Tainara Fraga

@taimfg

Segunda parte - A mostra do passado retomado e da memória

Afastando-se um pouco do contexto pandêmico, os dois últimos programas da mostra latina do 32º Kinoforum trouxeram reflexões acerca do passado colonizado e expropriado da América Latina mas também novas formas de narrá-lo. 

Latinos 3 - Alegorias e Adereços

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Elegendo curtas que dialogavam com novas formas de imaginar o real, esse programa trouxe filmes que se utilizavam do híbrido entre documentário e ficção, como Caso à parte e Interferência, ambos fabulações acerca de imagens de arquivo muito bem realizados. Além disso, temos a excelente animação Tío, que se propõe a discutir tradição, violência e ruptura familiar no México.

Em se tratando de México, destaco aqui o que considero ser talvez o melhor curta-metragem da mostra latina e, por isso mesmo, merece esse espaço: A felicidade do motociclista não cabe em sua roupa, do diretor Gabriel Herrera, é, em todos os sentidos possíveis, uma bela alegoria. De forma inspiradora, temos um voice over narrando a conquista do país por um explorador colonial, enquanto vemos na tela um motociclista orgulhosamente sentado em sua moto. Utilizando imagens sem movimento de câmera, quase como retratos, o filme brinca com as conquistas do colonizador, que queria enfrentar a selva sozinha, e as coloca lado a lado com a conquista da moto. Uma metáfora elaborada e cheia de ironia, que expõe de maneira interessante o ridículo da colonização e como tal “façanha” é motivo mais de piada do que qualquer outra coisa. 

A felicidade do motociclista… é um filme para ser visto e revisto, entendido talvez como uma ótima alegoria do que é esse pedaço de américa latina que temos hoje. Com referências que remetem a Godard e talvez um pouco de Roy Andersson, com o uso do humor irônicos e os quadros muito bem organizados e pensados, é um dos melhores curtas do festival em 2021.

Latinos 4 - A persistência da memória

Sabendo que seria incapaz de não me atingir de subjetiva por um programa que trata sobre memória, já esperava ficar imersa nos curtas deste programa. Contando com somente 3 filmes, todos documentais, o programa 4 trouxe como tema central as reminiscências do passado e como ele nos afeta hoje, tanto afetivamente quanto socialmente. São filmes que lidam com a imagem da memória, em arquivo ou no instante preciso. 

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Em A montanha lembra, da diretora Delfina Carlota Vazquez, temos uma narradora enfrentando a imagem de um vulcão em atividade. Distante, no horizonte da janela da diretora no México, aquela montanha aberta e tomada de lava é uma silhueta que guarda a cidade. Mas guarda também as lembranças da constituição originária daquele povo, suas crenças e seus rituais. A diretora utiliza-se de imagens filmadas por ela mesma de forma bastante íntima, fazendo lembrar Agnès Varda em suas andanças documentais pelo mundo. Uma reflexão acerca do que fica sedimentado na terra e se torna memória e objeto das pessoas que ocupam um lugar e o tomam para si, tendo ao lado delas a fúria do vulcão que desperta em momentos cruciais de sua história. 

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Reconstruir o passado na busca de não repeti-lo é o que o diretor Julio Barrera busca em Nossos homens ausentes, ao trazer as vozes das mulheres de sua família para narração ativa da história. Deixando-se conduzir pelos cômodos do que parece a ser casa que abriga sua mãe e suas tias, Julio busca fotos, objetos e os coloca em frente a cada uma delas, absorvendo sua narrativa. Uma família, segunda uma das vozes que ouvimos, condenada a não ter homens, o que é entendido como “maldição”. A sina, nesse caso, é repetida pois a velha história que conhecemos se repete com as mulheres da família de Julio: os homens as abandonaram e as deixam sozinhas com os filhos. É nesse ponto delicado que o cineasta remexe e lambe a ferida. O que parece é que Julio quer ser outra coisa para seu filho pequeno e, para isso, ele remonta o passado dessas mulheres que o criaram e faz dele motor do que impulsiona seu futuro.

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Por fim, temos o que também considero como um dos melhores curtas desta mostra: Correspondência, das diretoras Dominga Sotomayor e Carla Simón. Iniciando como uma narração sobre as vidas de cada uma das diretora, com voice overs e colagens visuais, o curta é uma costura de momentos e reminiscências das duas, através de trocas de cartas. Situado no contexto pandêmico, somos convidados a rever o passado familiar das diretoras, que se veem nostálgicas e sensibilizadas nesse caos instaurado pela doença e pela morte. Em dado momento, temos até um vislumbre da imagem que certamente inspirou Dominga a reconstruí-la em seu excelente longa Tarde para morrer jovem. Uma constelação visual que abraça a memória e a faz protagonista, mostrando que a rememoração do passado e sua presença no que vivemos hoje foi uma constante nos primeiros momentos do isolamento social.

É curioso pensar o quanto pudemos absorver em uma semana intensa de filmes. Como disse no texto anterior, a cabeça fervilhando de ideias é excelente para trocas, para a mesa de bar, mas perde seu encanto na frieza do virtual. Evidentemente que nos acostumamos à ideia de que essa também é uma possibilidade de se debater e enriquecer o que vimos, mas sempre tenho a sensação de falta. 

De qualquer forma, para além deste pequeno lamento, acredito que a mostra latina do 32º Kinoforum trouxe um panorama interessante e abrangente do que temos de narrativa curta hoje e, querendo ou não, mostrou o que tem se pensado nesse mundo isolado e assolado pelo luto. Ainda que amargo, acontecendo à nossa frente e se fazendo presente, da maneira que for.

