“O que é ser latina?”, era a pergunta que me atingia enquanto adentrava nos 15 curtas selecionados para a Mostra Latino Americana do 31º Kinoforum. Esse continente imaginário, fundado a partir das veias abertas, produz seu cinema de maneira quase à deriva. Os processos que vemos nas telas, são incrustados deste espírito que atravessa terras e memórias de povos subjugados e colonizados. De países que cresceram a mercê do domínio estrangeiro, mas que tem sua linguagem própria, seus mitos e seu imaginário coletivo para narrar no cinema.
Pensando numa forma de organizar esse relato do que assisti nesta última semana, decidi que a melhor forma seria comentar individualmente cada dia de mostra.
A curadoria organizou-se em torno de programas com curtas que conversavam entre si ou mesmo partilhavam dos mesmos pressupostos temáticos. Portanto, acredito que seja um boa guia para os destaques que farei a seguir.
O programa 1 - Micromundos - abrigou 4 curtas que tinha como eixo de ligação narrativas sobre o ordinário, os rituais e organizações próprias daqueles personagens retratados. Quando se trata de falar do detalhe, daquilo que por vezes nos escapa, acredito que o formato curto seja uma da melhores formas de fazê-lo. Invadir e se apropriar de um microcosmo em 15, 20 minutos é tarefa difícil, mas que acredito ter sido muito bem cumprida nesse programa da mostra.
Destaco aqui o curta Mamapara, do diretor Alberto Flores Vilca.
Mamapara
Mamapara (Peru, Bolívia, Argentina | 2019 | 17 min)
Filmar a rotina de uma senhora não é tarefa simples. Os clichês neste tipo de narrativa estão sempre à espreita, mas Alberto parece dar um passo além ao nos apresentar sua mãe, Honorata, uma vendedora ambulante no Peru. Narrado totalmente em quechua, com voice overs do próprio diretor, Mamapara traz o lirismo necessário para se apresentar a dureza da vida de Honorata. Não a romantiza, mas a escancara, através das palavras da própria senhora, que nos conta passagens de sua vida, enquanto executa suas tarefas diárias.
Alberto, diretor e filho, faz aqui o papel de narrador externo. Ele nos conduz a Honorata e à dureza de sua vida, mas faz isso através de imagens metafóricas como a chuva que volta pra terra e a frieza da câmera diante de Honorata guiando sozinha um carrinho carregado de doces para venda. Toda as ações da senhora são mostradas de maneira distante, sem intervenção do observador que, atento, deixa Honorata em seu lugar, sem intervir.
Mesmo no momento ápice do filme, a distância é tomada. Honorata sofre, mas seu sofrimento é seu. Alberto sofre também, mas não interfere no curso da natureza. O que vemos em Mamapara é a inevitável onipotência da natureza, do envelhecimento e do fim. Honorata é a sobrevivente que permanece, que não luta contra o retorno da chuva para o céu. E que não emudece nem esmorece, mas lamenta o que precisa e segue em seu lugar.
O segundo programa - Fantasmagoria da Violência - propunha filmes com temáticas sobre luta pela sobrevivência a os fantasmas reais que povoam nosso entorno. A rememoração da ditadura chilena, que deixou marcas irreparáveis no país e criou personagens absurdas como em La Mamita e a brutalidade da violência que deixa marcas oníricas nas crianças, como em La Boca del Diablo e El Remanso, são os assuntos que permearam esse segundo dia de mostra latina.
Destaco aqui o curta Las Fauces, do diretor Mauricio Maldonado.
Garganta
Garganta - (Colômbia | 2020 | 15 min)
O isolamento de um jovem é o estranhamento necessário para que nos percamos nas florestas chuvosas do curta colombiano. Deivis, o protagonista, não aparenta ter razão para estar naquela floresta. Seu semblante pesado e o constante estado de vigilância, no entanto, denunciam um passado obscuro e difícil.
A solidão de Deivis se desfaz assim que ele encontra um corpo na estrada, que o seguirá pela floresta de forma silenciosa. A densidade da trama se dá através de longos planos fixos, cercados pela chuva e pela umidade das árvores. A monotonia da vida do protagonista transpassa a narrativa a todo momento. Descobrimos pouco do personagem e de seu passado, o que talvez seja o ponto mais frágil do filme. No entanto, sabemos que há um mistério que liga aqueles dois meninos e os faz transcender, quase literalmente.
O que liga os meninos que atravessam a floresta em suas motos, com armas a tiracolo, ao destino de Deivis é incerto. Há uma violência não dita, que os empurra para esse isolamento e que deixa o espectador sem respostas. Mas, de qualquer forma, a resposta se perde naquele final coletivo, de jovens contemplando a fúria de uma cachoeira.
