Na primeira metade de 2019 eu comentei com um amigo meu que eu queria muito assistir Godzilla II: Rei dos Monstros. Vários motivos me fizeram dar essa importante declaração: 1. o trailer do filme é sensacional; 2. nenhum filme do Godzilla é ruim; e 3. eu amo um fracasso de bilheteria, e Godzilla II parecia muito que ia ser bem o meu tipinho de fracasso.
Nesse último ponto, Godzilla II acabou me decepcionando. O filme não foi um fracasso absoluto de bilheteria (o que é bacana, deu dinheiro pro pessoal continuar fazendo filme do Godzilla, que nunca é ruim). Foi só um fracassinho, que fez 385 milhões de dólares para um orçamento de 200 milhões (um orçamento desses pede no mínimo 600 milhões pro filme se pagar, e mais pra ter lucro).
A matemática desses fracassos sempre me fascinou. Esses filmes custam centenas de milhões de dólares, e precisam arrecadar o triplo desse valor para recuperar o investimento. E eles são causados por uma dessas duas situações:
- São filmes que deveriam iniciar uma grande franquia para um estúdio, então ele é milimetricamente projetado por um comitê de produtores e entregue para um diretor. Depois, os produtores veem o filme e percebem que não está bom, e pedem pro diretor filmar mais coisa, deixando o filme ainda mais caro e, porque quer satisfazer um comitê inteiro de executivo que não tem ideia de como ir no restaurante sem gastar seis mil dólares em aperitivo, indecifrável pra audiência.
- São filmes que deveriam iniciar uma grande franquia para um estúdio, então os produtores encontram um diretor renomado por um “filme de arte” e entregam uma fortuna para esse diretor fazer o que ele quiser. O diretor faz, e o filme passa por “testes de exibição” que mostram que o gosto extremamente específico do diretor não conversa com uma audiência diversa. O diretor recebe mais dinheiro pra fazer o filme atrair mais gente, deixando ele mais caro mas nem um pouco mais atrativo pra audiência.
Esses filmes não são bons porque foram um fracasso, nem são um fracasso porque são bons. Alguns nem são tão bons assim, na verdade! Mas eles são fascinantes de assistir e ver como o modelo de negócio de Hollywood é uma aposta (para quase todos os estúdios com exceção da Disney, que encontrou um jeitinho bem específico de atrair o maior público possível: injetando nostalgia nos olhos das pessoas), e ela geralmente sai pela culatra. Isso aconteceu por toda a história da indústria, e alguns filmes se mostraram tão específicos sobre um diretor ou uma época que acabaram sendo apreciados com o passar do tempo, virando clássicos. Outros só provaram como Hollywood pode ter tanto medo de arriscar fazer algo diferente que gasta 300 milhões de dólares para copiar outro filme de sucesso. Tudo pode acontecer!
Aqui vão meus fracassos favoritos do cinema, dos mais bem sucedidos aos que mais perderam dinheiro:
A Grande Muralha (The Great Wall, 2016)
O prejuízo: 75 milhões de dólares
O que é: Matt Damon vai pra China ajudar a defender a Muralha de monstros gigantes.
Teorias do fracasso: A Grande Muralha é um caso incrível. A China é o segundo mercado mais importante para Hollywood em receita, depois dos Estados Unidos. Como a Universal decidiu apelar a esse público? Chamou Zhang Yimou, um dos mais renomados diretores chineses (e criador de imagens magníficas, dá uma conferida em Lanternas Vermelhas) e colocou Matt Damon no papel principal de um europeu que vai para a China e acaba defendendo a Grande Muralha de monstros. O filme tem o cuidado estético de um filme do Zhang Yimou com todo o dinheiro do mundo ao seu dispôr, mas é claramente um filme escrito por quinze pessoas que colocam tudo aquilo que eles acham que o público quer. A Grande Muralha é lindo, e é divertido. Mas atira pra tudo o que é lado com os olhos fechados. Um dos tiros foi direto no meu coração.
É ruim? Vou gostar? Quase. O filme tem seus problemas, mas nunca é chato. Se a história deixar de fazer sentido ali no meio, nem esquenta a cabeça, Zhang Yimou vai te deixar satisfeito com as batalhas belíssimas.
Blade Runner 2049 (2017)
O prejuízo: 82 milhões de dólares
O que é: Continuação de um clássico dos anos 1980 que também foi um fracasso de bilheteria. Na terceira é gol!
