. Como o mar, as memórias podem nos enganar. Nós nem sempre conseguimos prever como uma onda vai nos alcançar, com qual tamanho ou com qual força, até que seja tarde demais, nos cobrindo de água. Quando Sophie lembra de uma dança, e que ela consegue se conectar com como o seu pai estava se sentindo, parece quase um afogamento. E, em uma escolha de música e montagem brilhante, tanto a trilha-sonora quanto a imagem parecem retratar a angústia de perder seu fôlego por um momento. A Sophie de hoje encontra o Calum de suas memórias no momento em que a Sophie do passado perde seu pai para sempre.

Isso é tudo o que ela tem dele. Não o tapete que ele comprou, ou a câmera que ele usou, mas suas memórias. E elas são incertas, nebulosas. Mas isso é tudo o que existe dele para Sophie. Parece ser perdido no mar no meio da noite, não sabendo onde começa o mar e termina o céu. Você perde sua direção, sua respiração. Você não sabe se seus pés vão tocar o solo de novo.

E então, ela é resgatada pelo barulho gentil do presente. Ele vai continuar na sua cabeça, em suas memórias e em seus sentimentos, guiando suas escolhas das formas mais misteriosas. Desconhecido e eterno. Ela vai tentar capturar ele em tudo o que fizer. E, se tiver sorte, vai conseguir traduzir pelo menos um pouquinho do que foi existir ao lado dele por um momento. Eu sei que eu tentei.

Minha avó me acompanhando no escorregador.ALT

Você pode ver Aftersun na MUBI.

O jogo perfeito para esperar pelo novo Zelda

Tears of the Kingdom, a continuação de The Legend of Zelda: Breath of the Wild, está logo aí. É o meu jogo mais esperado do ano. Parece fantástico. Eu passo horas do meu dia lendo teorias da conspiração sobre o jogo, que a gente sabe tão pouco mesmo estando há poucos meses de seu lançamento. Eu passo as noites sonhando em tirar umas férias bem longas e me aventurar em Hyrule de novo.

É um sentimento que me remete à infância. Quando eu era pequeno, eu esperava pelos novos livros do Harry Potter, que vinham no final do ano. Eu esperava lendo revistas sobre e revendo os filmes, e brincava com meus colegas da escola no recreio, fingindo que os corredores da nossa escola eram os corredores de uma escola de bruxos como as dos livros. A expectativa pelo lançamento de um novo livro da série era cheio de atividades, a maioria dentro das nossas cabeças.

Lil Gator Game remete à essa época de imaginação fértil em um jogo sobre um grupo de amigos brincando de aventura na ilha em que eles moram, imaginando que pedaços de papelão são monstros que precisam ser derrotados, que pessoas oferecem missões. O jacarézinho e seus amigos estão esperando pelo novo Legend of Hero, que parece ser incrível, e enquanto eles esperam pelo lançamento do jogo, eles criam a sua própria brincadeira para matar o tempo.

Do mesmo criador do incrível A Short Hike, Lil Gator Game não é um jogo de aventura como Zelda, mas é uma carta de amor à franquia da Nintendo. Não só pelas referências (no início do jogo, os amigos precisam encontrar uma “espada”, um “escudo” e um chapéu, já que o jacaré já é verde, para continuar a brincar), mas pela estrutura. Lil Gator Game começa bem simples e, dado o tamanho da criação anterior do estúdio, você se engana que o escopo será pequeno também. Mas então ele oferece uma experiência semelhante a Breath of the Wild, e se abre para o jogador. A estrutura é muito mais simples: você encontra seus amigos, você brinca, e finge que está em uma aventura.

Por incrível que pareça, Lil Gator Game consegue capturar a mágica de Zelda, de que você está em um mundo labiríntico, misterioso e fascinante, não repetindo a fórmula, mas por mostrar o carinho desses personagens pelo mundo fantasioso. A empolgação em “brincar como” deles é contagiante que Lil Gator Game te coloca na brincadeira também. Você não vai solucionar quebra-cabeças para liberar novos itens aqui, mas você vai acompanhar uma criança aprendendo que o tempo que ela tem para imaginar mundos vai passar, e que é precioso enquanto ela pode fazer isso.

