Eu fiz essa lista, eu escrevi os motivos pra cada uma das minhas escolhas, e faltou essa introdução. Eu sempre deixo as introduções das minhas listas por último, porque eu acho que elas são mais importantes do que a lista em si. As listas de fim de ano do Pão são resumos de tudo o que eu gostei nos últimos meses, mas a introdução é a conclusão do meu projeto pro blog no ano.
Eu acho que, na maior parte do tempo, eu cuidei bem das coisas por aqui. Eu nunca tinha escrito tanto pro Pão quanto em 2021, e pelos primeiros nove meses do ano eu consegui manter uma inconsistência bastante constante. Eu parei de planejar posts, e deixei que minhas descobertas me guiassem. Até agosto, as coisas iam muito bem. E então eu comprei minha casa, eu pensei em deixar esse blog pra trás, e parei de postar tanto por aqui. Mas meus amigos insistiram que eu continuasse, então sempre que eu podia — sempre que a burocracia de ser proprietário do lugar em que eu quero morar, da reforma que ainda começou, e de uma vida adulta aparentemente estável davam um descanso — eu voltava aqui com uma nota. Meu projeto pro Pão esse ano era de deixar ele existir naturalmente. Eu acho que eu consegui. É um lugar confortável de novo.
2020 foi um ano de perdas. Eu perdi um bocado ano passado. 2021 foi um ano de confusão. Muita coisa mudou na minha vida nos primeiros dois meses do ano, e então nada parecia muito certo na maior parte do resto do ano. E agora, ele acaba comigo acampado no meu apartamento, olhando para a vista da sacada numa manhã de sol. A música tá acabando, e eu tô pensando em como eu e esse blog vamos mudar ano que vem. Eu não gosto de pensar muito em frente — a maior parte dos meus planos se desfez em março do ano passado, e eu não tive muita coragem de reconstruí-los desde então —, mas eu gosto de imaginar que daqui a duas semanas o ano começa de novo, e eu tenho mais uma chance de escrever por aqui. Um bom fim de ano pra todos vocês que apareceram por aqui hoje e sempre. Espero vocês no futuro, que tá logo ali, vamos torcer pra ele ser um pouquinho melhor.
Melhor filme: Bergman Island
Acho que grandes filmes negam ao seu público respostas fáceis. Eles querem que você se envolva, criando uma conexão que dobre o espaço e o tempo.
Mas acho que meus filmes favoritos fazem mais do que isso. Eles negam respostas, mas convidam você a criar mais perguntas. Eles estão em constante conversa com seu público. Eles oferecem mais do que respostas, eles oferecem possibilidades.
Bergman Island faz tudo isso. O filme permite que você faça essas perguntas profundas e complexas sobre amor, intimidade e nossa relação com a arte. Mas o que ele nos oferece? As possibilidades. Um casal vai a Fårö, cenário de algumas das obras-primas de Ingmar Bergman, e aos poucos o casal percebe as mudanças que estão ocorrendo em seu relacionamento. “O que está acontecendo?”, eu comecei a questionar. No final, a pergunta parecia uma memória distante, enquanto eu me questionava sobre o ímpeto da expressão artística. A arte pode ser um fantasma como nossas memórias de lugares e pessoas são? Arte pode ser algo mais do que isso?
Bergman Island não é um filme difícil. Como Cópia Fiel, é um filme surpreendente aberto a seu espectador, onde seus atores fluem em seus cenários enquanto falam e sentem. Não há nada mais simples do que isso. É toda a possibilidade nele que o torna inesquecível, assustador e estranhamente eterno, como toda grande arte pode ser.
E também…
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Annette (de Leos Carax)
Meu filme favorito durante boa parte do ano, Annette é uma monstruosidade única. Vem de um lugar íntimo e desconfortável de fracasso paterno e genialidade artística, sendo entoado por canções bem humoradas em cenas grandiosas. É honestíssimo sobre suas intenções, e mesmo assim é difícil de explicar o que, exatamente, esse filme está fazendo com você (na MUBI).
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Ataque de Cães (de Jane Campion):
Caramba, esse filme me tirou o chão. Mas não foi do nada, não foi uma surpresa. Foi aos poucos, como se me fizesse esquecer como andar, como ficar em pé, e então me fez esquecer onde eu piso. Gradualmente, Ataque dos Cães revela ao que veio. E o que veio é cruel, forte e poderoso (na Netflix).
