Esse post revela momentos da trama de Soul.
Em uma cena de Soul, Joe Gardner — ou melhor, a alma de Joe — acompanha a alma 22 no Museu da Minha Vida. Lá, ele mostra para ela alguns dos momentos mais importantes da sua experiência como um ser humano. Para ele, o momento mais especial é o que seu pai o leva à um clube de jazz, e ele descobre seu amor pela música. Joe é um pianista, mas ele nunca deslanchou em uma carreira como músico. Enquanto observa os momentos que compõem o Museu, ele percebe vários em que esteve infeliz — assistindo TV sozinho na sala, comendo uma torta numa lanchonete à noite, dando aula para seus alunos pouco interessados do ensino médio. Joe percebe, observando esses momentos, que sua vida foi um fracasso.
É um momento importante em Soul porque Joe, que sofreu um acidente e se recusa em morrer e ir para o Além-Vida, acaba caindo na Escola da Vida, o lugar em que almas que ainda não foram para a Terra têm a chance de desenvolver suas personalidade e encontrar suas “missões” para então poderem viver. É onde ele conhece 22, uma alma que não só nunca foi para a Terra, mas também não tem nenhuma vontade de ir. Ela está feliz vivendo nessa dimensão além da compreensão humana, nem que pra isso ela precise enfrentar alguns tutores como a Madre Tereza, o Abraham Lincoln e até mesmo a Maria Antonieta; e por isso decide ajudar Joe, um sujeito que pelo visto teve uma vida infeliz e mesmo assim quer voltar a viver. O que tem de tão interessante na existência, afinal?
Essa é uma pergunta que os filmes de Pete Docter estão sempre respondendo por baixo dos panos, e que Soul resolveu tratar mais diretamente. Docter é um dos diretores mais tradicionais da Pixar, sendo parte do “núcleo criativo” do estúdio, que se envolve em todas as produções. Mesmo que Docter tenha dirigido apenas quatro filmes até aqui, sua contribuição para a animação é muito maior — e tende a ser ainda maior nos próximos anos, agora que ele assumiu a gerência do estúdio depois da saída de John Lasseter por conduta inapropriada.
Em seus quatro filmes até aqui (Monstros S.A., Up — Altas Aventuras, Divertida Mente e Soul), Pete Docter se estabeleceu como aquele diretor que modula entre dois modos: o do humor cartunesco e o do humanismo sentimental. Enquanto os outros dois grandes nomes da Pixar, Andrew Stanton (Procurando Nemo, WALL-E) e Brad Bird (Os Incríveis 1 e 2 e Ratatouille) desenvolveram vozes particulares, Docter agiu por anos às sombras de seus colegas mais famosos, e seu traço mais conhecido era o humor. Monstros S.A. é até hoje o filme mais engraçado do estúdio, e a sequência de fuga nas portas que acontece em seu clímax é o momento em que um filme da Pixar mais parece ser um episódio de Papa-Léguas e Coiote.
Docter tem um carinho pela fisicalidade do humor. Enquanto Stanton explora o ultra-realismo e Bird encena como os filmes-seriados de espiões das décadas de 1940 e 1950, a principal referência visual de Pete Docter parece ser os desenhos dos Looney Tunes, em que Pernalonga, Patolino, Piu-Piu e Frajola se distorcem e fazem posições nada reais para mostrar seus sentimentos. Mas os filmes em que os personagens de Docter estão usam desse tipo de humor para realçar o movimento interno do filme, onde a jornada de seus personagens é tão interna quanto externa.
Monstros S.A. tem muitas semelhanças com outros filmes da primeira leva da Pixar: é uma história sobre amizade onde os amigos precisam passar por uma jornada e conhecer o limite uns dos outros. Como Toy Story e Vida de Inseto, o que começa como uma comédia se torna uma aventura de pega-pega, e o filme se foca tanto em eles desenvolvendo um plano mirabolante quanto em descobrindo como trabalhar junto para executá-los. Mas se os filmes anteriores do estúdio mostram os amigos passando pelos perrengues e então superando-os e voltando à amizade, Monstros S.A. usa a aventura para torná-la um momento em que Mike e Sulley fortalecem sua amizade e observam, num futuro onde o epílogo do filme se passa, com nostalgia.
Quando Docter finalmente volta à direção com Up — Altas Aventuras, sua homenagem ao humor cartunesco é mais contido, mas dá mais espaço para explorar os breves momentos de beleza na vida de Carl com sua esposa, Elle. É uma das sequências mais poderosas do estúdio, que realça a coragem da Pixar de explorar tanto os momentos mais bonitos quanto os mais difíceis na vida de seus personagens. É uma cena que não só ressalta a morte de Elle e a falta que ela faz para Carl, mas também de como pequenos imprevistos da vida deles acaba atrasando seus sonhos de viajar.
Ela também é usada em Up como fonte de nostalgia. Carl é teimoso, mas sabemos o que ele procura um lugar para poder lembrar justamente desses momentos que vemos na sequência inicial do filme porque é incapaz de ver os momentos de beleza e de tristeza de sua vida naquele instante, em que um jovem escoteiro acaba se aproximando dele.
