Eu me tornei fã de carteirinha da diretora americana Kelly Reichardt desde quando eu vi Certas Mulheres pela primeira vez, depois do meu amigo Leo recomendar o filme dizendo que “é exatamente o tipo de filme que eu gosto”. O Leo acertou em cheio, Certas Mulheres podia muito bem se chamar “Arthur Freitas Favorite Hits™”. Desde então eu assisti todos os outros filmes da diretora, e espero ansiosamente pelo First Cow que ela lançou ano passado.
Como todos meus filmes favoritos, eu revejo os filmes da Kelly Reichardt direto. Seja quando eles entram na seleção do MUBI ou quando acordo cedo num domingo (o meu momento favorito pra ver filmes é no domingo de manhã).
Não que seus filmes sejam feitos pra serem assistidos a qualquer momento. Pelo contrário. Eu acho que a melhor analogia que eu consigo pensar é que os filmes da diretora são como quando eu aprendi a tomar café. Eu odiava no início, porque era forte e o gosto não parecia com nada que eu tinha provado antes — por que diabos eu ia querer tomar aquilo?! —, mas então minha mãe me apresentou café com leite, e como café com leite era bom numa manhã de inverno. Tinha um momento certo pra aprender a gostar de café, e era aquele. Hoje eu continuo tomando café, não só nas manhãs de inverno, mas a ideia é a mesma: não é algo que eu queira tomar quando tô numa noite com amigos (embora já tenha acontecido), mas é perfeito pra aquecer a mente antes do trabalho ou pra baixar um almoço especialmente pesado.
Os filmes da Kelly Reichardt são assim também. Por um acaso o Leo acertou em cheio na recomendação e eu vi Certas Mulheres num momento perfeito pra ele. São filmes quietos e simples, mas nunca vazios e simplórios, sobre pessoas isoladas, literalmente ou não, que procuram desesperadamente por alguma conexão com alguém, ou que são incapazes de conseguir firmar uma conexão assim. Sào pequenas histórias de momentos breves não necessariamente de epifanias, mas daquela realização estranha de que se está vivo, um misto de empolgação pelas possibilidades, e frustração por tudo aquilo que deu errado, ou que nos segura em uma situação que queríamos que fosse melhor.
O Atalho (Meek’s Cutoff, 2010)
Em Wendy & Lucy (2008), talvez o melhor filme da diretora, Michelle Williams interpreta Wendy, uma mulher que está indo para o Alaska para procurar emprego acompanhada de sua cadela, Lucy. Wendy não tem dinheiro (ela está vivendo no próprio carro), e tenta roubar um saco de ração para Lucy, quando é pega e vai presa. Wendy passa a noite na cadeia, e quando volta Lucy está desaparecida. O filme então acompanha Wendy fazendo pequenas tarefas para tentar conseguir um pouco de dinheiro/descobrir onde está sua cadela/ocupar a cabeça pro desespero não bater. Se a trama parece que vai criar um thriller, Reichardt se recusa a criar a tensão necessária pelo gênero, preferindo acompanhar, com certa distância mas bastante identidade, Wendy fazendo o que pode: recolhendo latinhas por uns trocados, indo ao abrigo de animais para ter alguma notícia de Lucy.
Não é necessariamente calmante, porque é uma situação tensa, mas Wendy está segurando os nervos para não se desesperar, e Reichardt segura a reação emocional do espectador para acompanhá-la (ela guarda isso pro momento mais forte do filme, quando descobrimos o que aconteceu com Lucy). Acho que essa é a maior regra dos filmes da diretora, e o porquê eles oferecem um conforto nessa época de distanciamento: seus filmes se centram em observar pessoas sozinhas — fisica ou emocionalmente —, tentando viver mais um dia. E é na forma como elas passam esses dias, lavando a louça ou arando a terra, que é um tanto confortável de assistir. Mesmo quem divide a casa com alguém nessa quarentena, o quanto todos nós, em alguma medida, nos sentimos sozinhos, e damos atenção ao nosso cotidiano para não enlouquecer?
Em Antiga Alegria (Old Joy, 2006), o segundo filme da diretora, dois amigos que não se viam há muito tempo saem para acampar. É quando eles percebem que não têm muito mais em comum, e muito dessa viagem de fim de semana é passada no silêncio entre eles. Ainda há alguma coisa entre os dois — o resquício de uma amizade, ou a memória de algum tempo em que os dois passaram juntos —, mas Reichardt os observa montando uma barraca ou tomando banho nas piscinas térmicas de uma montanha. Ela observa o silêncio desconfortável dos dois, próximos um do outro, mas há anos de distância. Em Movimentos Noturnos (Night Moves, 2013), três ativistas planejam uma ação para chamar a atenção da população de uma cidade no interior dos EUA. É um thriller de cima abaixo, mas muito dele é feito com Reichardt observando as diferenças em como cada um dos personagens leva o plano em frente e como aquela missão em grupo significa coisas diferentes para cada um, que entrentam dilemas sozinhos.
Certas Mulheres (Certain Women, 2016)
Muito pouco acontece nos filmes da Kelly Reichardt, e eu tô vendo essa torcida na cara que você tá fazendo agora, mas deixa eu te garantir: existe uma diferença entre cinema lento, que é o que Reichardt faz, e muito do que alguns diretores contemporâneos acham que estão fazendo. Um dos princípios do cinema lento, como o de diretores como Michelangelo Antonioni e Andrei Tarkovsky, é que pouquíssima coisa acontece na tela, mas tudo o que acontece é essencial. É um dos segredos de Stalker, um dos clássicos do cinema soviético, que observa a natureza se movimentar até que ela pareça estranha o suficiente para parecer ser de outro mundo.
Reichardt opera no nível desses mestres, mas se foca em detalhes muito menores do dia-a-dia, e isso é algo que tá me trazendo muito conforto nesses últimos dois meses. Eu sempre gostei de como ela enxerga, como ela quer ver seus personagens enfrentando o cotidiano, e a calma que ela tem para observá-los é quase que terapêutica: seja uma trupe de colonos que atravessa o deserto em O Atalho ou uma advogada passeando pelo shopping depois de um dia estressante em Certas Mulheres, Reichardt os acompanha nos detalhes: como os colonos vão atravessar uma duna se o gado não anda para trás; ou como Laura Dern termina de comer, olha ao redor e parece que o peso do mundo cai em suas costas.
Todos nós vivemos nossas pequenas comédias e tragédias do cotidiano, e nesse tempo que estamos passando em casa parece que nos força a parar de olhar lá pra fora, lá pro futuro, e ter que se deparar com aquilo que nós temos agora e quem somos agora. É exatamente esse tipo de realização que emana dos filmes de Reichardt, e ver essas pessoas enfrentando elas cada um do seu jeito, com diferentes níveis de sucesso, pelo menos tá me fazendo me sentir menos sozinho.