O passado e o presente se confundem em The Suburbs

Eu escuto The Suburbs todo o verão desde seu lançamento, em 2010. Quando eu descobri o Arcade Fire, um pouco antes do lançamento do álbum, eu escutava Funeral e Neon Bible direto, no repeat, quase todos os dias. Foi a trilha-sonora do último ano do ensino fundamental e do meu primeiro ano do ensino médio. The Suburbs mudou tudo. Ele entendia a minha vontade de sair de casa e nunca mais voltar. Ele me acompanhou no meu primeiro emprego arrumando computadores de uma lan-house (!!). Ele soava como os meus dias de verão — gigantes, ensolarados, onde o dia durava uma eternidade de tédio, do bom e do ruim.

É interessante continuar ouvindo The Suburbs depois de todos esses anos. É um álbum feito tanto das memórias de uma juventude, quanto dos sonhos e frustrações que elas criaram. É um álbum sobre querer sair de casa, querer viver uma vida sem as amarras de nossos pais e das comunidades que crescemos. É um álbum que lembra de quando se descobre quem você é, daqueles dias com seus amigos onde você dá o primeiro beijo, descobre o primeiro amor, aprende a dirigir e a beber.

The Suburbs é um álbum conceitual com dois arcos narrativos bem definidos. O primeiro é a jornada de um jovem no seu último verão no subúrbio, louco para ir embora para a cidade grande e conseguindo; o segundo é o desses jovens, agora adultos, reconsiderando suas lembranças daquele lugar. Em “Ready to Start” e “Modern Man” aquele subúrbio descrito na faixa-título são insuportáveis — os empregos depois da escola são tediosos, os dias são longos, há uma guerra que os impedem de fazer qualquer coisa. Já em “Wasted Hours” e “We Used To Wait”, esse mesmo subúrbio foi o único lugar que os permitiram crescer livremente, descobrir quem eles eram através do ócio. Ele perderia esse tempo todo de novo, o protagonista diz.

A genialidade dessa estrutura de The Suburbs é que esses dois movimentos — o de viver e o de lembrar — acontecem ao mesmo tempo no álbum. Em certos momentos, eles se confrontam (“City With No Children”); em outros, a memória vence (“Half Light I”); enquanto em outros, não existe mais a memória, apenas todas aquelas lembranças ao redor dela (“Suburban War”). Já em outros, como “The Suburbs” e “Sprawl I (Flatland)”, as duas vivem em uma delicada harmonia.

The Suburbs modula esses dois movimentos tão bem ao sempre se reconsiderar. A faixa-título apresenta não só toda a temática do álbum, como oferece acordes que serão reutilizados e ressignificados nas faixas seguintes. É como se The Suburbs criasse memórias próprias e as lembrasse nos breves minutos entre uma música e outra. E talvez ele o faça: o Raul me escreveu no Twitter sobre isso, quando “City With No Children” recupera uma sonoridade de “Modern Man” ele o ressignifica não só por estar em uma música e uma letra diferente, mas também porque o álbum estabeleceu uma conexão entre essas músicas, que agora se somam e se confrontam em significados.

If it’s alright, then how come you can’t sleep at night?

O o Arcade Fire apareceu no início do século com o clássico instantâneo que foi Funeral e apresentando uma banda com uma capacidade singular de expressar grandes declarações nos menores sentimentos. Isso cria uma compreensão com o seu ouvinte que é quase íntima, uma percepção de que “eles entendem”, seja lá o que for. Em Funeral, onde a morte permeia todo o álbum, a banda modulava o luto e a finitude da vida com descrições singulares de uma carona de carro, de um abraço ou até mesmo de um choro. Com The Suburbs essa modulação vai além: a banda não se segura nos seus grandes temas — o medo da decepção e do fracasso que a vida causa ao nos permitir sonhar está todinha descrita junto com a última hora de luz do dia ao lado de seu primeiro amor da juventude em “Half Light I”; é uma música linda de se ouvir, não porque a decepção seja linda, mas porque sonhar é bom demais mesmo assim.

