Eu tenho uma ótima notícia pra dar para meus amigos: ER finalmente vai estar disponível para assistir por streaming no Brasil a partir de junho, com a chegada da HBO Max.
Eu tenho um apego emocional muito forte com essa série, exibida na Globo no fim dos anos 90 como Plantão Médico. Foi a primeira série que eu lembro ter assistido, junto com minha mãe nos das que eu perdia o sono. ER era o que minha mãe assistia quando todo mundo já tinha ido dormir e ela podia sentar na frente da TV e descansar. As vezes, eu conseguia ficar acordado e acompanhar ela. Era uma série muito forte: a série acompanha o dia-a-dia do pronto-socorro de um hospital público na cidade de Chicago, e é de cair o queixo com suas sequências de cirurgia e atendimentos corridos, acidentes que resultam ou em tragédias ou em milagres. É o primeiro programa “adulto” que eu lembro ter assistido na TV. Até hoje, é uma das melhores coisas que eu já vi — e “Love’s Labor Lost”, o 19º episódio da primeira temporada, é o meu episódio de TV favorito de todos.
Quer uma provinha do que eu estou falando? Vamos dar uma olhada na primeira cena de ER:
O maior legado de ER, e de suas “colegas” Miami Vice, NYPD Blue e Homicide, foi o de mostrar como a TV podia usar uma linguagem cinematográfica para contar suas histórias. Antes delas, episódios de TV eram majoritariamente “isolados” em episódios independentes, filmados em planos abertos onde os personagens andavam por um cenário. Séries de TV precisam de muito material, e filmar é muito caro, então séries precisavam cortar custos com o que podiam. A partir do final da década de 1980, quando alguns diretores de TV já tinham bastante experiência indo de uma série para a outra, eles começaram a experimentar mais.
Mas foi ER, em 1994, que jogou tudo pro alto já na sua primeira cena. O telefilme que serve como episódio piloto (ele tem duas horas de duração) abre com um plano sequência em que o Dr. Mark Greene cruza o hospital para atender seu colega, Doug Ross (George Clooney no papel que o fez uma estrela). No caminho, ele cruza com o que serão vários personagens: enfermeiras, faxineiras, assistentes e até mesmo o pessoal da manutenção. Mark e Ross são alguns dos protagonistas da série, mas isso significa que eles servem como uma espécie de espinha dorsal para os episódios — a câmera segue eles pelos corredores, mas não deixa de mostrar todo o grande balé que é o pronto-socorro daquele hospital, com médicos e enfermeiros empurrando máscaras e pacientes e familiares andando atordoados pelos corredores repletos de instrumentos e pessoas.
Observa como essa cena inicial faz isso, mas sem nunca confundir o espectador. A imagem simplesmente “dança” com seus personagens, graças ao uso da steadycam, que permite que a câmera percorra os corredores junto com seus personagens na mesma altura que eles, como se fosse um personagem em si. ER foi um sucesso instantâneo porque seu elenco era incrível, mas também porque apresentou uma linguagem visual que permitia que a câmera pudesse virar e qualquer coisa estivesse acontecendo a qualquer momento. É inesperado e empolgante e emocionante.
Steadycams não eram comuns na TV nos anos 1990, mas eram um elemento central na linguagem da série. Embora acompanhe Mark pelo corredor, somos apresentados à Jaime, o recepcionista; e duas enfermeiras, Lydia e Maria. Todos eles terão arcos nos próximos episódios — até mesmo os funcionários que estão trocando uma lâmpada que Mark precisa desviar vão ter dificuldade em arrumar o ar condicionado em um dos melhores episódios da primeira temporada.
Essa maturidade visual de ER ofereceu não só uma expansão do horizonte do que era possível na TV, mas também permitiu desenvolver um drama incrível. Olhe como na sequência abaixo um personagem percebe como ele, também, é parte essencial do pronto-socorro (dirigido por ninguém menos que Mimi Leder, uma das grandes diretoras da TV americana):
A ausência de ER nos serviços de streaming até hoje parece causar uma falsa sensação de que essa série está defasada. ER foi a série dramática mais assistida dos anos 1990 nos Estados Unidos, e entrou no ar na chamada quinta-feira mágica da NBC. ER vinha depois de Seinfeld, e as duas estavam logo depois de uma série que estava estreando na grade em 1994, Friends, e esse bloco de quinta-feira era para a época o que Game of Thrones foi para os anos 2010 na quarta potência. Diferente das séries de comédia que a acompanhavam, porém, ninguém comenta muito sobre ER hoje em dia. Se depender de mim, eu me disponho a mudar isso sozinho.
Eu tô exagerando. Quando ER finalmente chegou nos streamings americanos em 2018, nove anos depois de sua última temporada, ela voltou a ser a série mais falada quando fãs antigos e uma nova leva podiam assistir enquanto tuítavam sobre.
Isso porque ER existe num panteão da TV americana que hoje é menos discutido do que a “nova era do ouro da TV” que começou com Família Sopranos e que eu acredito que acabou em 2017, com o final da terceira temporada de Twin Peaks. Antes dessa era, existia ER e séries como Miami Vice, NYPD Blue e Homicide: Life on the Street — dramas processuais de ambientes de trabalho. Diferente de seus correspondentes de hoje em dia, como Grey’s Anatomy e Chicago Fire, que possuem o “caso da semana”, seja um paciente, um crime, ou algo assim, esse panteão estava muito mais interessado no espaço de trabalho em si, e como as pessoas que trabalham nele convivem e reagem às suas funções.
ER era um drama médico muito mais sobre um hospital do que sobre seus médicos, que discutia desde a ausência de um sistema público de saúde eficaz nos EUA quanto a desvalorização do serviço de enfermagem. Séries como ela não existem mais por aí, e digo isso não como um homem velho gritando pro céu, mas como uma constatação: a revolução que Família Soprano trouxe para a TV, de histórias centradas em um pequeno núcleo de personagens e como eles reagem com os eventos de suas vidas ao passar do tempo, ofuscou a forma como essas séries dos anos 1990 revolucionaram a TV, com seu escopo gigante onde cada personagem, por mais coadjuvante que seja, fizesse parte de um emaranhado de histórias.
Isso faz com que ER seja única de se assistir até hoje, porque não existe nada igual à ela na TV desde então. Seus visuais fantásticos são o que a tornam empolgante e impressionante até hoje, mas a forma com que sua história é desenvolvida é o que a torna quase que impossível hoje em dia. É uma série sobre toda aquela equipe, dos que guiam a câmera pelos corredores àqueles que vemos enquanto ela tenta escapar um beco sem saída ou faz uma dobra entre uma maca e outra. ER era ambiciosa para o seu tempo, mas hoje é surpreendente.
Se feita hoje, ER seria sobre um médico, mas muito do que a tornou importante — das lutas sindicais, dos conflitos sociopolíticos e do problema de classe intrínseco do sistema de saúde — dariam lugar para “drama”. Mas ER é repleto de drama: aquele que vemos nos corredores do nosso trabalho, nas esquinas do dia-a-dia, nas salas de cirurgia que torcemos para que nunca tenhamos que entrar. ER hoje parece estranhamente moderna, talvez até mesmo revolucionária.