Eu olho pra esse último ano, e fico com medo de não ter mais sobre o que ou para quem escrever. Eu fico pensando que “eu perdi aquilo”. Aquela faísca mágica que se acende dentro de mim com ideia bruta. Ela tomava forma aos poucos. No início, bem devagar. Eu começava a entender no que ela ia se transformar. E daí ela tomava forma. Ela aparecia na minha frente de uma hora pra outra. As vezes, eu não conseguia reconhecê-la. As vezes, tudo o que eu conseguia ver era o que ela tinha sido antes. E as vezes, e essas eram as vezes que eu tinha conseguido, sua forma era surpreendente. Uma tangente ali, uma conexão aqui, algumas pernas pra lugar nenhum acolá.
Tomara que esse texto seja um do último grupo.
Hoje é um bom dia, porque eu consegui encontrar as palavras pra esse sentimento que tava me assombrando nesse último ano, e que eu conseguia perceber tomando forma no ano anterior. Não é que eu tenha perdido o jeito. É que eu tô mudando. De repente, eu entendi que eu tô aprendendo a me conhecer de novo, depois de todos esses anos. É empolgante! Mas eu também tô com medo. Eu não sei direito o que eu gosto ou o que eu quero, eu acho.
E o que eu mais sinto falta é a companhia dela enquanto eu me aventuro nesse desconhecido, enquanto eu começo a me entender de novo. Vivi esteve do meu lado no período mais difícil da minha vida. Eu tava perdido, e com medo, e sofrendo o tempo inteiro. E ela estava ao meu lado por tudo isso. As vezes, ela era a única coisa que fazia sentido. As vezes, ela me fazia pensar que tudo ia ficar bem. Ela tava certa, mas ela não sobreviveu pra ver que ela tava certa. Mas de um jeito ou de outro, eu acho que ela sabia.
Eu lembro da primeira vez que nós fomos pra praia juntos. Ela tava na cadeirinha de rodas dela, e eu tava preocupado. Bobo. Ela mesma saiu da cadeirinha dela e foi, só com as patas da frente, em direção ao mar. Ela provou a água, e voltou correndo, pulando do jeito que ela fazia, chamando minha atenção.
Eu lembro também da última vez que nós fomos pra praia juntos. Ela passou a roda da cadeirinha no meu pé, como ela fazia quando queria que eu tirasse ela. Dessa vez, ela queria que eu fosse junto. Ela dava alguns passos e olhava para trás, para ver se eu estava acompanhando ela. Eu sempre estava. Ela sentiu a água nas suas patinhas pequenas. Ela pulou de felicidade. Nós brincamos um pouco, mas eu tava com medo o tempo inteiro. Eu peguei ela nos meus braços, e saímos da praia juntos. Eu tava com medo de perder ela.
Eu perdi ela uns meses depois. Eu tava com medo o tempo inteiro também. Eu lembro da noite fria depois do dia morno. Eu lembro de ver ela lutando para respirar. Eu lembro como meu pai pegou ela nos braços dele e foi pra rua. Eu lembro de ouvir ele cantando pra ela. Eu acho que ele chorou. Eu fui atrás quando ele parou de cantar, e ela já tinha partido.
Eu fiquei com ela enquanto o corpo dela perdia o calor. Eu queria lembrar como os pelos dela se entranhavam no meio dos meus dedos, e daquela manchinha branca no peito dela. Eu tava com medo de esquecer esses pequenos detalhes do nosso tempo juntos. Bobo, eu ia acabar esquecendo mesmo assim.
Tudo o que eu tenho agora são as memórias e os pensamentos. Eu lembro da nossa última vez na praia, que eu estava com medo dela ficando muito empolgada de ir na água e ter suas aventuras. Eu impedi. Então eu começo a me perguntar se eu dei a chance dela ser feliz, e de ter tido uma vida boa. Eu não estava bem. Eu teria sido uma companhia muito melhor agora. Ela ia ter se divertido muito mais.
Eu não sei se eu estaria aqui agora, se não fosse por ela. Vivi fez meus dias melhores por anos. No lado dela, eu estava preocupado. Mas eu também estava curioso. Curioso por ela. Curioso em ver ela ver coisas novas, curioso em ajudar ela a ter uma vida um pouquinho melhor, curioso o suficiente pra ficar feliz de novo, pra eu ser um parceiro mais legal nas aventuras dela. Vivi era a corajosa da dupla. Ela seguia em frente.
Agora que eu estou me redescobrindo, eu tô reaprendendo a sentir e a não ficar com tanto medo do que eu tô sentindo. Eu tô curioso pra descobrir o que eu vou encontrar. As vezes, eu acho que eu perdi as palavras. As vezes, eu fico empolgado de aprender uma nova voz na minha cabeça. Eu luto para ser mais corajoso e mais curioso, como ela era. Eu quero pensar que, se ela pudesse estar comigo agora, ela ia brigar comigo como quando a gente brincava juntos. Boba e furiosa, me chamando a atenção para aquilo que ela estava interessada. Esse é o sentimento que eu tô aprendendo.
O grande, querido Tarcísio Meira disse uma vez que a gente não supera a morte, a gente assimila. Uma vez, eu pensei que eu ia superar a ausência dela, o silêncio dela, o vazio entre os meus dedos. Eu não consigo mais. A ausência dela continua chamando a atenção, o silêncio dela continua sendo ouvido por toda a casa. Mas a coragem dela, a curiosidade dela de seguir em frente é algo que eu tava sentindo falta. E é algo que eu acho que consigo ter de volta.
Tudo o que eu posso pedir a vocês, meus caros leitores, é a paciência pra me acompanhar enquanto eu descubro tudo isso. Pode levar um tempo, mas pode ser amanhã. Pode ser uma jornada divertida. Eu tô empolgado, como aquela cachorrinha boba estava quando a água do mar bateu nas suas patinhas pequenas naquela primeira vez. E naquela última também.