Acordei Vomitado é, antes de qualquer coisa, sincero demais

Terça-feira tive a oportunidade de encontrar um velho amigo e compartilhar com ele, como fazemos há anos, nossas últimas descobertas culturais. Ele me apresentou o livro que estava lendo, uma série da TV francesa que parece gostar bastante (e que fiquei interessado em conferir); enquanto eu apresentei a ele Esperando Godot (de um jeito melhor do que o jeito que eu apresentei a vocês), alguns filmes e uma música nova.

Eu não me lembro de ter me divertindo tanto em apresentar uma música.

Acordei Vomitado é a nova música d’Os Croquetes, uma banda que eu não tenho ideia da história nem de trabalhos anteriores; mas ela chegou ao meu WhatsApp (realizando a profecia do Wilco de que as pessoas não se reuniriam mais para apresentar músicas uns aos outros) e, depois disso, chegou ao YouTube e é disso que vou falar hoje.

No início da internet gaúcha havia uma fanzine formada por estudantes universitários em Porto Alegre, que publicavam texto e divulgavam os textos uns dos outros. O Cardosonline era produto de jovens que vieram a ser romancistas e jornalistas conhecidos depois; mas na época da fanzine eles tavam por ir na Garagem Hermética, beber Polar sempre que podiam; e, claro, passar mal por alguma péssima escolha na orla da Redenção.

Porto Alegre, mesmo com seus problemas, sempre foi muito eficaz em criar mitologia. A importância que é dada para certos lugares e regiões da cidade ajudam nesse processo. Acordei Vomitado, se você não estiver ciente dos lugares que ele descreve, pode parecer só um bando de nomes. Para quem vive ou habita os espaços, porém, aí está uma música que consegue refletir, com exatidão, as noites ferrenhas e depressivas, porém sempre bem humoradas em retrospecto, que o Cardosonline descrevia lá no final dos anos 90, e que Os Croquetes conseguem ainda refletir, porque o modo de vida ainda obedece essa mitologia.

Eu não entendo muito de como explicar porque uma música é boa, então posso comparar o som d’Os Croquetes com um Spiritualized menos eletrônico, se é que dá pra entender. A beleza do som de Acordei Vomitado está, porém, no quão precisa é a letra. O trajeto, especificado com clareza e sinceridade pela música, é conhecida em Porto Alegre, e quem conhece ela provavelmente já passou pelo Bambus como os integrantes da banda descrevem. Não tente negar, não é vergonha pra ninguém. Acordar vomitado é quase que um rito de passagem.

Acordei Vomitado não é, porém, bairrista, como muito do rock gaúcho me incomoda por ser. Claro, você precisa frequentar a Cidade Baixa, subir para o Bom Fim e acabar a noite por ali para entender a psicogeografia da música. Acordei Vomitado não gasta tempo explicando as poéticas do espaço, mas a sua precisão com os adjetivos coloca qualquer um naquele lugar. Quando meu amigo terminou de ouvir a música, depois de uma audição bem divertida (Os Croquetes são, acima de tudo, divertidíssimos), o seu comentário foi o único possível depois disso. Cito tal qual ouvi: “Esses cara deviam tá com os olhos que eram umas bolita”. Aí mora a beleza de Acordei Vomitado. Você se coloca na situação, não só da música como na de seus compositores. É como conseguir sentir o furor criativo dos primeiros tempos do Cardosonline, é como saber a empolgaçào depressiva na VU de Curitiba. Quando um bom narrador te conta uma história, por mais pessoal ou inexplicável que seja, ela se torna em muito sua.

E, eu não sei vocês, mas eu acordo vomitado mais vezes do que eu gostaria. Finalmente uma música dá justiça a isso.