Como eu escuto música

É estranho, mas eu tenho uma pequena coleção de discos de vinil que foi crescendo sem eu perceber. Eu moro perto de uma feira de antiquários que acontece no sábado de manhã, e nesse último ano eu encontrava discos incríveis, como o Alucinação do Belchior e o Little Creatures do Talking Heads por R$ 30 (o mais caro, a trilha-sonora do Blade Runner pelo Vangelis, foi R$ 75).

Três homens em cabines separadas, sentados com fones em seus ouvidos e uma caixa de toca-discos ao lado. Foto de meados de 1954.ALT

Eu posso não ter percebido, mas meus pais perceberam. Eu levava esses discos para a casa deles nos fins de semana para ouvir no toca-discos que eles têm. Nesse Natal, eu ganhei um toca-discos para mim, e eu tô impressionado em como ele mudou drasticamente a minha relação com a música de um jeito tão rápido.

Aconteceu o seguinte: fora determinadas circunstâncias, como quando eu apresento uma música para alguém, eu escuto música fazendo outras coisas. Eu ouvi Cool It Down, meu álbum favorito do ano passado, enquanto corria. Até mesmo Random Access Memories, o álbum que eu lembro de ter feito um lembrete no calendário para marcar o lançamento, eu escutei enquanto “trabalhava” (ênfase para as aspas).

Minha relação com a música, geralmente, é na forma de trilha-sonora. É o que está nos meus ouvidos enquanto eu trabalho, ou faxino a casa, ou no ônibus para visitar meus pais. Diferente de ir ao cinema ou esperar o novo episódio de uma série no domingo de noite, eu raramente reservava meu tempo para ouvir música. Talvez seja por isso que eu tenha tanta dificuldade para comentar sobre música com meus amigos, e que minha relação com meus discos favoritos geralmente seja baseada em memórias que tenho ao ouvi-los*.

Enfim… voltando ao assunto. Com o toca-discos, eu comecei a reservar um momento para sentar ao redor dele e colocar um disco para tocar. Como parar para ler, eu paro para ouvir um disco. Eu não vou ficar aqui argumentando sobre a qualidade do som nem coisas assim. Eu não entendo o suficiente disso para ser contra ou a favor. Mas existe algo no fato de que você precisa colocar um disco, ajustar a agulha, e prestar atenção na música para trocar o lado, que me faz me relacionar com o ato de ouvir a música de um jeito diferente.

E então eu lembro que, quando eu era criança, meus pais faziam isso com a gente. Geralmente nas sextas-feiras, meus pais colocavam a coleção (consideravelmente maior) de vinil deles para tocar, no pequeno quartinho que a gente chamava de escritório, enquanto eles tomavam vinho ou cerveja. Eu e minha irmã ficávamos em volta, mas nem sempre dávamos muita bola (era impossível não ouvir, já que eles colocavam o som muito alto) para as histórias que eles contavam quando ouviam as músicas. Mas eles estavam ali, prestando atenção nas faixas que eles escolheram levar pra vida deles através daquela coleção. As vezes nem eram memórias, e sim sentimentos específicos. As vezes vinham os amigos, mas as vezes eram só os dois. Uma espécie de listening party.

Em 2020, no início da pandemia, eu escrevi um pouco sobre a minha relação com música. Ano passado, eu encontrei um backup de músicas que eu ouvia na adolescência. Então essa mudança que ocorreu com o toca-discos pode ser parte desse processo de reavaliar a música na minha vida. Tá sendo um processo muito bacana, em que eu tenho realizações tardias sobre coisas que todo o mundo já sabia, por exemplo:

Alucinação é um disco perfeito.

(*) Acho que não comentei aqui, mas ano passado eu fui visitar a Manu em Curitiba, e no trajeto de volta, em que ela me levava no aeroporto, colocamos The Suburbs para tocar. Foi um momento perfeito, em que o disco durou exatamente o tempo da viagem, enquanto a gente olhava para os subúrbios e nos despedíamos.