Teorias do fracasso: Caramba se todo blockbuster de Hollywood fosse simplesmente entregar 200 milhões de dólares para um ótimo diretor como o Denis Villeneuve (A Chegada, O Homem Duplicado) fazer a “sua interpretação sobre esse mundo”. Blade Runner 2049 é lindo, e um dos meus filmes favoritos dessa década. É também um filme de quase três horas de duração em que metade desse tempo é o Ryan Gosling confuso; a outra metade é o Harrison Ford e o Ryan Gosling confusos. É tão lindo, poético e pungente quanto o Blade Runner original. É também tão específico sobre seu diretor que é facílimo de não se alinhar com ele.
É ruim? Vou gostar? Eu não acho ruim. Inclusive acho excelente. Mas se o tom do Blade Runner original parece firula demais pra você, BR2049 é basicamente isso na segunda potência.
Speed Racer (2008)
O prejuízo: 93 milhões de dólares
O que é: As diretoras de Matrix recebem carta branca para fazer a adaptação de um anime da década de 1960.
Teorias do fracasso: As irmãs Wachowski ofereceram ao mundo sua visão singular sobre busca pela identidade e seu lugar no mundo com a trilogia Matrix, um dos maiores sucessos do cinema de ação (e três filmes excelentes). Recebendo a grana necessária, fizeram de Speed Racer um assalto aos olhos, com corridas cheias de cor que são muito mais uma homenagem à todo um tipo de animação do que qualquer outra coisa. Isso torna o filme ruim? JAMAIS. Isso faz ele ser confuso demais para ter o apelo de público de um filme que custa 120 milhões? JAMAIS.
É ruim? Vou gostar? Olha, o filme foi uma piada quando foi lançado, mas hoje em dia é considerado um dos filmes mais subestimados dos anos 2000.
Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada É Impossível (Tomorrowland, 2015)
O prejuízo: de 95 milhões à 159 milhões de dólares, dependendo pra quem você perguntar.
O que é: diretor de renomadas animações decide fazer um live-action que coloca os temas que são subtexto nos seus filmes anteriores como peça central num filme que custa milhões e fica confuso.
Teorias do fracasso: Tomorrowland é um dos dois filmes nessa lista dirigidos por um diretor da Pixar para a Disney querendo começar uma franquia original e falhando na performance. Dirigido por Brad Bird, o filme se foca na hipótese de como seria se existisse um “mundo melhor feito por e para pessoas melhores”. Na superfície, parece uma propaganda para as ideias de Ayn Rand. Por baixo dos panos, é uma dura crítica à meritocracia e ao individualismo. Também é um filme que deveria inspirar a revitalização de uma atração dos parques da Disney. E também foi lançado perto de Os Vingadores: A Era de Ultron e Mad Max: Estrada da Fúria. Tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo pra esse filme saber o que fazer.
É ruim? Vou gostar? É. Quer dizer, é de longe o pior filme do Brad Bird, que também é um dos melhores diretores americanos em atividade hoje em dia. Mas é um filme com ideias demais na cabeça e se perde frequentemente em tentar colocar elas na tela. Você vai ficar tão perdido quanto a personagem principal no meio do filme que simplesmente se perde e não sabe o que fazer. Bem realista.
A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011)
O prejuízo: 101 milhões de dólares
O que é: um dos maiores diretores do cinema faz uma carta de amor ao cinema mudo em um filme que explora uma nova tecnologia cinematográfica.
Teorias do fracasso: Vou te dizer que eu não tinha ideia que Hugo tinha perdido tanto dinheiro assim. Eu sabia que era o filme mais caro do Martin Scorsese (hoje em dia não é mais, O Irlandês vai falir a Netflix sozinho), mas também é um filme família indicado à uma penca de Oscars (inclusive Filme). Por que um fracasso tão retumbante assim? Olha, eu não sei, mas provavelmente um filme família de um diretor renomado que é também um filme sobre um artista em decadência na Paris dos anos 1900 não fosse tão atrativo assim. O 3D também era um macete que nunca deu muito certo, com exceção de Avatar, então vá saber.
É ruim? Vou gostar? Não e sim! Hugo é um filme muito divertido e provavelmente o mais redondinho dessa lista. É ótimo pra ver com a família na noite de Natal, vai por mim.
Uma Dobra no Tempo (A Whinkle In Time, 2018)
O prejuízo: 131 milhões
O que é: A grande Ava DuVernay dirige a adaptação de um livro considerado inadaptável com a Oprah gigante. 10/10.