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Meu Pai (de Florian Zeller):
Que surpresa incrível. Eu achei que ia ver mais um filme sobre como é triste ficar velho e esquecer, mas Meu Pai vai muito mais além disso. Através da montagem, Florian Zeller faz do espectador uma vítima de sua própria percepção e memória, e nos coloca ao lado de seu personagem principal (Anthony Hopkins, em sua melhor atuação) (em DVD, blu-ray ou digital)
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Amor, Sublime Amor (de Steven Spielberg):
Amor, Sublime Amor é um daqueles filmes que são tão grandes que a gente mal acredita que nossos olhos foram capazes de ver tudo aquilo, toda aquela cor e todo aquele movimento, todas aquelas canções e toda aquela dureza. É mais do que a realidade nos permite, e é maravilhoso (nos cinemas).
Melhor jogo: Forza Horizon 5
Eu nem pude acreditar, quando vim preparar essa lista. Eu não sou um grande jogador de jogos de corrida. Além de Burnout Paradise, meu maior contato com o gênero é através de Mario Kart. E não tem quase nada de Mario Kart aqui, com exceção daquele sentimento perfeito de velocidade, de que você está prestes a perder o controle do carro, e por um milésimo de segundo você faz aquela volta perfeita, ultrapassa por milímetros o oponente, ou destroi o carro com tudo em uma formação rochosa belíssima.
Forza Horizon 5 é um deleite aos olhos. Eu só pude jogar esse jogo na nuvem (eu não tenho um Xbox nem um computador pancada o suficiente), e nem minha internet conseguiu reduzir a beleza dele. Não são só gráficos. É a qualidade com que o jogo responde às suas ações. Como o carro dá uma tremida quando você vira demais, ou parece uma manteiga na chapa quente quando você atinge o pico da velocidade em um trecho plano. O jogo responde à tudo o que você pretende fazer em meio a um pôr-do-sol belíssimo e em áreas gigantes. Eu nunca tinha muita ideia do que eu tava fazendo ou se eu ia ganhar uma corrida, mas Forza Horizon sabe muito bem executar a máxima “mais que o destino, o que importa é a viagem”. Cada segundo desse jogo é perfeito (no Xbox e no Windows, ou na nuvem pelo Game Pass).
E também…
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Halo Infinite
Master Chief tá de volta e é incrível. Eu sou um fã dessa ópera espacial tão grandiosa quanto sem sentido, e Halo Infinite entrega o jogo mais ambicioso da série até aqui. Ao invés de abraçar o mundo aberto de vez, Infinite cria um hub gigante para o meio da sua campanha, manejando a progressão narrativa e a liberdade que os melhores momentos que Halo ofereceu até aqui. Finalmente você sente aquele frio na barriga de pisar em um mundo alienígena de novo. Não só por medo do desconhecido, mas pelas possibilidades que algo assim oferece (no Xbox e no Windows, ou na nuvem pelo Game Pass).
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Psychonauts 2
Por muito tempo, ser fã de Psychonauts era como fazer parte de um clube secreto ou de saber sobre aquele clássico cult que ninguém fala muito. Era um jogo de plataforma com grandes ideias e excelente execução, e fico feliz que Psychonauts 2 faz exatamente a mesma coisa — ideias ainda mais interessantes, e uma execução ainda mais excepcional —, finalmente dando à essas ideias a devida audiência. É um jogo que eu amei jogar, e amo relembrar daqueles momentos perfeitos que ele sabe fazer tão bem (no Xbox, PlayStation, Windows e na nuvem pelo Game Pass).
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Populus Run
Eu sou fissurado em fazer umas bolotas em forma de pessoa correrem em pistas feitas de comidas gigantes até que uma delas chegue até o final. Tem algo de confortável em não ter tanto controle assim sobre elas, e mesmo assim ficar satisfeitíssimo quando elas conseguem chegar lá (no iOS e Mac pelo Apple Arcade).
