Uma carta de amor a Abbas Kiarostami

Filmes nos conectam. Nos conectam com diferentes realidades, com diferentes ideias, com diferentes pessoas. Seja na própria imagem, seja nas conexões que criamos ao ir no cinema com alguém, ao discutir um filme com alguém, mas filmes nos aproximam de relações, não de coisas.

O ponto central de Cópia Fiel, o momento em que tudo muda, é um momento filmado de um modo diferente de tudo o que o filme havia mostrado até ali. Ela (interpretada por Juliette Binoche), está de frente para a câmera, sentada em uma mesa de um café toscano. Ela olha para nós, embora fale com o personagem que a acompanha. Ela questiona a validade daquele casamento. Ele foi um bom pai? Um bom marido? Ela fala com ele, mas ela olha para nós. Ela fala para nós.

E nem nós, e nem ele, o personagem, fomos bons maridos. Não fomos companheiros, não fomos bons pais.

Esse é um momento central em Cópia Fiel porque aí começa um jogo com quatro jogadores: dois estão na tela, Ela e James Miller; dois não estão. Um é Kiarostami, e o outro somos nós. Kiarostami nos entrega uma lacuna, os dois personagens jogam com ela. Resta, para nós, completá-la. Esse é um elemento crucial durante todo o filme. Nós acompanhamos uma tardinha na vida de uma dona de uma pequena galeria de arte, que recebe a visita de um estudioso inglês que divulga seu novo livro, que questiona o valor da obra original e da sua cópia.

A gente pode divagar muito sobre os temas que Cópia Fiel cobre a partir daí, na longa conversa que os personagens terão pelas lindas ruas de Lucignano. Mas Cópia Fiel não é um quebra-cabeça, é um enigma. E, como os bons enigmas, nós não temos as peças para decifrá-lo, nós só temos aquilo que carregamos conosco. Precisamos de nossa intuição, não para decifrá-lo, mas para explorá-lo. Quando chegamos no final, e estamos tão exaustos quanto Ela e James, não é porque passamos os últimos cem minutos buscando pistas do que está acontecendo, mas porque aquilo que nós descobrimos sobre eles, e sobre nós, é extasiante.

Dava pra recomendar outros, talvez melhores, mais premiados filmes de Abbas Kiarostami. O diretor mais importante da história do cinema iraniano possui obras-primas como Gosto de Cereja, uma ode à vida em forma de elegia como poucas vezes o cinema nos trouxe; Dez, um dos retratos mais únicos das relações sociais no Irã; a inebriante trilogia composta por Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, O Vento nos Levará e Através das Oliveiras; ou a jornada pelo filme, e pelo Irã, com Close-up. Kiarostami trabalhava nesse seu cinema de relações com as ligações que conectam seus personagens, seus temas ou seus lugares com o espectador. Todos eles são gratificantes. Poucos deles, porém, são tão claros quanto Cópia Fiel em seu objetivo.

Juliette Binoche em Cópia Fiel A Mona Lisa de Kiarostami.

O fato é que poucos diretores no cinema buscaram dar ao espectador uma voz. Claro, o cinema não aceita respostas, mas Abbas Kiarostami era um diretor único que permitia a seus filmes serem completados por aqueles que os assistiam. Quando andamos pelas ruas com os dois personagens de Cópia Fiel, nós podemos questionar, junto a eles, os enigmas que envolvem não só a arte, mas também o amor. Os filmes de Kiarostami foram sempre retratos tão lindos da vida por exibir que, como eles, a vida é algo que desvendamos ser cada vez mais rica, estranha, e até mesmo confusa. A vida é uma eterna reflexão de nós mesmos com aquilo que nos liga ao mundo, e foi uma honra poder ter a oportunidade de ser ligado a um mundo incrível, enigmático, mas sempre fascinante que era aquele que Kiarostami nos proporcionava.

Há uma famosa citação de Jean-Luc Godard de que “o cinema começa em Griffith e termina em Abbas Kiarostami”. Eu sou um pouco mais otimista, mas é possível entender o que o francês indica. São poucos os diretores que são mestres, são poucos os diretores que são artistas; são ainda mais raros aqueles que são os dois. E esses, os mais raros, que são os poetas. E Kiarostami era talvez o maior do nosso tempo.

E o poeta nos deixou. O cinema não acaba aqui, mas algo realmente não vai mais ser visto. É triste imaginar que eu não serei questionado, com a delicadeza e a sofisticação, por Kiarostami em mais um filme. Mas ele mesmo já nos mostrou o que fazer. Quando James sai de quadro pela última vez em Cópia Fiel, Kiarostami finalmente nos deixa sozinhos. Finalmente, após mais de uma hora e meia acompanhados, nós estabelecemos uma ligação com nós mesmos. E é isso que esse poeta nos deixou: a possibilidade de nos experimentar, de nos conhecer, de nos impressionarmos.

Através das lacunas da sua poesia, Kiarostami nos ensinou a saborear o maior enigma que há: o de nós mesmos.

E por isso, meu muito obrigado, Kiarostami. Foi uma honra.