Nos últimos meses eu ando aflito tentando escrever sobre como eu amo The Americans, mas sem conseguir. Eu escrevi brevemente sobre a série no longínquo ano de 2016, enquanto eu acompanhava ela semanalmente. Mas aquilo foi só um parágrafo.
A verdade é que muito já foi escrito sobre como The Americans é uma das últimas grandes séries da “Época do Ouro da TV”, algo que começou no início dos anos 2000 com a chegada de séries como Família Soprano e A Sete Palmos e pra mim durou até 2017, com o final de Twin Peaks e The Leftovers, e que transformaram séries de TV no grande meio narrativo da nossa geração1.
Ali no finalzinho, em 2012, The Americans começou quase que sem muito bafafá, e continuou silenciosamente, como um favorito cult, até dominar as conversas de melhor série no ar em 2015, com sua quarta temporada, e fechar em uma última temporada magnífica em 2017. A série serve bem o seu formato porque é, de um lado, um thriller de espionagem, em que um casal de espiões soviéticos assume identidade como agentes de viagem nos EUA para realizar missões em solo americano; de outro, é um drama familiar, em que um casal precisa lidar com filhos crescendo e se tornando adultos, e descobrindo que seus pais não são aquelas figuras perfeitas que as crianças imaginam que seus pais devem ser.
Depois de quatro temporadas impecáveis, com um crescendo de 52 episódios que a crítica de TV Emily WanDerWerff chegou a chamar de “uma das melhores da história da TV”, The Americans ganhou uma mancha em sua reputação. Depois de quatro anos em que a família de espiões executa missões e tenta ser feliz, a série tentou algo diferente na quinta temporada e dividiu o público. Alguns acharam um tropeço, em uma série que não conseguia fazer episódios ruins; outros acharam uma temporada “alternativa”, enquanto a última não chegava para desenlaçar os embaraços das temporadas anteriores.
Por muito tempo eu também tendia entre essas duas opiniões, e como eu nunca tinha revisitado The Americans desde então eu nunca pensei que ia mudar de ideia. Mas agora The Americans está na Amazon Prime, e eu cheguei na quinta temporada há umas semanas (se você assina A Baguete recebe alguns parágrafos sobre ela aos sábados), e estou aqui hoje para defender que a quinta temporada de The Americans é igualmente impecável, e o resultado natural das suas quatro temporadas anteriores — e o maior motivo para a última temporada ser tão boa.
Antes de tudo, um pouquinho de contexto: The Americans se passa nos EUA no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Nossos protagonistas, Elizabeth e Phillip Jennings, já estão sob seus disfarces de agentes de viagens há mais de uma década. Seus filhos, Paige e Henry, são adolescentes e não têm ideia da vida dupla de seus pais, que viajam bastante “a trabalho” e são distantes do resto da família. Os Jennings são muito amigos do vizinho da frente, Stan Beeman — um agente do FBI que chegou “de surpresa” na vizinhança.
The Americans é construída de forma tão magistral que esse contexto serve tanto para apresentar a série para seus amigos quanto para indicar a que pé você está. A sinopse se aplica à todas as temporadas, já que sua fórmula se mantém, mas ao invés de aumentar a narrativa horizontalmente – adicionando mais personagens e espalhando-os pelo mundo —, The Americans a faz verticalmente. As relações entre personagens vão ficando mais complicadas, e suas intenções também. Um exemplo: a amizade entre os Jennings e o vizinho Beeman parece puramente funcional no início: Phillip e Elizabeth precisam garantir a segurança de seus filhos e ter um vizinho do FBI pode render boas fontes caso eles sejam investigados. Mas os Jennings acabam se tornando verdadeiros amigos dos Beeman, e a moralidade das ações entre as duas famílias fica cada vez mais complicada. Os Jennings não podem revelar quem eles realmente são para o vizinho, apenas a parte que eles realmente gostam dele.
The Americans faz isso através de suas temporadas usando basicamente a mesma fórmula: Elizabeth e Phillip recebem uma missão do Centro, o órgão soviético em que eles trabalham. Durante a temporada, eles trabalham nessa investigação pouco a pouco: primeiro desenvolvendo fontes, depois analisando planos, e finalmente, nos três episódios finais, executando o plano. Ao mesmo tempo, essa missão cria fissuras na família: seja a distância com os filhos, o isolamento, etc. The Americans tem diálogos muitíssimo bem escritos entre seus personagens que por vezes é difícil de saber se Elizabeth e Phillip estão conversando sobre a missão ou sobre sua família; se eles estão trabalhando nas suas fontes ou realmente desenvolvendo laços emocionais com elas. Em um momento chave na terceira temporada, Phillip e Elizabeth sentam com sua filha, Paige, mas fica difícil de saber se eles fazem isso como pais preocupados ou como espiões. Isso porque The Americans é cuidadosa o suficiente em sugerir que não existem duas facetas na vida dupla dessa família. Esses dois lados são conectados de forma tão intrínseca que chega a ser trágico.
