A morte de um cinema de rua

Rafael Aguinaga para a Piauí:

Por conta própria, ao longo de oito anos nós já tínhamos recebido cerca de 15 mil crianças vindas de escolas municipais. As sessões sempre aconteciam de manhã, fora do horário comercial, e a gente combinava tudo com as professoras dessas escolas. Funcionava muito bem. Nós juntamos os dois patinhos feios da indústria – o documentário e o cinema de rua – com propósito educativo. Isso deveria ser replicado por outros cinemas no Brasil. Há um monte de documentários espetaculares que são ignorados pelo circuito convencional. A gente passava filmes sobre o Rio São Francisco, sobre a Amazônia… Só filmes brasileiros. Nesses dias eu fazia questão de operar o projetor e receber os alunos pessoalmente no cinema.

E agora esse projeto tinha virado política pública. É o que sempre deveria ter sido. A gente começou a receber um subsídio de 10 mil reais por mês da prefeitura. Um dinheiro modesto, que servia para pagar o aluguel da sala, basicamente. Depois que assinamos essa parceria, a Secretaria de Direitos Humanos pediu que a gente também fizesse sessões para idosos e adolescentes que moram em abrigos. Foi muito legal. Nossa rotina passou a ser assim: crianças de manhã, idosos e adolescentes à tarde. À noite, muitas vezes fazíamos saraus e apresentações de música na sala de cinema.

Porto Alegre não tem cinema de bairro, mas só no centro da cidade tem três cinemas de rua. Um deles, o Vitória, já fechou no ano passado. As cinematecas do Capitólio e Paulo Amorim estão fechadas por conta da pandemia. São as salas que eu frequentava no meu dia-a-dia. Eu morei a algumas quadras da CCMQ e, naquele tempo, eu ia lá religiosamente depois do trabalho, de terça à sexta.

Esses espaços são muito especiais, como pequenos oásis onde a cultura pode agir por conta própria, e tem sido duro ver o descaso do governo em oferecer suporte à elas nesse momento — e, no caso do Joia, a facada nas costas que fechou a sala de vez.

O Internet Archive está preservando jogos e animações em Flash

O Flash foi uma daquelas tecnologias tão fundamentais quanto odiadas da juventude da internet: era um jeito fácil e simples de criar animações e jogos complexos que podiam ser jogados num navegador, na época em que a tecnologia básica da internet — o HTML, o CSS e o JavaScript — estavam começando a amadurecer. Sites usavam Flash para criar efeitos e animações complexos, e portais como o Kongregate, o Miniclip e Newgrounds hospedaram centenas de jogos feitos com essa tecnologia com o passar dos anos.

Entre 2007 e 2010, quando o iPhone se firmou como uma plataforma na qual os desenvolvedores precisavam prestar atenção (e, eventualmente, seria o centro da atenção), o Flash encontrou seu pior inimigo: Steve Jobs, que anunciou que o iOS não ofereceria suporte à tecnologia. Gradualmente, a Adobe encerrou o suporte da tecnologia, primeiro nos celulares — no início dos anos 2010, o Android usava o suporte ao Flash como um de seus recursos notáveis contra a concorrência — e, no fim desse ano, em todos os outros dispositivos.

Você provavelmente já tem o Flash desativado há anos no seu navegador. O Chrome, o Firefox e o Safari não o ativam por padrão desde meados de 2015. Existem bons motivos para isso: o Flash é pesado, lento e propenso à brechas de segurança, por causa do seu código fechado. Ele certamente não é o futuro da web, uma vez que as tecnologias fundamentais da internet amadureceram e, em muitos sentidos, superaram o que o Flash podia fazer. Mas ele foi fundamental para tornar a web criativa e interativa nos primórdios, e uma boa parcela da internet vai ser perdida quando o Flash parar de funcionar no fim do ano, uma parcela que consiste em experiências únicas que desbravaram a web antes de todo mundo. O JavaScript voa hoje porque o Flash tropeçava e caía.

É por esse valor inestimável à história da internet que o Internet Archive começou a hospedar um arquivo de jogos e animações em Flash. Usando um emulador chamado Ruffle, o Internet Archive é capaz de armazenar e executar esses softwares no seu navegador sem a necessidade de nós instalarmos um software desatualizado e sem suporte. É uma das várias iniciativas incríveis do IA, que preserva a história e a evolução da internet enquanto algumas gigantes por aí tentam apagá-la para colocar um novo parquinho de anunciantes no lugar.

Boas notícias: em breve, o emulador Ruffle será lançado como uma extensão para navegadores — mais leve, mais ágil e mais seguro do que instalar o Flash no seu computador —, permitindo que todos esses sites e portais de jogos em Flash que poderiam parar de funcionar no fim de 2020 possam continuar existindo e hospedando essa parte importante da internet.

Episódio 10 – com Victor Silva

O Victor e eu nos sentamos pra conversar sobre como a gente desbravou o mato que era a internet no início dos anos 2000.