É a mesma estratégia que seu novo filme, Soul, usa em seus momentos finais. Diferente de Carl, que observa os belos momentos da sua vida no passado, o protagonista de Soul, Joe Gardner, acha que eles ainda estão por vir, e que sua vida ainda não tem um significado enquanto ele não realiza seu sonho de ser um grande jazzista. Se em Monstros S.A. e Up usam esses momentos como passado em que seus personagens lembram sobre, Joe primeiro pensa neles como uma hipótese de futuro, para então perceber que sua vida, na verdade, foi repleta de breves momentos de beleza, em uma das sequências mais lindas do estúdio: um jovem Joe andando de bicicleta e observando o céu azul, o sol irrompendo nas primeiras horas da manhã na sua rua, os últimos momentos com seu pai; ou uma ida na praia com a mãe.
Cenas antes, em uma discussão com sua mãe, Joe diz que se ele morresse naquele dia sua vida não teria sentido nenhum, e é quando Soul para para analisar as principais diferenças entre Joe e sua parceira de jornada, 22. Joe está focado demais em seu destino para observar como 22 se diverte no mundo, como ela passa os dedos nos corrimões e sente a textura do ferro, como ela aprecia até mesmo os sentimentos ruins que sente no corpo de Joe. Em um dos momentos mais belos do filme, eles estão sentados na calçada e 22 olha em volta, observando um pai brincar com a filha no outro lado da rua e duas amigas conversando sentadas em um café. A principal diferença entre Joe e 22 (além de um estar vivo e um ainda não ter vivido), é que ele não consegue perceber os breves momentos de beleza da sua vida enquanto eles acontecem porque ele não consegue parar de pensar na possibilidade do futuro, e é sentada na calçada que 22 absorve um momento de vida, daqueles que a gente se sente mais acordado do que o possível.
É uma ideia complicadíssima de se passar em um filme justamente porque é difícil de executá-la na vida real, e talvez nenhum outro filme de Docter tenha conseguido estabelecer esse sentimento quanto Divertida Mente, que se passa dentro da mente de Riley, uma criança entrando na adolescência, e como seus sentimentos entram em conflito no momento em que uma mudança muito grande na vida dela abala tudo aquilo que um dia ela deu como certo.
Divertida Mente é um filme magistral, que estabelece um código visual em seus primeiros minutos: cada um dos cinco sentimentos de Riley é uma cor, e quanto um desses sentimentos reage à algo ao redor dela, uma esfera com a cor dele aparece — é uma memória. Um problema acaba fazendo com que Alegria e Tristeza fiquem presas fora da sala de controle, e Raiva, Nojo e Medo precisam controlar Riley enquanto elas não voltam.
Divertida Mente estabelece essa alegoria visual bem cedo no filme, porque todo o restante do filme vai trabalhar em complexificar ela cada vez mais. Descobrimos como memórias são descartadas, e como algumas delas formam traços “essenciais” de Riley. Ao perdê-las, ela fica confusa, e Alegria e Tristeza tentam recuperá-las para que Riley possa ser a garotinha alegre que é, o que acaba sendo impossível. Riley está crescendo, e deixar momentos que foram especiais para nós para trás é uma parte essencial desse crescimento: uma amizade que foi muito importante na nossa vida acaba ficando para trás, por exemplo, e eventualmente alguns dos bons momentos que viveram juntos serão esquecidos.
Parte do desenvolvimento de Alegria e de Tristeza em Divertida Mente é justamente em entender que é preciso valorizar esses belos momentos que fazem parte da vida enquanto eles acontecem, e apreciá-los enquanto eles fazem algum sentido na nossa vida. Isso acontece no meu momento favorito de todos os filmes da Pixar até hoje. Ele é bem breve, mas como Divertida Mente desenvolve sua linguagem visual tão bem é impossível de perdê-lo:
Depois de Riley tentar fugir de casa, ela finalmente consegue falar o que sente para seus pais, em um momento que valoriza a importância da Tristeza na vida de uma criança — aquilo que era feliz agora virou saudade: as memórias fundamentais da vida dela até ali — uma brincadeira com os pais, uma conversa com a amiga, uma partida de hockey… — deixam de ser amarelas/alegres e ficam azuis/tristes. As memórias dos momentos mais importantes da vida de Riley acabaram de mudar, e de mudar de significado para ela também.
É quando seus pais expressam os mesmos medos, e então compartilham um abraço. O filme então dá um close no rosto de Riley, que em meio às lágrimas solta um suspiro, e um breve momento de conforto — uma memória ao mesmo tempo triste e feliz, que é apreciada e valorizada enquanto ela acontece. Riley começa a se desenvolver em uma pessoa com sentimentos mais complexos e menos precisos, e Alegria aprende não necessariamente a se desapegar das memórias do passado, mas na beleza que é apreciar as memórias que Riley faz e que moldam e mudam ela o tempo todo. Como nos outros filmes de Docter, a jornada de Riley e de Alegria é a de se permitir abrir emocionalmente para o mundo e a entender que, como elas, o mundo e nossa memória dele mudam. É o que acaba permitindo que Carl veja motivos para continuar vivendo.
E é o que inspira Joe a tocar seu piano ao final de Soul: as mesmas memórias que ele viu antes, no Museu da Minha Vida, e enxergou sua vida como um fracasso. Elas aparecem de novo em sua mente ao final do filme, mas com um novo significado. A torta que ele comeu sozinho em uma noite era deliciosa, sempre existiu alguma aluna na aula que se inspirava pela música que ele ensinava, etc. Os breves momentos de beleza cercam a maioria de nós por toda a nossa vida, mas não é por isso que eles são fáceis de perceber no momento em que acontecem. Ao final de Soul, é justamente isso que faz Joe querer voltar à vida: a chance de finalmente poder vivê-los, e não só lembrá-los.