Não tem como descrever o “Clube da Esquina”

Primeiro, vamos considerar o vento.

Você consegue senti-lo? O jeito como o vento toca sua pele, como ele marca o tempo em sua alma? Você sentiu? Ele te fez lembrar de quando esse mesmo vento te tocou, todos aqueles anos atrás? O milagre que é — o tempo se dobrando sobre você, o vento viajou o mundo todo te procurando.

Foi isso que “Clube da Esquina No. 2” me fez sentir numa tarde dessas, enquanto eu caminhava para ver alguns amigos no fim do dia. Conforme as notas da percussão passavam, assim como o vento, o eco do canto ressonante de Milton Nascimento me fez perceber — aquele vento já tinha passado por mim antes. Quem eu era então? Quem eu sou agora?

É a única forma que consigo descrever ouvir o Clube da Esquina, talvez a peça musical mais bonita que já ouvi. Eu ouvi tantas vezes, na verdade, que acho que sempre considerei natural que uma obra musical tão profunda e monumental pudesse existir. Lembro dos meus pais ouvindo quando eu era criança. Lembro de ouvir no rádio em algumas tardes de domingo enquanto comíamos o churrasco que meu pai fazia pra gente. Lembro de ouvir nas ruas, nas vozes de outras pessoas. Seu vizinho pode cantar “Cravo e Canela” enquanto faz compras. Você pode cantar “Paisagem na Janela” no ônibus, indo visitar seus pais depois que a COVID os separou por alguns anos. Sua mãe talvez já tenha cantarolado “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” para você antes de dormir.

O Clube da Esquina está em todo lugar, assim como o vento. Pode ser lento, pode ser intenso, mas é exatamente o que precisa ser no momento exato. É lindamente revolucionário (“Nada Será Como Antes”), profundamente triste (“Os Povos”) e misteriosamente poético (“Estrelas”). É também tudo isso ao mesmo tempo: “O Trem Azul” é tão melancólico quanto é divertido de cantar junto, e “Cais” pode ser hipnótico no jeito como te transporta para a praia, para suas areias e, sim… para seu vento.

Eu poderia continuar descrevendo (bem mal) cada música do Clube da Esquina, mas é impossível, e não alcançaria o que o disco consegue fazer ao todo. Milton Nascimento e Lô Borges (e Beto Guedes, Toninho Horta, Márcio Borges e Wagner Tiso, o “clube”) parecem tão enraizados na mesma terra que nós, e tão misteriosamente divinos. Eles conseguem te fazer sentir o mundo girando, conseguem dobrar o próprio tempo. Traduzem a convulsão e a violência de sua época, enquanto ao mesmo tempo descrevem a languidez do sol num dia quente de verão, ou a noite fria de um coração partido. Está sempre mudando, se transformando, indo a algum lugar, indo de harmonias a propulsões de som, sem nunca deixar para trás os pequenos detalhes que podem tornar as vidas cotidianas, nossas vidas cotidianas, bonitas, “repletas”.

É curioso como um disco tão enraizado naquela esquina em Belo Horizonte, nas montanhas de Minas Gerais, pode também encapsular tanto. Talvez seja porque o Clube da Esquina não é apenas um lugar, é também a ideia de uma comunidade. Quando Milton e Lô cantam, suas vozes — uma profunda e ressonante; outra jovem e cristalina — criam uma vasta tela onde memórias e sons e lugares coexistem. O sol na sua cabeça em “O Trem Azul”, o sal do mar em “Cais”… é uma esquina onde todo nosso país, por mais bagunçado e odioso que seja, é também bonito, triste, sagrado, divertido. Tudo ao mesmo tempo. É o único lugar onde o Clube da Esquina poderia existir: na esquina onde suas canções podem também ser uma oração, um grito de protesto e o próprio ar que respiramos.

É como se o próprio Clube da Esquina também estivesse se movendo com suas canções. Mesmo que enraizado na ditadura em que foi feito, com urgência, ele voa através do tempo – até você, naquela viagem de ônibus; até seu vizinho indo à feira, até eu mesmo naquele passeio ao entardecer. Assim como o vento.

“Corro a te encontrar”, canta o Milton no final da esperançosa “Ao Que Vai Nascer”. Eu vou sempre gostar quando ele me alcançar de novo.


Esse é o meu último post no Pão com Mortadela. É também o último post desse blog. Pelos últimos dez anos (!), esse foi o lar das coisas que eu mais quis escrever. Das descobertas de madrugada, às cartas de amor, às realizações da minha própria burrice. É onde está minha elegia para a Vivi. É onde escrevi sobre a dor que senti. É onde eu e meus amigos brincamos juntos. Sou muito grato por esse pequeno pedaço da internet ter existido por todo esse tempo. O site vai continuar no ar — eu gosto de manter esse arquivo para mim, e para as outras pessoas que escreveram aqui, poderem voltar e ler.

Mas é hora de seguir em frente. Esse site viu duas gerações de colaboradores irem e virem, e embora me custe praticamente nada manter as luzes acesas, um pequeno sentimento de culpa por não vir aqui e escrever algo ficava na minha mente. Eu vou continuar escrevendo (eu preciso!) em outro lugar. Não porque não goste daqui, mas o Pão sempre foi um lugar para escrita colaborativa, para escrever com meus amigos. E conforme eles seguiram em frente, quero lembrar desse lugar como um pequeno canto na internet onde amigos costumavam se encontrar e escrever uns para os outros. Acho que é por isso que escolhi o Clube da Esquina para fechar esse ciclo.

Meus agradecimentos a todos meus amigos que escreveram aqui nos últimos dez anos. Aos amigos que fundaram esse blog comigo, e foram sua primeira geração de autores: Gui, Thai, João; e a segunda geração, Erê, Novello, Tainara, Manu e especialmente Raul, que não só escreveu alguns dos textos mais bonitos desse blog, mas acreditou tanto em sua ideia que fez o sanduíche que está por todo o site, e a arte dos rankings de fim de ano do ano passado, uma tradição que manterei em meu próprio cantinho da internet.

E obrigado por ler. Vocês, em geral, e você, especialmente (oi, Lu!), que leu e me retornou sobre algo. Essa é a única razão pela qual eu sempre quis escrever alguma coisa, qualquer coisa — para fazer alguém pensar, e responder, e levar a ideia adiante. Obrigado por vir junto. Espero te ver de novo.