Já no terceiro dia - O Ontem e o Amanhã - o passado e as feridas não cicatrizadas se apresentam de forma mais pungente. Os anéis da serpente lida diretamente com a ditadura e os horrores experimentados por aqueles que descendem dela; Em HH, o diretor busca respostas para um desaparecimento único, quase extraordinário. Aqui, as respostas continuam sem sentido, sem justificativa para a tortura imposta por ditaduras e seus exércitos.
Destaco As Partículas, da diretora Malena Vain.
As Partículas - (Argentina | 2019 | 14 min)
Uma criança nada sozinha na piscina e uma voz fora de quadro a chama pelo nome. De repente, Martín precisa submergir e voltar para a realidade da casa que está. Algo se desfez naquela família e vemos uma mãe preocupada com uma mudança repentina. Malena conduz a narrativa detendo-se na relação mãe e filho e em como ela se desenvolve diante da morte iminente de algo. Martín precisa se preparar, mas também a mãe precisa entender seu espaço e a perda que o menino está enfrentando.
A conversa final entre mãe e filho, que dá o título do filme, coloca em perspectiva a morte e a perda. Algo maior pode nos transformar em poeira, em partículas. Não está ao nosso alcance o controle do que irá acontecer e nem das mudanças inadiáveis. Martín aprende na escola sobre a poeira do universo e agora aplica esse conhecimento, talvez numa tentativa de confortar a mãe. Ou mesmo, numa tentativa de entender o que acaba de acontecer. Mas as coisas não permanecem como estão e essa é a verdade para esta família agora.
Por fim, o último dia de mostra - Territórios do Corpo - finalizou a sequência dedicada a filmes latinos com curtas que exploram a relação das transformações corporais e sentimentais pelas quais passamos. Uma animação experimental, que trata das metamorfoses necessárias para se estabelecer a morte de alguém ou a sua memória, como em Eclosão; o atrito adolescente com a chegada de uma estranha, e como a organização em torno de uma masculinidade tóxica prejudica a todos, é o tema de A Ponte das Crianças Travessas; e, por fim, a adolescência em suas encruzilhadas de amadurecimento, os ritos de passagem que versam sobre sexualidade, descoberta do corpo e dilemas éticos, em Febre Austral.
Sol de Planície, o filme de Manuel Irene Espiritia, é que escolhi para terminar esse apanhado de textos.
Sol de Planície
Sol de Planície - (Colômbia, México | 2019 | 20 min)
Meli precisa cuidar do irmão, uma criança ainda menor que ela. Ao lado de sua mãe, que dirige um caminhão por uma estrada escura, Meli vela o sono de seu irmão. Não sabemos o destino dessa família, até vermos na casa da avó. Um lugar escondido, distante de tudo e perfeito para as aventuras da solitária Meli. A menina passa seus dias entre brincar com os pássaros que a avó cuida para vender e explorar o terreno em volta da propriedade.
Porém, a mãe de Meli não está bem. E a sutileza da diretora ao mostrar a mãe em uma clara escalada de depressão é notável. Meli não entende o que acontece com sua mãe e nós a acompanhamos neste processo. A confusão mental e o estar entre o cuidado com os filhos e a necessidade de sumir parecem ser o conflito que a mãe enfrenta. A família precisa passar por isso e Meli precisa estar atenta. Precisa cuidar do irmão, mas ainda é muito pequena. Não pode querer salvar o mundo, muito menos os pássaros de sua avó. Mas não há tempo para nada quando a vida precisa seguir, apesar do fogo, apesar da prostração da mãe e da inércia da avó. Meli não tem escolha.
Eu não acredito que há uma resposta para este sentimento de não pertencimento ao que é ser latina. As latinidades são muitas mas, ao mesmo tempo, quando falamos de Brasil, talvez esqueçamos que estamos aqui. Que esse território é miscigenado, transformado a força pela colonização e agora vive quase em uma negação identitária. A mostra latina trouxe um panorama abrangente dos cinemas que temos aqui, nesses países tão próximos. O sentimento de permanência, de preservação de rituais e mitos perpassa inúmeros filmes da mostra. Ainda sim, não há como se pensar numa América Latina única.
As fronteiras existem, os lados estão postos e há que se entender isso. O voltar-se para si, talvez, seja uma resposta. O olhar para dentro das nossas raízes latinas, para o que construímos enquanto indivíduos colonizados, descendentes de povos expurgados. Não é uma resposta, mas é uma forma de começar uma acolhida que pode ser colocada em nossas narrativas e, por fim, em nosso cinema.