Tem um momento bem breve no primeiro capítulo de Estação Onze em que dois personagens — os protagonistas Jeevan e Kirsten — estão em uma estação de trem. Quando o trem chega, e eles partem, a estação fica vazia. A imagem “pisca”, e vemos como a estação estará em vinte anos: tomada pela natureza, e seus verdes e marrons. É um contraste breve de imagem, mas tão poderoso que define a série inteira: o futuro pós-apocalíptico de Estação Onze é colorido e quente e acolhedor. O presente é cinza e escuro e hostil. Quando a imagem voltou para a estação no presente, eu comecei a chorar.
A première de Estação Onze, a minissérie da HBO Max baseada no livro de Emily St. John Mandel, me fez chorar em vários momentos pequenos como esse. Tem outro, um pouco depois, em que a irmã de Jeevan liga para ele do hospital. Ela explica que o surto de gripe não é só um surto, e que ele precisa se isolar. Jeevan começa a ter um ataque de pânico no trem, e sua irmã percebe. Ela reconta, pelo telefone, uma memória da infância deles, e se despede. Ao sair do telefone, ela se emociona por um meio segundo, mas segue em frente, ajudando os pacientes no hospital em que ela provavelmente vai morrer. A câmera se afasta, observando a escala — carros se amontoam, uma multidão corre.
Estação Onze se passa nesse presente, nesse futuro e, as vezes, em um passado. A série conta a história de Kirsten, a garota que Jeevan tenta levar para casa no primeiro capítulo, quando o surto da Gripe da Geórgia avassala a humanidade. No episódio seguinte, descobrimos que essa pandemia matou 9 de cada 10 pessoas, e a humanidade mudou. Pessoas viraram coletoras dos restos da civilização que temos hoje, vivendo em vilarejos ao redor de rios e de lagos. Para se comunicar com as pessoas de outros lugares, você precisa viajar até elas. Depois de encolhermos tanto o mundo com a tecnologia e a globalização, a natureza retomou seu lugar — estradas são consumidas por mato, prédios sucumbem ao vento e ao verde.
Mas ninguém está sozinho nesse futuro. Kirsten, que era uma atriz mirim na infância, encontrou uma trupe de atores shakespeareanos que circunda os vilarejos dos Grandes Lagos no norte dos EUA, levando um pouco de teatro para as comunidades dali. “Nós viajamos por um motivo”, a maestrina explica para ela. “Nós tentamos fazer o mundo ter um sentido por um segundo. Eles nos culpam se ficarmos. Mas eles nos amam como se nós os salvamos se voltarmos”.
Com o passar dos episódios, o escopo de Estação Onze finalmente se revela: a série acompanha não só Kirsten, mas um grupo imenso de personagens em todas as suas linhas do tempo. Episódios ímpares se passam no passado, nos momentos derradeiros antes da pandemia. Episódios pares se passam no futuro, onde Kirsten e sua trupe viajam de vilarejo em vilarejo se deparando com um grupo de fanáticos liderados por um chamado “Profeta” (sempre tem alguém brincando de profeta, não é mesmo?).
Essa estrutura ajuda que você não se perca tanto nas jornadas que Estação Onze te leva, mas isso é inevitável e, eu acho, até mesmo esperado. A série trabalha melhor quando você para de ficar tentando montar a charada de sua estrutura na cabeça, porque não há uma. Estação Onze oferece a resposta do que aconteceu logo em seus primeiros momentos, e deixa seus personagens e seus espectadores matutando com o mistério dessa resposta. É libertador.
No centro de todos esses personagens e linhas do tempo está uma história em quadrinhos, também chamada “Estação Onze”, e ela serve como o coração da série. Estação Onze mapeia todas as formas que essa história em quadrinho em específico afetou a vida de seus personagens em diferentes momentos da existência. Até mesmo personagens que nunca se encontram, ou linhas do tempo que não se convergem, ficam mais próximas por causa dela.
É brilhante, e uma forma de tornar o espaço e o tempo entre todas essas histórias maior, enquanto oferece uma forma para o espectador trafegar em tudo isso com um norte. Eu já argumentei aqui uma vez que a arte é o mais próximo que teremos de uma máquina do tempo, e Estação Onze parece um exemplo perfeito do que eu imagino.
Não só é uma série que trabalha com a influência de uma peça artística no tempo em que foi criada e como essa influência muda com o tempo e com a distância, mas ela é também uma série que marca o tempo. Estação Onze retrata a vida de um grupo de pessoas que sobreviveu a uma pandemia avassaladora, e como eles encontraram um caminho para a reconstrução ao ficarem juntos e criarem comunidades.
Eu lembro direitinho de quando eu recebi a ligação da minha irmã em março de 2020. Eu não estava em casa, e ela me ligou dizendo que ia vir me buscar. Nós tentamos passar no Zaffari, mas a fila para entrar no mercado era imensa. A gente parou um paradouro na beira da estrada e pegamos salgadinhos e garrafas d´água e o que mais tinha para comer. Minha irmã, meu cunhado e eu estávamos assustados e cansados, mas ali dentro do carro na beira da rodovia, compartilhando a água e a comida nos manteve um pouco mais seguros e com um pouco mais de esperança. O mundo, ali, parecia grande e amedrontador.
A gente esquece, mas o mundo é grande — é imenso — e pode ser amedrontador. Mas a gente encontra formas de ver sua beleza também. Eu gostaria de poder ter percebido isso sem que uma pandemia destruísse a vida de tantas pessoas ao redor do mundo. Os personagens de Estação Onze também. Durante seus episódios, personagens se encontram e se separam, desejando que as coisas pudessem ter sido diferentes, ou pudessem durar mais. O planeta não gira nesse sentido, o mundo não enxerga essas nossas vontades. Mas a gente fica perto de quem enxerga, e de quem quer compartilhar elas com a gente.
Perto do final da série, Jeevan entra em uma casa que parecia abandonada. Ele encontra o corpo já em decomposição de uma família. Mãe e filha deitadas no quarto. O pai, mais preservado, na sala. Tem um sintetizador em seu lado. Jeevan o liga e escuta uma música feita modulando a voz de uma menina. Ele olha para o corpo do pai e entende. É um momento essencialmente triste — de tudo aquilo que acabou e se perdeu com a doença. Mas Estação Onze vê um pouquinho de beleza nessa dor. Ali, naquela música que sobreviveu, existe um vestígio da felicidade de uma criança, e do carinho de seus pais. É o que resta aos que sobreviveram naquele mundo — não esquecer que sentimentos assim existiram, e não os deixar desaparecer.