The Suburbs é formado por essas memórias desses momentos íntimos e com a distância que o tempo e a decepção do mundo nos trazem. Ouvir o álbum todos esses anos depois do seu lançamento me faz perceber como, desde a faixa-título, The Suburbs é sobre a frustração de que a promessa de vida que fazemos quando jovens, seja de quem queremos ser ou de como queremos mudar o mundo. Logo no início em “The Suburbs”, o protagonista vê a promessa do progresso, quando os muros e as casas que seus pais construíram nos anos 70 finalmente ruíram; e a decepção de não conseguir criar algo novo com essas ruínas.

É um balanço difícil esse, de lembrar de como era bom no passado e como as coisas não parecem certas no presente ao mesmo tempo que tenta não propagar ideais conservadores. O álbum alcança esse feito ao se questionar a todo o momento. Aquela vontade de ir embora em “The Suburbs” alcança um ponto de confronto com “City With No Children”, até se tornar em frustração e caos de “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”: o subúrbio que tinha tantas horas vazias foi substituído pelas montanhas e montanhas de prédios e propagandas de uma cidade infinita, de onde é impossível de fugir. The Suburbs soa desolador no final, mas esse final já é apontado através de sons e de versos já lá no início. Não é o presente que está certo, nada nunca esteve muito certo. Se “We Used To Wait” parece em um primeiro instante celebrar a paciência, a forma como as coisas eram manuais em um primeiro momento, dez anos depois ele parece mais um chamado. O “progresso”, a velocidade que aquelas crianças tanto queriam e lutaram para ter finalmente chegou.


Quando eu lembro da minha adolescência, eu lembro que era o final dos anos Lula, e a minha escola ainda tinha dinheiro. Estudar fora do país era um sonho possível, quase gerenciável, e tudo parecia ao nosso alcance. Meu, e dos meus amigos, que eu passava tardes sem fim e noites que duravam pouco demais. A gente saía da aula para tomar banho de piscina em um dos meus amigos, pegava a cerveja do pai do outro, ia pro parquinho desperdiçar nosso tempo. Algumas memórias são muito vívidas em minha mente, mas quão mais vívidas elas são, mais claro fica que eu não lembro de tudo. Eu não lembro dos meus pais. Quer dizer, eu sei que eles estavam por lá, mas quando eu paro para pensar nos meus quinze, dezesseis anos, eu não lembro deles, não lembro se a gente brigava ou se dava bem. Eu sei que foi quando a gente começou a se afastar definitivamente. Quanto mais eu sabia quem eu era e quem eu queria ser, menos meus pais sabiam quem era o filho deles. Olhando hoje, eu vejo sinais que apontavam para o ódio e a intolerância que a gente vive hoje. Eu estava ocupado demais fazendo nada naquela época, mas se eu não estivesse eu estaria aqui hoje, pensando justamente sobre como chegamos a este ponto, sobre o que pode ser feito?

Escutar The Suburbs hoje, quase dez anos depois, me faz viver um conflito semelhante ao do seu personagem. Lutando com minhas memórias e tentar entender como chegamos nesse futuro, que está cada vez mais distante daquele que sonhamos — nas pequenas coisas e nas maiores das coisas. O álbum termina com uma ode às memórias esquecidas, aquelas que talvez tenham as respostas pra tudo. “The Suburbs (continued)” soa como a faixa título, mas na verdade ela usa os versos de “Wasted Hours”.

Em “Wasted Hours”, porém, a gente celebra as horas vazias, o ócio da juventude, e como ele é bom. Como ele tem uma sensação boa. Talvez seja a coisa mais importante daqueles anos, o exemplo perfeito que é possível viver como o sonho daqueles jovens, de que uma vida sem o estresse constante dos nossos pais, e do ódio e do rancor que se criam a partir dele, seja possível. Quem diria, a gente não viu ele lá, enquanto vivíamos. O futuro parece que escapa dos nossos dedos.

Você pode ouvir The Suburbs no Spotify.