Filmes estão com um problema de backstory

Os filmes estão longos demais. Eu não tenho problema nenhum em ficar cinco horas sentado na frente da TV assistindo a vários episódios de Gilmore Girls, mas toda a vez que eu penso em rever Blade Runner 2049 (um filme que eu amo), eu lembro que ele tem duas horas e quarenta e três minutos de duração. Tudo bem que os filmes de Denis Villeneuve têm um ritmo um pouco mais lento do que outros blockbusters, e por mim tudo bem. Mas eu sei muito bem qual o principal culpado dessa duração gigantesca: backstory.

Backstory é aquilo que aconteceu antes dos eventos da narrativa de um filme. Quase todos os filmes têm, é muito raro um filme ser somente sobre o tempo presente (Tangerina, aquele filme maravilhoso que foi filmado em um iPhone, é um bom exemplo desses casos raros). Alguns são quase todos feitos de backstory, como Antes do Pôr-do-Sol — um filme em tempo real1, mas que é quase que totalmente sobre duas pessoas conversando sobre o passado. Enfim, backstory é algo meio que essencial pro cinema, mas eu tenho uma teoria de que muitos filmes dos últimos vinte anos, mais ou menos, não sabem direito como usar ele.

A minha teoria começa O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. O épico de Peter Jackson é um grande filme. Eu acho que é o melhor blockbuster desse lado de Jurassic Park. É, também, um filme de quase três horas de duração repleto de backstory. A gente fica sabendo de lendas e de eventos históricos (vá saber o que é lenda e o que é evento histórico na Terra-Média, inclusive), dezenas de personagens mortos há muito tempo são mencionados como se estivessem presentes, e lugares que não existem mais são referenciados à todo instante.

E tudo isso faz sentido. Se tem um filme nos anos 2000 que sabe usar backstory, é A Sociedade do Anel. Mais do que qualquer outro filme da trilogia de Jackson, o primeiro filme entendia muito bem como fazer esses eventos pregressos à história serem desembocarem naturalmente para o que está acontecendo na tela. Quando Frodo e os companheiros entram na floresta de Galadriel, a bruxa (?) decide explicar para eles a natureza do confronto do bem e do mal que rege a Terra-Média usando nomes que a gente nunca ouviu antes (não se preocupe se você não viu esse filme ainda, eles vão ser explicados em algum momento). A Sociedade do Anel faz esse momento ser importante por fazer os eventos atuais serem o desenlace do backstory sendo explicado, e faz isso toda a vez. É coisa de gênio.

A Sociedade do Anel fez muito sucesso, e enciclopédias explicando cada nome e local e lenda da Terra-Média começaram a pipocar, de forma muito semelhante com o que já acontecia com Star Wars. Mais dinheiro para um filme que já fez muito dinheiro na bilheteria. Era negócio.

E bem, o resto é história. Tudo começou a ter lore. De Blade Runner 2049, que explica a história de quase todos os replicantes que aparecem em cena, à G.I. Joe (não me peça para explicar a história dos bonequinhos, que eu não vou saber). Pouco a pouco, as durações de blockbusters começaram a abaloar. Não só isso, mas enquanto esses filmes ficavam mais longos, o backstory acabava ocupando o espaço do segundo ato de seus filmes.

Filmes têm histórias demais — e nem sempre (mas quase sempre) isso é um problema

O que acontece? Filmes têm o primeiro ato — o estabelecimento do evento —, um segundo ato enforcado por backstory — o que era desenvolvimento se transformou em estabelecimento do estabelecimento do evento do filme —, e então clímax. Mas como o evento nunca se desenvolve, a gente não sabe exatamente dos riscos desse evento. A gente sabe a origem do vilão de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, mas a gente não tem ideia de como a revolução de Bane faz a cidade ficar sitiada. Quando o Bruce Wayne volta da prisão/backstory do vilão, a cidade já está à beira do colapso e a gente precisa ficar indo atrás dos personagens coadjuvantes porque metade do filme ficou ocupada com a origem de Bane, é surreal.

Esse não é um problema que acomete somente os filmes de grande orçamento de Hollywood. Com o advento dos workshops de roteiro, o backstory excessivo começou a causar problemas em filmes independentes também, uma vez que roteiros são avaliados pelo quão “bem construídos” eles são — um personagem tem intenções, que são motivadas por um evento, que é causado por eventos pregressos, e por algum motivo é importante sabermos o que causou esses eventos pregressos, ou o que o protagonista estava fazendo durante esses eventos.

Um dos meus filmes favoritos tem esse problema: Temporário 12 é um filme de 2013 sobre o dia-a-dia de crianças e tutores em lares temporários, casas comunitárias que acolhem crianças “temporariamente”, embora algumas fiquem lá até completarem 18 anos. A protagonista é uma das cuidadoras, Grace (Brie Larson, num papel memorável). Por grande parte do filme, tudo o que sabemos é que Grace passou por um desses lares quando era criança, o que nos dá a entender que sua grande empatia e paciência com as crianças que ela cuida é uma das formas que a ajudou a vencer seu trauma. Grace é uma excelente tutora: ela entende e dá espaço para a raiva que os jovens que vivem nesse lar temporário estão sofrendo, ao mesmo tempo que não deixa essa raiva machucá-los. Grace também sente essa raiva e essa confusão quando está fora do lar temporário: o sexo é desconfortável, ela não quer ter um filho, ela guarda segredos do seu namorado. Mas ela deixa tudo isso na porta quando vai trabalhar. É em si uma forma de superação.