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Metroid Dread
O jogo mais difícil que eu joguei no ano, e mesmo assim nunca chega nem perto de ser frustrante. Metroid Dread tem aquela qualidade dos grandes jogos da Nintendo: seu design é tão perfeito que você começa a duvidar que o jogo está guardando uma surpresa que vai mostrar para você que estava jogando tudo errado. Mas não. Dread é sobre se sentir confortável com suas habilidades, e saber como usá-las juntas de maneiras diferentes. É game design perfeito (no Nintendo Switch).
Melhor disco: Her (Original Score) (de Arcade Fire)
Eu ouvi esse disco muitas vezes, e muito antes de ele ser lançado. Mas algo no lançamento surpresa dele no início do ano me fez bem. A trilha-sonora de Ela sempre foi minha música favorita para ouvir de manhã, ou enquanto estou escrevendo.
Fora algumas mudanças em uma faixa e outra, esse lançamento tardio é o mesmo que embalou alguns dos momentos mais bonitos da minha vida, e que me acompanhou em alguns dos momentos mais confusos também. Mas tem uma certa qualidade que ele ganhou agora, nesse momento em que eu estou me reconectando com a música. É como rever uma velha amiga que você perdeu contato há muito tempo, mas que se reconecta instantaneamente assim que você a vê de novo. Está um pouquinho diferente, mas é exatamente quem você lembra. É como sentir um bom abraço de novo. Você percebe que fazia tanta falta que nem sabia mais o que era saber se sentir tão bem assim. (Spotify / Apple Music).
E também…
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Patina (de Peter Gregson)
Minha trilha-sonora de corridas, por incrível que pareça, é esse disco meio silencioso que lança notas para todas as direções. Mas Patina cria momentos tão específicos em seus crescendos, como quando eu alcancei a sombra de uma árvore num dia quente, e por uns instantes o silêncio antes da música irromper me fez ouvir minha respiração se misturando com o farfalhar das folhas da árvore, que começaram a balançar com uma brisa que surgiu bem quando eu precisei tomar fôlego. Foi perfeito. (Spotify / Apple Music).
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Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor (de Maria Gadú)
Gadú canta músicas que a fazem se sentir em casa, e tem algo de especial na forma que ela configura o álbum. Vai ver é porque eu também ouvia essas músicas na casa dos meus pais, mas eu acho que é porque ela consegue capturar o que faz as canções serem tão íntimas para ela e traduzir na voz, no tratamento das notas. É familiar, e também é surpreendentemente novo. (Spotify / Apple Music).
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An Evening with Silk Sonic (de Silk Sonic)
Eu não sei muito bem explicar como esse álbum é bom, mas eu falei pro meu amigo Victor que ele parece aquele momento em que você morde uma bolacha amanteigada no fim da tarde sentado numa cadeira de praia de uma sexta-feira de feriado ao lado de seus amigos, e sente a bolacha se dissolver sobre a língua. É gostoso demais. (Spotify / Apple Music).
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30 (de Adele)
Um novo álbum da Adele é tão raro quanto marcante. Demora anos para ela lançar uma música nova, mas quando vem ela entrega algo como Hold On e To Be Loved: músicas inesquecíveis e fortes demais para ouvir no repeat, e mesmo assim você o faz. É algo para nos marcar, e para lembrarmos do que ela faz quando aparece — coloca nossas ânsias e sensações em seu registro gigante, e ela nunca esteve tão boa quanto em 30. (Spotify / Apple Music).
Melhor link: Envy por ContraPoints
Eu acho que a Nathalie Wynn sabe que esse vídeo é uma obra-prima, mas eu não sei se ela sabia disso enquanto fazia ele. Em Envy, ela faz uma viagem pela história do mundo para observar como a inveja define nosso comportamento e nossas escolhas políticas, e como estamos sucumbindo aos efeitos destrutivos dela.
É uma obra-prima. Em seus 100 minutos, Wynn não dá só uma aula de filosofia, história e psicologia, mas encontra as raízes do mal dos nossos tempos, dá nomes e datas para o que a gente sente ser a queda de uma civilização. Ao identificá-lo, ela também nos dá um pouco de esperança — e uma caralhada de piadas. Eu vi esse vídeo algumas dezenas de vezes desde que ele apareceu, e ele sempre me surpreende (seja por uma realização que eu não tinha pego antes, ou por uma piada que aparece em meio segundo e se você piscou você perdeu). Tem aquela qualidade que os melhores trabalhos acadêmicos têm, de encontrar uma ideia muito primordial e esmiuçá-la com tanta vontade que chega a ser divertido observar sua ramificação. Eu acho que eu não tive um momento tão catártico esse ano como quando Wynn trouxe a comparação de Bob Esponja com Amadeus. Realmente, uma obra-prima.