Teorias do fracasso: pra começar, eu não tenho ideia de como esse filme existe. Eu nunca li o livro original, mas Uma Dobra no Tempo é uma loucura das boas: uma menina vai procurar o pai em uma viagem interdimensional acompanhada por três “seres astrais” sendo um deles uma Oprah Winfrey gigante. Como você pode imaginar, é uma jornada bem interna de autoconhecimento da garota e seus sentimentos em relação ao seu pai, e eu imagino que muito do livro aconteça internamente. O filme traduz esses sentimentos em cor e vibrações na imagem, em uma mistura que tenta agradar a todo o mundo — uma aventura com vários desafios lógicos para as crianças e um confronto emocional mais quieto. É uma ficção científica se vestindo como fantasia para atrair o público mais jovem, e os dois lados as vezes se atrapalham. (Nada me explica o filme ter perdido mais dinheiro do que o orçamento, porém. Matemática não faz mais sentido).
É bom? Vou gostar? Eu gosto, mas eu não tenho ideia se você vai gostar ou vai achar louco demais. É bem único, isso sim (e é bom ver a Disney apostando pesado em um filme diferente demais, pra variar um pouco).
Final Fantasy (Final Fantasy: The Spirits Within, 2001).
O prejuízo: 133 milhões de dólares
O que é: a primeira animação ultra-realista em um filme.
Teorias do fracasso: Final Fantasy foi um dos filmes mais caros já feitos quando foi lançado em 2001. É uma animação adulta que parecia mais um teste tecnológico — o filme é ultra-realista a um extremo desconfortável —, e suas conexões com a franquia de jogos é subjetiva na melhor das hipóteses. Ele também tem um roteiro indecifrável. Eu não entendo nada que acontece nele. Mas caramba, se não é incrível de ver até hoje.
É bom? Vou gostar? Final Fantasy é mais curioso do que bom, mas ele é muito curioso de se assistir, porque é bem escancarado que é uma vitrine para o poder artístico da equipe de desenvolvimento da Square em criar modelos humanos. O filme, porém, falha em capturar qualquer humanidade emocional — e a distância dos jogos que o inspiraram faz ele ser uma peça de museu bem mais do que um fan service.
John Carter: Entre Dois Mundos (John Carter, 2012)
O prejuízo: entre 138 milhões e 213 milhões de dólares.
O que é: estúdio de animação em computação gráfica decide fazer sua estreia em um filme live action e descobre onde o coração dos seus filmes fica.
Teorias do fracasso: em um determinado momento durante a produção de John Carter os produtores decidiram que o filme deveria mudar o seu título original, John Carter e a Princesa de Marte, porque a palavra “Marte” ia afastar o público. Motivos desconhecidos. Mas o filme é exatamente aquele caso em que um diretor (Andrew Stanton, de Procurando Nemo e WALL-E) tinha um projeto passional em criar uma franquia inspirada em um personagem da sua infância, e sucessos suficientes na carreira pra justificar que um estúdio gastasse buzilhões de dinheiro nesse sonho. O sonho não ficou bom da primeira vez, os produtores mandaram voltar e refazer umas partes, mas perceberam que o problema tava lá no início — o que deu certo em Procurando Nemo e WALL-E foi deixá-los ainda mais pessoais que já eram, encontrar na intimidade de suas histórias algo universal. John Carter viveu num limbo onde não é nem tão específico assim, nem tão amplo o suficiente pra agradar qualquer um como o Homem-Formiga fez. Mas caramba se a Pixar não entregou os efeitos mais fantásticos desse lado de Avatar.
É ruim? Vou gostar? Não vou mentir, John Carter é ruim. Mas é um fracasso com boas intenções. É um início de franquia que tenta ser um filme bom sem engatilhar continuações. É uma pena que o filme tenha outros quinze filmes dentro dele. Mas Marte é linda, e os marcianos são um charme. John Carter é claramente um filme que tinha tudo pra dar super certo e que descarrilhou de uma hora pra outra: tem o mascote focinho, o herói meio burro, a princesa muito mais inteligente e uma comunidade de personagens inspirados. Mas Andrew Stanton ficou preocupado que isso não fosse suficiente, e colocou toda uma penca de tramas paralelas e mitologias barrocas no meio. Se John Carter tivesse dado certo, porém, a Disney poderia estar interessada em um tipo de blockbuster totalmente diferente hoje em dia. E seria fascinante ver ela apostar nesse tipo de vez em quando.