O problema acontece no último ato de Temporário 12, quando Grace vai buscar uma jovem da casa do pai abusivo. Grace tem um acesso de raiva e destroi o carro do homem. Grace acaba na calçada com a garota que ela devia cuidar, e então sabemos que os eventos que levaram ela para um lar temporário quando criança foram circunstâncias bem parecidas com aquela — é possível supor antes desse momento, já que Grace recebe uma ligação do seu advogado sobre o pai estar sendo solto da prisão. Essa revelação é um problema de forma e de conteúdo. De forma, porque ele é dado em um momento como se fosse uma revelação do filme, mas até ali Temporário 12 não parecia querer contar o que aconteceu com Grace. E de conteúdo, porque a exata circustância do abuso que Grace sofreu não adiciona nada à história em si. Nós sabemos que Grace passou por algo traumático, e sabemos que ela usa sua experiência em lares temporários para ser uma boa tutora. Saber do abuso que ela sofreu não adiciona nenhuma nuance ao que sabemos — ela não é uma boa tutora por causa do abuso de seu pai.

Brie Larson e Lakeith Smitt em Temporário 12 Temporário 12 (Short Term 12)

Não é que nenhum filme bom usou muito backstory nesses últimos vinte anos. O Irlandês, o épico de cinco horas de Martin Scorsese para a Netflix, é basicamente backstory dentro de backstory; e O Grande Hotel Budapeste de Wes Anderson não tem problema nenhum em mergulhar em tangentes sobre a origem de algum personagem que só vai aparecer na história central por cinco minutos ou menos. Mas ambos os casos são filmes que buscam aquele efeito cumulativo de como os eventos se acumulam nas nossas vidas. O Grande Hotel Budapeste é sobre o emaranhado de vidas e de eventos que cruzam um hotel decadente; O Irlandês é sobre como as escolhas de um punhado de pessoas influenciam outras dezenas com o passar das décadas, e o peso que fica dessa responsabilidade sobre aqueles que vivem tempo demais.

Não é a quantidade ou a complexidade que faz um bom backstory, mas a precisão. A Sociedade do Anel pode ter o equivalente a horas de backstory, mas todos eles remetem imediatamente ao evento que está acontecendo. A gente não precisa saber de tudo o que aconteceu, mas se soubermos do detalhe certo o resto se revelará naturalmente. A gente sabe que a cientista que Sandra Bullock interpreta em Gravidade passou por algo que faz ela preferir morrer no espaço do que passar mais um segundo na Terra. Saber que foi a morte da sua filha não torna essa dor maior, só dá nome aos bois.

É um jogo delicado do quanto a gente precisa saber sobre esses personagens para que os eventos centrais do filme tenham a intensidade que eles precisam ter. Nós sabemos muito pouco do passado de Furiosa em Mad Max: Estrada da Fúria, mas o que sabemos é suficiente para entendermos que redenção é essa que ela está buscando para ela e para as outras mulheres. Mas Mad Max é (literalmente) uma corrida, e se o filme passasse muito tempo explicando a vida de seus personagens antes dela, a corrida perderia sua urgência.

Backstories incompletos também têm a qualidade de serem mais reais, e deixam para outros aspectos do filme complementarem a história. Em Ela, o filme em que Joaquin Phoenix se apaixona pela voz da inteligência artificial do seu computador, o que sabemos sobre o casamento do personagem é justamente aquilo que ele se lembra: os momentos bons em que ambos eram felizes, e então os momentos em que os dois não conseguiam mais se falar. Grande parte do crescimento que o personagem precisa passar em Ela é sobre como o fato de ele não saber o que levou de um para outro é a sua falta de atenção com o outro — se nós soubermos disso antes dele, o filme perde seu impacto emocional.

O filme também deixa a direção de arte fazer grande parte do trabalho pesado para estabelecer aquele mundo: a gente sabe que é um futuro que deu certo, porque a metrópole de Los Angeles é repleta de verde e não se fala mais de aquecimento global; a gente sabe que a tecnologia de Samantha não é tão revolucionária assim, porque quando ela vai embora nada entra em colapso. A gente também sabe que é uma sociedade extremamente artificial, porque vários serviços — inclusive aquele que o personagem de Joaquin Phoenix trabalha — são simulações de coisas artesanais, como cartões postais ou livros de recorte.

A gente não precisa ver como Theodore (lembrei do nome do personagem!) aprendeu a escrever cartas de amor tão lindas, ou o que levou ele a se separar de Catherine, ou porque ele e Amy são tão amigos, ou como a tecnologia de Samantha foi criada. Os eventos de Ela acontecem porque essas coisas aconteceram, mas o amor de Theodore por Samantha não pode ser resumido ao resultado de algumas ações. A complexidade de personagens e de mundos narrativos não se dá se eles são enigmas muitíssimo bem construídos que são desvelados pelo filme — mas se eles são muito mais do que a soma de certos eventos, algo que é impossível de resumir em duas horas e quarenta e três minutos. Talvez seja melhor tentar capturar uma faceta deles em uma hora e meia ou duas horas e quinze minutos. Uma vida não pode ser resumida, mas podemos ter uma ideia de como ela é.


  1. “Filmes em tempo real” são aqueles que acontecem em um tempo equivalente à sua duração. Antes do Pôr-do-Sol, por exemplo, tem oitenta minutos — e narra um encontro de oitenta minutos entre Jesse e Celine em uma tarde de verão em Paris. Cléo das 5 às 7 de Agnès Varda é um exemplo clássico; e muitos acham que Gravidade é um filme em tempo real (eu discordo, eu acho que existem dois momentos em que a personagem adormece que são cortados da ação).