O que eu lembro da minha avó é o jeito que ela repousava a sua mão pesada e dura nas minhas costas enquanto eu dormia, e me massageava gentilmente até eu acordar com a voz profunda dela entoando uma canção. Essa memória — dessa específica manhã, mas também de todas as manhãs que ela estava na casa dos meus pais durante a minha infância — é tudo o que eu tenho da minha avó, que partiu no dia do meu aniversário quando eu tinha dez anos, e que mesmo assim teve uma influência profunda em minha vida.
Até hoje, eu durmo de bruços. Mesmo depois de um médico me explicar que dormir assim é horrível para a sua coluna e para a sua respiração, e para o descanso que você supostamente deveria estar tendo. Mas eu não consigo evitar. Em algum lugar do meu cérebro, as memórias de minha avó chegam ao meu corpo quando eu vou dormir, e eu lembro dela me acordando em um dia de aula há mais de duas décadas. É tudo o que eu tenho dela.
Memórias fazem parte de nós da maneira mais íntima e misteriosa. É como aprendemos, como quantificamos nossa vida. Pode nos destruir ou nos salvar. Memórias podem mudar de forma conforme vamos vivendo. Algumas são esquecidas. Outras parecem continuar vívidas em nossas mentes. Mesmo que sejam, na verdade, apenas visuais nebulosos de um sentimento.
Essa natureza das memórias, mantidas como a mais pura expressão de nossos sentimentos, é perfeita para o cinema — que são, em essência, imagens em movimento como nossas memórias e nossos sonhos. Nos melhores filmes, essas imagens são capazes de moldar nossos sentimentos, como nossas memórias, em uma experiência quase sobrenatural. Mas filmes sobre memórias são difíceis de serem feitos, porque filmes são dirigidos, um meio “proposto” em que tudo é planejado e ensaiado e filmado. É quase impossível de capturar a qualidade fugidia das memórias.
Só no ano passado, três filmes tentaram capturar essa sensação de uma peça de memória. Dois são de grandes diretores, com Steven Spielberg examinando sua infância e seu relacionamento com seus pais no lindo e mágico Os Fabelmans; e James Gray observando as raízes profundas do seu privilégio e de seu modo de ver o mundo no desolador Armageddon Time.
Mas é Aftersun, da estreante Charlotte Wells, que usa suas memórias da infância com seu pai para fazer um filme com a mesma sensação que é se lembrar de algo assim, que captura o que é lembrar de alguém que não existe mais. Ao menos em uma forma física.
Aftersun começa com Sophie, uma mulher no início dos trinta, olhando para as fitas-cassete de uma viagem com seu pai, Calum, para a Turquia. Não é um início fácil de decodificar: nós só vemos Sophie como um reflexo numa tela de TV enquanto as fitas estão sendo rebobinadas.
É no passado que a maior parte de Aftersun se passa, quando Sophie — então uma garota de onze anos — está começando a mostrar interesse na vida adulta. Ela tem curiosidade sobre a intimidade entre os jovens que estão hospedados no mesmo hotel, e tem uma leve ideia da dificuldade financeira pela qual seu pai está passando. Mas o que Sophie não consegue enxergar direito, muito porque ela é muito nova para entender a frustração e o vazio da vida adulta e porque seu pai a protege, é o estado mental de Calum. E é isso o que Sophie adulta está tentando entender. Ela é, afinal de contas, em uma idade próxima a de seu pai, e a mãe de um bebê.
Em filmes assim, você geralmente espera por um grande momento catártico de confronto entre a criança e seus pais, que pode ou fortalecer ou destruir seu relacionamento. Mas Aftersun aborda esse relacionamento em seus próprios termos. Não há dúvida que Calum ama sua filha, nem que Sophie ama seu pai. Mas Sophie não consegue remover uma certa distância que existe entre ela e Calum. Ela é uma criança honesta e espirituosa, desejando que seu pai compartilhe com ela seus pensamentos da mesma forma que ele pede que ela o faça.
Não há um conflito em Aftersun. Suas cenas perduram, criando lentamente uma maré emocional, com planos dos restos de jantar, de paragliders no céu, ou da lama em uma piscina, pontuando o que parece ser uma narrativa banal. Calum e Sophie na piscina, ou comendo o jantar, ou falando sobre o céu. Mas Wells e seu time deixam essas imagens continuar mesmo quando uma cena normalmente terminaria, perdurando em um quarto vazio depois que eles saem, ou na piscina que eles vão mergulhar.
Parece inconsequente, até que o filme começa a acumular esses momentos e você se dá conta de que talvez essas sejam as últimas memórias de Sophie com seu pai, e você começa a entender porque ela — que não está mais somente assistindo vídeos daquele lugar, mas lembrando de coisas que nunca foram filmadas — se mantém nesses detalhes, procurando por pistas que seu pai talvez tenha deixado: um cartão postal que ele deixou, as marcas no espelho, o modo como ele olha para ela enquanto ela canta um parabéns…
Essas pistas começam a se acumular como uma foto sendo revelada aos poucos, até tomar forma, e Aftersun representa essa busca de sua protagonista por compreender seu pai de uma maneira mais metafórica, no que parece ser uma festa. Esses momentos que ela e seu pai compartilharam começam a ficar nebulosos; seus detalhes, escassos. Ao mesmo tempo, nós queremos que eles fiquem juntos, que não desperdicem um segundo sequer. Nós sabemos que eles vão, que eles não conseguirão. É assombrador, porque é real.
O que Aftersun tem de clímax não é um confronto, nem uma culminação. Como suas cenas parecem formar uma maré levantando, subitamente as suas ondas começam a quebrar. Como o mar, as memórias podem nos enganar. Nós nem sempre conseguimos prever como uma onda vai nos alcançar, com qual tamanho ou com qual força, até que seja tarde demais, nos cobrindo de água. Quando Sophie lembra de uma dança, e que ela consegue se conectar com como o seu pai estava se sentindo, parece quase um afogamento. E, em uma escolha de música e montagem brilhante, tanto a trilha-sonora quanto a imagem parecem retratar a angústia de perder seu fôlego por um momento. A Sophie de hoje encontra o Calum de suas memórias no momento em que a Sophie do passado perde seu pai para sempre.
Isso é tudo o que ela tem dele. Não o tapete que ele comprou, ou a câmera que ele usou, mas suas memórias. E elas são incertas, nebulosas. Mas isso é tudo o que existe dele para Sophie. Parece ser perdido no mar no meio da noite, não sabendo onde começa o mar e termina o céu. Você perde sua direção, sua respiração. Você não sabe se seus pés vão tocar o solo de novo.
E então, ela é resgatada pelo barulho gentil do presente. Ele vai continuar na sua cabeça, em suas memórias e em seus sentimentos, guiando suas escolhas das formas mais misteriosas. Desconhecido e eterno. Ela vai tentar capturar ele em tudo o que fizer. E, se tiver sorte, vai conseguir traduzir pelo menos um pouquinho do que foi existir ao lado dele por um momento. Eu sei que eu tentei.
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Você pode ver Aftersun na MUBI.