As temporadas de The Americans possuem uma estrutura narrativa padrão de três atos: o estabelecimento da ação (o início da missão), o clímax (a missão em si), e o desenlace (o resultado da missão, e o estado em que a família Jennings se encontra ao final dela). Mas a série em si usa uma estrutura mais complexa, em cinco atos2.
Uma das minhas partes favoritas em The Americans são os disfarces: olha essa peruca!
Em The Americans, o clímax chegou no décimo episódio da terceira temporada, em que Paige têm uma conversa com os pais, e eles revelam sua verdadeira identidade para ela. Porém, The Americans não “desceu a ação” logo em seguida, mas a manteve em um patamar igualmente alto até o final da quarta temporada. Pior do que sentir as consequências de sua ação, a série faz com que a família Jennings não veja elas acontecerem.
É aí que entra a quinta temporada, de “bônus”. O clímax passou, e as consequências já foram estabelecidas, mas o final ainda não chegou. Muitas histórias em cinco atos passam rápido pelo quarto — ele geralmente é a contagem de corpos, ou quando a história faz uma “limpeza” nos personagens secundários para voltar a atenção apenas nos protagonistas. Mas The Americans deixa seus personagens nele por parte da quarta e por toda a quinta temporada. Os Jennings se transformam em fantasmas zanzando por um país regido pelo lunático Ronald Reagan, realizando missões para um país que mais e mais parece distante dos ideais pelos quais eles lutaram quando estavam lá. Sua filha sabe a identidade dos pais, mas isso não os aproximou como imaginavam. Não só o futuro é incerto, mas o presente também. A missão de Phillip e Elizabeth parece ir a lugar nenhum, e o Centro decide pedir algo ainda mais impossível — recrutar a própria filha.
Esses dias eu tava pensando como eu gosto de séries em que o episódio final não é a conclusão da trama, mas dos personagens. Eu gosto quando a trama se resolve nos capítulos finais — o mistério é revelado, o tesouro é encontrado, etc. — e o último episódio é basicamente os personagens convivendo consigo mesmos nessa nova existência, passando o tempo com os espectadores que acompanharam eles esse tempo todo. Community e ER e The Leftovers possuem finais assim.
The Americans tem uma última temporada cheia de eventos e de tramas para concluir, mas ela é trágica porque a quinta temporada mostra como nossos personagens se transformaram nas sombras dos seres humanos que eles foram, tão removidos do mundo em que eles lutaram que a própria temporada parece não saber para onde eles vão. Os Jennings ainda têm missões a concluir, e o futuro de sua família ainda é incerto, mas The Americans nos faz ver como a existência deles, e não suas escolhas, é a própria tragédia. Eles passaram quatro temporadas seguindo as ordens de seus superiores e defendendo seus filhos da ameaça das suas próprias vidas, e mesmo assim a incerteza em que eles vivem não cedeu. Em The Americans, pior do que ver a tensão finalmente explodir é aprender a viver nela, de tornar a tensão da vida de espiões no dia a dia de uma família.
Caramba, essa é uma das minhas séries favoritas.
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Querendo ou não, fãs de cinema por aí (eu incluso!), a gente precisa aceitar que são as séries que todo o mundo assiste hoje em dia, e que regem as nossas conversas sobre cultura. ↩
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As estruturas em cinco atos são mais ou menos assim:
- Prólogo — onde a gente conhece os personagens e o mundo em que eles vivem, e eles começam a tomar as escolhas que vão iniciar a história.
- Conflito — onde os personagens ainda tem uma chance de escapar das suas escolhas, mas algo dentro deles (as suas próprias escolhas) faz com que eles sigam em frente.
- Clímax — onde as escolhas dos personagens se concretizam e tudo muda, e agora os personagens não podem fugir das…
- Consequência — é onde os espectadores já conseguem ver o que está por vir: os personagens estão presos em seu destino, mesmo que ainda não saibam, e são sugados, sem chance de redenção, ao…
- Desfecho — tudo acaba. Vidas são perdidas e destinos são arruinados. As vezes, os personagens conseguem olhar para trás e ver como suas escolhas foram pequenas ondas formando a maré; as vezes eles não conseguem.
Essa estrutura é usada por muitas das “grandes séries da TV”, como Família Soprano e Breaking Bad. É uma que o público é apresentado desde muito cedo, e nós sabemos intuitivamente quando, senão o quê, vai acontecer. Geralmente, são séries que têm o grosso narrativo muito bem definido e que já possuem o sinal verde para seguir com o plano e chegar ao final. ↩