Alguma coisa mudou no jeito que eu escuto música há uns anos. Em 2013, mais especificamente. Até então, eu amava música. Eu amava entrar num blogspot e baixar alguma discografia e ouvir. Eu gostava de acompanhar lançamentos de artistas que eu gostava e de ir na Wikipédia e ouvir as referências musicais desses artistas também. Eu nunca entendi muito de música — o que faz música boa? Eu não sei, e é um dos motivos que não escrevo muito sobre aqui no Pão —, mas eu amava ouvir e descobrir música boa mesmo assim.
Eu tenho uma relação engraçada com a música. Eu cresci em uma casa onde todos apreciam música com a força da alma. Meus pais me falavam da história do Brasil e da vida deles através das músicas. Eu acredito que vivo no país com a melhor música do mundo, e estou cercado de amigos que amam todos os tipos de música, e me aproveito desses gostos musicais variados pra aprender um pouco de tudo. Como eu não tinha muita ideia do que faz uma música ser boa, eu acredito no que me falam. Se eu gosto daquela música, é uma música boa.
Essa era uma relação bem saudável. Tão saudável que eu gostaria de gostar de filmes como eu gostava de músicas. Era simples e não tinha muito sentido, mas fazia sentido. Só que algo mudou depois de 2013, e eu me afastei desse sentimento.
Eu lembro direitinho do último disco que eu amei. Que eu sentei com meus amigos e ouvíamos ele juntos. Foi Random Access Memories, do Daft Punk. Eu lembro direitinho, porque eu estava no trabalho quando a gente conseguiu baixar o disco, e a gente ficava conversando sobre ele num grupo no Google Talk, porque o chefe não ia desconfiar que o Gmail tava aberto. E foi mágico, como todo aquele momento que tu escuta teu novo disco preferido.
Isso nunca mais aconteceu. Quer dizer, até recentemente, eu nunca criei uma relação com um álbum como eu criei com RAM, lá em 2013. Isso não significa que nenhum álbum nesses últimos anos é tão bom quanto RAM, longe disso. Ou que eu não gostei de nenhuma música desde então. Mas eu perdi algo lá atrás, e eu demorei pra pegar de volta.
Como eu não entendo muito de música, minha apreciação de um disco não depende do disco em si. Ou pelo menos não só dele. Eu não consigo ser objetivo na minha subjetividade como eu sou com um filme ou com um jogo, por exemplo, coisas que eu entendo o porquê de eu ter gostado ou não de algo, e conseguir diferenciar esse meu gosto daquilo que a obra faz. Eu não faço ideia do porquê uma música é boa, ela simplesmente é.
Assim como RAM pra mim é, também, aquele momento específico em que eu e meus amigos estavamos matando trabalho pra ouvir o novo disco do Daft Punk, outros dos discos que eu levo comigo têm memórias que me conectam com eles de um jeito diferente. Eu lembro do meu pai falando dos dias de luta dele e da minha mãe ouvindo o Alucinação do Belchior, e minha mãe lembrando de uma época difícil da infância dela com o meu avô quando a gente ouvia o Álibi da Maria Bethânia num dia em que eu matei aula da escola porque tava chovendo. Eu já escrevi aqui sobre todas as memórias que The Suburbs acompanhou também.
O que mudou de 2013 pra cá é como eu escutei música, basicamente. Eu lembro direitinho do momento que eu percebi que algo mudou, ouvindo Reflektor sozinho com outras pessoas em um vídeo misterioso do YouTube. Todo mundo lá ouvindo o álbum, mas todo o mundo sozinho. Eu não tinha ninguém ouvindo comigo e descobrindo aqueles sons. Por mais que eu ame Reflektor, e eu amo aquele álbum, eu nunca levei ele comigo como os outros até ali. Algo tinha mudado. E isso aconteceu direto desde então, com álbuns sensacionais que eu simplesmente fiquei distante demais pra abraçar com todas as minhas forças. Eu queria desesperadamente apresentar No Shape à alguém ou encontrar minha amiga pra ouvir I See You quando ele foi lançado, mas os meus tempos de tirar um momento só pra ouvir música com alguém tinha passado. Todo mundo tá ocupado, e nunca foi tão fácil de ouvir música sozinho.
Eu percebi tudo isso que eu escrevi aí em cima há umas semanas, quando Fetch the Bolt Cutters da Fiona Apple foi lançado. É um disco tremendo, e eu não sei escrever sobre ele como ele merece, então tem esse texto lindo da Emily VanDerWerff que faz isso melhor. Mas Fetch the Bolt Cutters não aceitou essa distância natural que eu tinha com música desde então. Ele me forçou a parar o que eu tava fazendo e prestar atenção nele. Pela primeira vez em anos eu fiquei acordado de noite deitado na cama com os fones de ouvido sem fazer nada a não ser ouvir aquele disco.
Não que Fetch the Bolt Cutters seja especial (ele é, mas não vem ao caso), mas ele é um álbum íntimo que me pegou de jeito no início do isolamento social. Agora eu não estava ouvindo música sozinho porque é mais prático ouvir, mas sim porque a gente precisa ficar sozinho, e as coisas que a gente fazia antes com nossos amigos têm que esperar. Eu, ou minha mente, que tem muito mais poder sobre mim do que eu mesmo, decidiu que era hora de deixar essa distância com a música pra trás, porque ela estava perto. É um álbum sobre os pequenos detalhes do dia-a-dia que nos mantém sãos e os grandes sentimentos que a última década nos fez sentir — do êxtase ao desespero. Apple canta Fetch the bolt cutters, I’ve been in here too long na faixa título do álbum. É quase um grito de guerra.
Desde então outro álbum veio e fez o mesmo, e eu percebi que eu finalmente entrei em paz com esse novo jeito de escutar música, que de “novo” não tem nada. Essa semana, depois do trabalho, eu parei tudo, coloquei os fones e ouvi Set My Heart On Fire Immediately, o novo disco do Perfume Genius, em que o artista observa seu corpo envelhecer e entra em paz com isso. É outro álbum intimista sobre aquilo que está próximo, e vindo de um artista que antes mirava o céu pra se expressar, pra se “liberar do seu corpo”. Foi quando eu percebi que o álbum da Fiona Apple me acordou pra dar atenção pras músicas que eu estou ouvindo sozinho, e valorizar os momentos que eu passo com elas.
Eu não tenho nenhuma conclusão marcante sobre esse tópico. Eu não sei escrever sobre música, e não posso dar uma análise técnica sobre o que esses dois discos fazem ou deixam de fazer. Mas eu achei interessante como eu reaprendi a ouvir música, redescobri o prazer que eu tinha em ouvir discos. Demorou um bocado, é verdade, mas tá sendo muito bacana poder amar ouvir música boa de novo. Agora eu tenho muita música boa pra amar ouvir.