Eu nunca levo muito a sério quando um diretor de algum filme, mesmo de filmes que eu amo, tenta resumir o ímpeto de fazer filmes ou de contar histórias. Eles acabam dando grandes declarações sobre a humanidade — sobre nossa necessidade de contar e de ouvir sobre as experiências de nossas vidas, a possibilidade de uma obra de arte tem de ser uma janela para o mundo, etc. e tal. Quanto mais filosófica a declaração fica, menos eu consigo entender ela.
Uma das que sempre me incomodou muito é que arte é uma tentativa de enganar a morte e de viver para sempre, de alguma forma. Eu nunca entendi ela muito bem, e sempre me incomodou porque eu não acho que a arte seja capaz de fazer alguém viver para sempre. Por mais que até hoje a gente converse, discuta e se surpreenda com o sorriso da Mona Lisa, ela não traz nem Da Vinci nem a Gioconda de volta. Ela é um lembrete de que essas pessoas existiram, e de que em algum momento ela posou para ele retratá-la. De certa forma, eu prefiro acreditar que a arte é uma espécie de máquina do tempo.
Mas eu acho que, nesse último fim de semana, eu cheguei um pouco mais próximo de entender esse tipo de explicação. Não por causa da arte em si, mas pelo tipo de experiência que esse tipo de explicação tenta descrever em palavras.
Esse fim de semana eu tive a chance de reencontrar, com todos os cuidados que o distanciamento social requer, vários amigos de épocas distintas da minha vida. Eu almocei com amigas de infância, conversei com um amigo da faculdade, e passei a tarde tomando café com um grande amigo. Eu ainda cheguei em casa e passei um tempo jogando Animal Crossing com um amigo que conheci ano passado porque ambos precisávamos um do outro pra realizar umas tarefas no jogo, e acabamos nos dando bem (ele me deu um dos mais lindos presentes de aniversário esse ano, inclusive).
Esse fim de semana me lembrou muito do filme-finale de Looking, uma série pouco vista mas excelente que foi exibida na HBO em 2014 e 2015, e acabou com um filme em 2016. A série é sobre as peripécias de quatro amigos tentando viver e serem felizes em São Francisco. É um pouco aberto em termos de escopo, mas é exatamente isso que Looking retrata: como essas quatro pessoas bem diferentes entre si tentam procurar algo na vida delas que as deixam felizes, e tentam entender se existe algum tipo de propósito na vida deles. Seja em termos emocionais, profissionais ou, pior ainda, existenciais.
Em Looking: The Movie, que se passa alguns meses depois do último episódio da série, descobrimos que um desses amigos foi embora da cidade depois de um término com seu namorado. O filme se passa no fim de semana em que ele retorna para rever seus amigos e comemorar o casamento de um deles. O personagem, chamado Patrick, acaba usando esse fim de semana para se atualizar da vida de seus amigos em momentos diferentes do dia, e de terminar alguns assuntos que ele deixou em aberto com sua mudança repentina. Na sua cena final, Patrick e seus amigos estão exaustos em um restaurante 24 horas depois de sair de uma festa (e de uma discussão dentro da festa). Eles estão conversando sobre o que vai acontecer nos próximos meses e se divertem tomando drinks e comendo petiscos. Patrick olha ao redor e vê seus amigos, o diretor Andrew Haigh move a câmera lentamente ao redor deles naquela mesa, como se ela estivesse solta do espaço-tempo. Seja lá o que for que Patrick e seus amigos estejam procurando em suas vidas, naquele momento eles parecem ter encontrado.
Eu lembrei dessa cena hoje de manhã enquanto matutava esse texto, porque embora eu não tenha conseguido me reunir com meus amigos nesse último ano, eu entendo exatamente o sentimento que existe em apreciar um momento em que você não existe só em si mesmo, mas compartilha sua existência com pessoas ao seu redor, que também compartilham um pouco da vida dela com você. De tarde, enquanto tomava café e botava o papo em dia/falava algumas maluquices com meu amigo, eu tive um desses momentos em que eu percebia que eu não existo apenas dentro da minha própria cabeça, à mercê da minha própria mente. Eu existo na mesa em que eu sento junto com meu amigo, com uma xícara de café com leite que a gente insiste em tomar em um dos dias mais quentes do verão de Porto Alegre.
Andrew Haigh é um grande diretor que consegue capturar e expressar momentos assim, que são breves e muitíssimo especiais quando conseguimos apreciá-los enquanto acontecem, e não só em retrospecto. Seja no final de semana em que dois jovens se apaixonam em Weekend e têm a chance de viver dois dias repletos de momentos especiais, sabendo que eles são especiais; seja durante uma festa de casamento em 45 Anos, em que a protagonista percebe que aquele momento em que está vivendo é definitivo em sua vida; ou uma noite em que um jovem conversa com um cavalo em A Rota Selvagem. Haigh sabe fazer você perceber que seus personagens estão se sentindo presentes nesses momentos importantes da vida deles, e não deixando para sentir a importância deles depois.
Foi quando a ideia de que um dos objetivos do artista é de viver para sempre fez um pouco mais de sentido pra mim. A arte tenta capturar e promover — seja através de um filme, uma música, uma pintura, um poema — esse tipo de experiência além do nosso corpo. Muitas vezes, para o artista, isso é feito através da manipulação e compreensão de seus próprios sentimentos e do seu corpo. Criar arte também requer um momento de auto-compreensão e entendimento, por um longo período de tempo.
Eu suspeito que eu demorei para entender essa ideia porque eu sou uma pessoa sortuda, que sempre teve esse tipo de experiência porque eu sempre fui cercado dos melhores amigos do mundo, estejam eles próximos ou distantes fisicamente, eles estão sempre ao redor de uma forma ou de outra. E eu sempre dei isso como uma certeza na minha vida, e nunca entendi muito os efeitos que eles têm sobre mim até que eu tive que aprender a conviver longe deles nesse último ano, tendo que me atualizar sobre a vida deles nos breves encontros que tive com alguns ou através de video-chamadas e jogatinas online com outros.
Eu nunca tinha percebido antes o quanto eu preciso, e o quanto eu realmente valorizo, o poder que eles têm de me fazer me sentir menos sozinho. Minha vida dentro da minha cabeça é muito mais chata, muito menos interessante. Meus problemas são bem maiores e mais intransponíveis. Eles me fazem lembrar que eu também existo ali, na frente do meu amigo, ouvindo e sendo ouvido por outra pessoa, compartilhando uma risada ou a frustração sobre o preço do tomate ou os benefícios de tomar limonada (a gente foi no mercado depois). E como é especial a gente perceber um momento especial desses enquanto ele acontece, porque a gente é capaz de retribuir o favor de estar presente e de lembrar meu amigo que ele não está preso apenas na cabeça dele. A gente existe um pouco um no outro, também.