Jogos analógicos são interessantes. Eles são um tipo de entretenimento que a maioria das pessoas já experimentou, mas só de uma forma bastante limitada. Você certamente conhece dezenas de pessoas que já jogaram Banco Imobiliário, mas apenas uma fração disso que já jogou Descobridores de Catan — e esse segundo ainda é um dos jogos mais populares de todos!
Se entramos no subgrupo de jogos analógicos narrativos (os famosos RPGs), a disparidade é ainda maior: às vezes, a imprensa e as conversas públicas fazem parecer que só existe um jogo, ou que, mesmo que existam vários jogos, só exista uma forma de se jogar. Talvez por isso eu tenha ficado tão empolgado quando li Arquivista Heroica pela primeira vez.
Arquivista Heroica, de Richard Kelly, é um jogo analógico narrativo e, como tem acontecido cada vez mais nos últimos anos, é um jogo “solo” — você não cria uma história narrativa colaborativamente em conversa com outras pessoas, mas introspectivamente em reflexão consigo mesmo. Jogos solo (ou ao menos a pequena amostra deles que eu já pude ler) costumam ser bastante pessoais. Os que eu já joguei (pretendo falar sobre eles aqui no futuro) me trouxeram insights sobre quem eu sou, quem eu fui, que decisões eu deveria tomar na vida, e o que eu sou capaz de fazer e imaginar.
Mas Arquivista Heroica não foi exatamente assim. Arquivista Heroica não se dispõe, ao menos em primeiro plano, a trazer determinadas reflexões a quem joga. Ao invés disso, Arquivista Heroica foi criado com um único e explícito propósito: fomentar a comunidade de jogos narrativos independentes.
Você sabe que só tem minutos para trabalhar, então reúne os espólios rapidamente. Momentos depois, você está desenhando as runas que vão abrir um buraco na realidade, e atravessando.
Quando faz isso, algumas páginas voam atrás de você. Então, o buraco se fecha batendo nas suas costas.
Seus braços estão cheios de zines.
— Trecho de Arquivista Heroica
Representação impressa do panfleto de Arquivista Heroica
A ideia ficcional do jogo é simples: haviam feiticeiras trabalhando na Grande Biblioteca de Alexandria, pessoas que fugiram com a maior parte do acervo quando Julio César incidentalmente a consumiu em chamas. Essas feiticeiras, arquivistas do conhecimento, construíram uma biblioteca dimensional paralela (a Biblioteca Shin-Mecha de Alexandria II), e seguem trabalhando nela. Atravessando o espaço e o tempo, elas coletam as obras que poderiam ser perdidas, destruídas ou esquecidas, e recolhem para suas estantes. É aí que a sua personagem entra.
Você é uma maga(o)-arquivista designada para a era moderna.
Sua tarefa: se esgueirar pelas rachaduras da realidade e obter e tomar nota de textos que poderiam de outra forma não ser notados nos sistemas da biblioteca.
Esses textos são parte de uma tradição de contação de histórias participativa que entra e sai de moda desde o período neolítico.
Em termos simples, você está lendo RPGs de mesa. E você está acumulando créditos de arquivista por fazê-lo.
— Trecho de Arquivista Heroica
Está posto: o seu trabalho é ler, avaliar e resenhar jogos narrativos, RPGs de mesa. O jogo é literal e intencionalmente uma série de desculpas mecânicas para fazer essas coisas.
Sempre que ler um novo livro de RPG, suplemento, ou guia rápido, você ganha +5 Pontos de Arquivista.
— Trecho de Arquivista Heroica
Você acumula “Pontos de Arquivista” por essas tarefas, dadas algumas especificações — escrever uma resenha, por exemplo, te dá pontos por parágrafo escrito. Esses pontos não tão ali só pra bonito, eles servem para comprar coisas: Níveis de Arquivista (para você mostrar seu status para outros Arquivistas), Medalhas da Realidade (para você mexer no fluxo do tempo) e, o prêmio mais caro, uma Pizza Média Promocional. Sim, o designer do jogo literalmente promete que vai comprar uma pizza para você se encontrar com ele num evento.
Pizza Média Promocional (Custa 500 Pontos): Da próxima vez que você estiver comigo em uma convenção ou algo assim, eu vou te fazer e/ou comprar uma pizza média. Você pode customizar a pizza com quaisquer coberturas quiser, desde que sejam sabores que encontraríamos numa pizza de qualquer restaurante conhecido que sirva. Eu não posso prometer salada de acompanhamento, mas vou fazer o possível.
— Trecho de Arquivista Heroica
Se os incentivos positivos (uma pizza!) não te convencerem, certamente o incentivo negativo pode ajudar! Veja bem: os mesmos legionários romanos que tacaram fogo na biblioteca original ainda não se cansaram de causar confusão, e eles tentam invadir a nova biblioteca todos os sábados, à meia noite, em tempo real. Nesse momento, você precisa rolar dados igual à quantidade de Níveis de Arquivista que você tem, contra um número de dados igual à quantidade de semanas desde que começou a jogar (em tempo real) para os romanos.
Como a compra de Níveis de arquivista tem custo crescente (5 + [5 x o seu Nível atual]), você precisa se manter ativo ao longo das semanas para que os romanos não estraguem nada! Vale dizer aqui, que a Pizza Média Promocional vem com um vale-conserto que prende os romanos para fora da biblioteca para sempre.
“Aprendiz de Sapioforte”, por Manuel Castañón
Com essas mecânicas, Arquivista Heroica é uma carta de amor à comunidade independente de criação de jogos. Ele cria motivos ficcionais e uma experiência de jogo que recompensa ler, avaliar e resenhar jogos, fomentando engajamento e fortalecendo laços entre designers e seus pares.
Você não precisa usar esse sistema de regras para ler RPGs de mesa e outros jogos narrativos. Como o próprio jogo diz, você pode usar para um determinado gênero de literatura que gosta mais, ou pros filmes ou videogames que você achar mais legais, ou até pra fanfics! O jogo só pede uma coisa: que você use suas regras para apoiar conteúdo independente, que não tem firmas de marketing e publicitários pra salvá-los como as obras das grandes empresas. A biblioteca já tem trocentas cópias dessas obras, mas provavelmente não tem nenhuma das obras indie que você encontrar por aí.
Arquivista Heroica é um jogo incrível porque nos instiga a cuidar das criações e histórias uns dos outros, de nos comunicarmos pra contar sobre nossas experiências com as palavras e mundos criados por nossos companheiros humanos. E o mais importante, ele faz isso com a intenção explícita de manter conhecimento e curiosidade vivos.
Se quiser adquirir uma cópia de Arquivista Heroica, hoje é o seu dia de sorte, por que ele é gratuito, disponível em Português, Inglês e Espanhol, e você pode baixá-lo de graça na página do autor no itch.io, ou na plataforma nacional dungeonist! Na verdade, quanto mais gente tiver uma cópia melhor, então espalhe ele por aí se puder!
A biblioteca sempre pode contar com mais duas ou três mãos pra ajudar a manter os malditos legionários pra fora.