E também…
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The Abortion I Didn’t Have por Merritt Tierce (The New York Times)
O texto mais doloroso que eu li esse ano também foi o mais bonito. Um relato sobre a vida de uma mulher e de seus filhos, e de toda a condição de existência que foi imposta sobre eles.
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Playtime por Dunkey (YouTube)
Quem diria que a melhor análise fílmica que eu ia me deparar esse ano viria do Dunkey falando de um dos melhores filmes que já existiu. 2021 foi estranho pra caramba.
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These Were Our Years por Sara Benincasa (Medium)
Acho que o relato que melhor captura o que é existir no início dos anos 2020. É de partir o coração, mas a ideia de que existe um futuro dá um pouquinho de conforto.
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“Consent” Is the Wrong Framework for Experiencing Art por Gretchen Felker-Martin (Gawker)
Eu não sou muito bom em escrever sobre recepção e cultura, e daí eu leio algo como isso e me sinto um fracasso.
Melhor série: The Underground Railroad
Nada nesse ano me tocou tanto quanto a minissérie The Underground Railroad, de Barry Jenkins. Eu recomendo para todos que me perguntam uma boa minissérie para assistir. Eu digo que ela mexeu profundamente comigo, mas eu não digo o porquê. É fácil para um homem branco celebrar uma minissérie sobre a escravidão, de celebrar a representação do grande trauma fundador do nosso país, do racismo sistemático que assola nossa sociedade, e do sofrimento desumano e avassalador causado por brancos por centenas de anos. Essa é uma série sobre uma mulher fugindo muito mais da escravidão do que em busca da liberdade. Humanista, Jenkins dá ao espectador espaço para nos enxergarmos junto a Cora, mas jamais procura igualar minha vida ao sofrimento dela.
É um impulso humano de nos enxergarmos em histórias. Mas uma das coisas que The Underground Railroad faz de tão potente é fazer a série nos enxergar tanto quanto nós a assistimos, de entender a repercussão daquela violência e do sofrimento pelo tempo. Em certos momentos, Jenkins corta para seus personagens dilatados do tempo narrativo, olhando para a câmera — olhando para nós — como se convidasse seus fantasmas para dentro do nosso íntimo. Enquanto eu assistia essa minissérie, que eu ainda não consegui rever mas que não sai da minha mente, eles olhavam direto para mim, cruzando o espaço e o tempo. E o que mais me deu medo era o que eles estavam enxergando. No Prime Video.
E também…
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Succession, terceira temporada.
Minha série favorita no ar atualmente voltou com sua melhor temporada, que parece que começa como uma comédia e termina despedaçando o seu coração sem nem você saber o motivo. Mesmo sendo pessoas horríveis, ver os filhos se destruindo a pedido de um pai abusivo é de desiludir qualquer um. E Succession não tem piedade de ninguém (na HBO Max).
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Estação Onze, minissérie.
Chegou no finalzinho do ano, e talvez seja minha segunda estreia favorita? Quem diria que uma série sobre o fim do mundo ia querer me fazer presenciar o que vem depois do apocalipse. É linda, e responde uma pergunta que me segue há mais de um ano (na HBO Max).
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Betty, segunda temporada.
Um milagre na TV, e uma tristeza que ela foi cancelada. Pensando bem, é um milagre que ela tenha existido de qualquer forma (na HBO Max).
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Mr. Corman, primeira temporada.
Daquelas one-season-wonder, essa série (já cancelada) sobre um homem sofrendo com ansiedade nas vésperas do primeiro lockdown em 2020 é um mergulho na psique de outra pessoa. Mas Mr. Corman cresce quando se deixa enxergar todas as pessoas ao redor de seu protagonista, bem como o personagem começa também a enxergar o mundo ao seu redor. Se tornou uma das séries mais bonitas que eu vi no ano, e o fato de ter só uma temporada é, em si, uma qualidade. Torna ela mais imediata, mais verdadeira (na Apple TV+).