Você pode encontrar o Victor no Twitter, em @amobrejas e no Instagram, em @vicaobaker.

Esse é o último episódio do Pãodecast nesse ano, mas eu já estou gravando conversas para o ano que vem. Quer participar? Envie uma mensagem e vamos combinar um dia.

Como é que eu vou falar de Betty?

Eu não entendo nada de skate. Antes de Betty, eu sequer achava skate interessante. Vai ver eu posso começar por aí, porque Betty é um daqueles achados que eu tenho na minha vida que expandem o mundinho dentro da minha cabeça. Eu nunca achei que eu ia me interessar por uma série sobre um grupo de skatistas, e agora Betty talvez seja minha série favorita desse ano.

É o seguinte: Betty é uma “dramédia1” da HBO sobre um grupo de mulheres skatistas em Nova York. É difícil de dizer sobre exatamente, porque embora Betty tenha uma trama (e uma trama muitíssimo bem construída, quando você para para pensar nela), a série parece ser muito mais observacional do que dramática. Cada episódio da primeira temporada é mais ou menos um tempo em que a gente fica assistindo essas garotas passarem o tempo juntas. Seja procurando um lugar para andar de skate, seja dando uma volta procurando algo bom para comer ou tentando encontrar uma mochila esquecida no parque.

E esse é o bacana de Betty, é genuinamente uma série de garotas passando o tempo juntas e descobrindo um pouco sobre como elas gostam de passar o tempo — e como o sexismo e o racismo que está sempre no fundo acaba afetando esses momentos que elas têm. Betty acompanha essas garotas em um momento difícil de capturar de forma narrativa — aquele momento em que firmarmos nossas amizades, descobrimos nossos primeiros amores, e gastamos nosso tempo livre com coisas que não têm muito sentido aos olhos dos outros. Aos olhos delas, porém, andar de skate faz todo o sentido, e Betty é extremamente eficaz em tornar a conquista delas pela liberdade e autodescoberta que é andar de skate pela cidade.

Betty age de forma tão sutil que é fácil achar que nada está acontecendo. Como cada episódio retrata um momento específico (uma briga de bar, uma sessão de fotos, e assim vai) do grupo, mas a série está justamente observando como cada uma das garotas reage à emoções sísmicas em seu dia-a-dia: como Camille não quer ser “reduzida” à uma “garota skatista” no meio dos homens, ou como Janay precisa enfrentar sua relação com um amigo problemático (ou algo ainda pior). Ao observar esses pequenos momentos entre elas sem adicionar muito mais drama externo, Betty permite que a gente observe os sentimentos bastante íntimos de alegria, tristeza, traição e companheirismo em pessoas que ainda não sabem exatamente o que estão sentindo, e como estão sentindo, em uma época da vida onde há muita descoberta a cada segundo. Betty não entrega essas descobertas em conclusões fortes porque nunca precisou formar um enredo com elas em primeiro lugar. Esses sentimentos são confusos e nem sempre são bonitos, e é a honestidade com que a série entrega eles que a torna especial.

A criadora e diretora da série, Crystal Moselle, trouxe esse grupo de atores não-profissionais do seu filme Skate Kitchen, que tem algumas semelhanças com o enredo da série. O filme é excelente, mas é em Betty que Moselle pode mostrar o quanto ela entende a vida dessas garotas, e como é difícil para elas viverem da sua paixão em meio ao arcaico “mundo dos homens”. Com sua câmera que navega entre essas garotas, Moselle consegue capturar todos os pequenos momentos de felicidade que essa luta constante trazem — uma piada, um choro, o milhão de memórias que se formam com uma companhia perfeita —, e que incentivam elas à continuar tentando. É o que traz à Betty sua linda espontaneidade, da descoberta do que pode ser viver livremente.


  1. Um professor meu dizia que o melhor nome para esse tipo de história era “tragicomédia”. Eu concordo, mas acho o termo carregado demais. Nas séries da HBO especificamente, dramédia são todas aquelas séries que não são necessariamente comédias, mas respeitam os trinta minutos típicos do gênero. É algo bem específico porque torna o drama mais eventual, e eu gosto muito. 

Nada que é dourado permanece

Meu amigo Leo Michelon colaborou com o diretor e crítico Giordano Gio em Nada que é Dourado Permanece, um vídeo-ensaio sobre os ritos de iniciação presentes no cinema gaúcho.

É comum, quando a gente estuda cinema, procurar aspectos semelhantes em um cinema de determinada época ou de determinado local. Geralmente essas épocas são alguma década no início dos anos 1900 e o local geralmente é algum país da Europa, mas eu acho fascinante quando a gente para e olha o cinema que é feito perto de casa, e como ele captura e revela a nossa relação com o lugar que a gente vive. É um trabalho importante, e fico feliz que tá sendo feito — e tá sendo feito muito bem, o vídeo-ensaio é muito bom de assistir, dá seu tempo para a gente ouvir, ver e entender sem ser maçante.