Meio panorama e como tentar não falar de pandemia

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Pensei diversas vezes em como fugir dos termos pandemia, covid, isolamento e assemelhados neste texto. Obviamente, já comecei falhando. Cobrir uma mostra em meio ao caos, de maneira remota, deixa sempre um gosto agridoce na boca. Ao mesmo tempo que temos essa oportunidade de assistir um sem número de produções excelentes, no conforto de nossas casas, percebo que aquele prazer específico de sair da exibição de um programa com a cabeça fervilhando se perde. E esse ano a Mostra Latina do 32º Kinoforum, que novamente me propus a cobrir, trouxe uma diversidade enorme de mundos para dentro do meu quarto.

Se em 2020 me perguntei o que significava ser latina, neste ano eu me senti mais contemplada no que assisti. Muitas mulheres assumindo direção, roteiro e protagonismo dos filmes, além de observações precisas sobre o contexto pandêmico que vivenciamos como latino-americanos. Tenho pra mim que as veias nunca estiveram tão desesperadamente abertas quanto agora e acredito que os programas que falo a seguir resumiram de alguma forma isso.

Latinos 1 - Encontros Insólitos

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Abarcando filmes que tratam de relações microscópicas e eventos que reúnem não mais que 3 pessoas, esse programa trouxe questionamentos que contemplam amor romântico e suas possibilidades de futuro, como em Blanes Esquina Müller, e amor entre membros de uma mesma família e o que isso significa no espectro de uma futura morte, como em Muralha da China. No entanto, é mesmo nos encontros inesperados que acontecem as tramas de Hora Azul e Os Indomados, dois curtas cubanos exibidos neste programa.

Em Hora Azul, da diretora Zoe Miranda, Mariano e China encontram-se em um hospital. Ele, saindo da consulta em que descobre ter câncer de próstata. Ela, aguardando o corpo do marido recém falecido. Apesar de conhecerem-se de vista, ambos são estranhos um ao outro. E é nessa colisão em um cenário inóspito que vemos o início de uma relação, em que China lamenta com frieza a morte do marido e Mariano digere a notícia da doença. Ambos dialogam, em uma tarde na pequena casa de Mariano, sobre seus temores futuros, sua miséria e seu passado ainda reminiscente por todo o entorno. Uma rota diferente a ser traçada é vislumbrada na sequência final, mas não sem carregar em si o amargo do encontro.

Em Os Indomados, do diretor Damian Sainz Edwards, começamos literalmente no escuro, tateando junto ao protagonista pela mata. Gritos buscando por Damián, seu irmão, saem da boca de Orestes e tomam conta da imensidão noturna na selva, sabiamente localizada já no início do filme, através de um intertítulo, como sendo ponto comum de fuga de escravizados. Orestes busca por Damián de maneira desesperada, enquanto flashes de luz com homens entre si transando no meio da mata tomam seu olhar e do espectador. Há inúmeros desesperos e fantasmas no grito do protagonista, que vão além do passado e fogem de maneira atravancada para o futuro.

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 Latinos 2 - É preciso estar atento e forte

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Propondo mostrar, nos 4 curtas que abrigou, a urgência do mundo que temos agora, esse programa trouxe questões sobre violência social, abandono e paternidade, como em O sonho mais longo de que me lembro e ainda homofobia, masculinidades e aceitação em Água. Dialogando ainda com uma questão urgente e contemporânea, Quem diz pátria diz morte, do diretor Sebastián Quiroz, exibe os protestos que ocorreram no Chile em 2019, em que os manifestantes puseram fogo em diversos pontos de Santiago para reclamar o aumento da passagem do metrô. Utilizando imagens de arquivo e depoimentos, o documentário traz um excelente retrato do Chile ditatorial e as consequências desse regime de terror no país atualmente.

O destaque desse programa fica por conta de Adentro, curta produzido de maneira coletiva por 6 cineastas de diferentes países da américa latina. 

Tratando diretamente do mundo pandêmico e suas interpelações na vida cotidiana, cada diretor e diretora propõe um olhar sobre o que vê para além das janelas, portas e frestas de suas casas. Olham também para dentro, para suas relações familiares e seu entorno. Formas de lidar com a solidão são retratadas e reflexões sobre o existir em um mundo assolado pela doença e pela morte. 

Em um dos fragmentos mais marcantes, filmado todo em preto e branco, a diretora equatoriana Gabriela Calvache, dialoga com sua filha pequena sobre o que esperar do mundo pós-pandemia. As duas conversam sobre a morte iminente, à época literalmente nas portas das casas no país, e a menina chora pela possibilidade de perder a mãe. Em outro fragmento, a costa-riquenha Alexandra Latishev, se vê tomada pelo desejo e pela libido, trazendo a questão do contato físico do outro para o centro do debate.

Uma constelação de debates sensíveis, decididamente pesados e delicados, muito bem acertada ao se propor um panorama de vozes que, em conjunto, ecoam os horrores da pandemia em países latinos. Ainda que se trate de um assunto saturado, o curta traz belas imagens e propõe olhares e discursos novos sobre o que temos vivido desde 2020 nos lados de cá do mundo.

A mostra latina do 32º Kinoforum foi efetivamente rica em qualidade este ano e, respeitando o mérito destes curtas, decidi que seria melhor termos duas partes desse panorama. Por agora, fiquemos com estes dois e logo mais retorno para falar dos outros dois programas: Alegorias e Adereços e A Persistência da Memória.