Uma das memórias mais marcantes da minha infância é a de uma aula na pré-escola. Minha professora explicava sobre os cinco sentidos, e o que cada um deles era. Visão, audição, olfato, paladar e tato. É algo que a gente sempre dá como garantido, uma constante na vida. Mas minha professora tornou aquela aula marcante pra mim com uma pequena observação sobre a existência: a gente sente o tempo todo, mesmo quando acha que não. O corpo está sempre respondendo a um toque, nem que seja da nossa roupa. Os olhos estão sempre enxergando algo, mesmo que fechados. Nosso nariz está sempre atento aos cheiros ao nosso redor. Querendo ou não, a gente tá sempre sentindo algo.
É uma daquelas realizações que nos deixam maravilhados quando criança. A gente tá sempre sentindo algo. Hoje em dia, eu uso essa memória para sentir essa exaltação da vida que ela me causou quando eu era pequeno, e também para me acalmar: eu ainda sinto o vento batendo no meu corpo. Eu ainda sinto o gosto do feijão da minha mãe. É como se isso me garantisse que eu ainda faço parte desse mundo.
É com uma realização dessas que começa American Utopia.
De um jeito semelhante à Stop Making Sense, o outro filme concerto idealizado por David Byrne, American Utopia começa no vazio: Byrne está no centro do palco vazio, sentado em frente à uma mesa, com um modelo de um cérebro humano em suas mãos. Começando o espetáculo com Here, Byrne nos explica algumas partes do cérebro — aquela que lembra, aquela que confunde, aquela que continua funcionando, a que liga todas essas partes. Enquanto isso, o palco começa a tomar forma e os instrumentos começam a tocar. É sutil, no início, mas quando você percebe o que está acontecendo, você percebe. Você aprecia a forma que o cenário ajuda na iluminação, ou como a união dos instrumentos formam os sons, ou como a dança guia o nosso olhar pelo palco.
Composto por músicas de seu último álbum como Everybody Is Coming To My House, e clássicos favoritos como This Must Be The Place, American Utopia pode servir como filme-protesto, continuação do clássico Stop Making Sense, uma declaração final do seu artista, ou uma experiência comunal. Tem momentos, como na poderosa execução do grito de guerra Hell You Tambout de Janelle Monáe, em que é tudo isso junto. É como se Byrne fizesse questão de nos chacoalhar e gritar, “a gente ainda pode sentir tudo isso juntos”.
American Utopia captura o que eu mais amo na obra de Byrne, especialmente na época que ele participa dos Talking Heads: uma capacidade de fazer observações e conexões simples entre as coisas nos deixar maravilhados pelas possibilidades da vida. O espetáculo de Byrne é lindo por conseguir transformar uma luta contra a alienação e a injustiça em algo semelhante à necessidade de esperança e de sonhos, sem nunca parecer simplificador demais. Pelo contrário, American Utopia é daquelas obras que não têm medo de observar o quão difícil e complexo é tentar enxergar o todo, mas o faz com dança e poesia e falta de sentido. Byrne escreve sobre prédios e, de um jeito meio mágico, consegue falar sobre nosso lugar no mundo. Ele canta sobre assistir TV e captura a inquietação que a gente têm antes de dormir.
Embora seja um espetáculo claramente vindo da mente de Byrne — ele é, querendo ou não, um resumo da sua carreira —, American Utopia também é visivelmente o resultado do trabalho colaborativo. Como Stop Making Sense, Byrne isola cada um de seus colaboradores para que os espectadores entendam como o que eles estão vendo é o resultado de vários trabalhos. No filme, o espetáculo tem um integrante a mais. Spike Lee, o mestre do cinema que é, nunca tenta fingir que o filme possa servir como uma alternativa de ver a apresentação ao vivo, principalmente nos dias de confinamento que a gente ainda tá vivendo. Pelo contrário: Lee coloca toda a sua habilidade de encenação e decupagem para transformar o filme em uma experiência única, permitindo que a gente veja a apresentação de ângulos que a performance ao vivo não nos permite, com a câmera navegando entre os integrantes do elenco ou em posições impossíveis.
Embora American Utopia seja um espetáculo urgente por si só, é a colaboração de Lee que captura essa urgência e a transforma em uma experiência visualmente pulsante, ressaltando a distância entre os membros do elenco ou criando confrontos musicais belíssimos. Com I Must Watch TV, ele aproveita a iluminação forte da performance para criar uma batida quase opressora. Já em I Know Sometimes A Man Is Wrong, a gente navega entre os membros da banda já no palco, enquanto vemos a sombra daqueles que estão prestes a entrar. Em Blind, ele homenageia alguns momentos clássicos de Stop Making Sense, que desbravou o filme-concerto para toda uma geração.
O que torna American Utopia especial é justamente essa união, entre aquilo que é urgente com aquilo que é possível. É uma resposta aos tempos sombrios que a gente vive, mas também é uma exaltação do que a gente pode construir junto. É um filme com raiva, mas também uma celebração de poder expressar essa raiva, para fazê-la ter algum sentido. É um espetáculo que me fez sentir vivo o tempo todo, com uma intensidade que as vezes parecia ser demais para eu aguentar. Mas acho que esse é o melhor elogio que eu poderia fazer: ele me lembrou que é possível sim sentir tudo isso, porque é algo que a gente sente o tempo todo. Nós só precisamos lembrar que essa é a nossa condição humana, e esse é um dos melhores presentes que a arte pode nos dar.