Kirsten Johnson age quando a gente menos percebe. Por grande parte da sua carreira, ela foi diretora de fotografia de alguns dos melhores documentários dos últimos anos mas em 2016 ela fez o que talvez seja o melhor documentário dos últimos anos com Cameraperson uma jornada pelo tempo de sua carreira e de sua vida, usando “restos” de filmagens dos filmes em que trabalhou enquanto também documentava o pouco do que restava da sua mãe, que enfrentava os estágios finais do mal de Alzheimer.
Esse é um dos pontos de partida de seu novo filme, As Mortes de Dick Johnson (Netflix, 1h30). Johnson relembra as poucas imagens que tem de sua mãe, e como elas refletiam muito pouco quem ela realmente foi, ao menos antes de adoecer. É em resposta à essa observação que ela passa a filmar seu pai, Dick Johnson. Ele também está começando a esquecer as coisas, mas ainda está ciente do mundo ao redor, sendo o pai amável e seu melhor amigo. É o que Johnson começa a documentar em seu novo filme.
Como Cameraperson não era só um documentário sobre sua mãe, mas uma jornada pela a memória e como ela se transforma, As Mortes de Dick Johnson também não é somente sobre seu pai, mas também como a gente se prepara para perder aqueles que amamos, e como isso também é um ato final de amor. A diretora decide fazer isso através de várias esquetes que simulam todas as formas que seu pai pode morrer: Dick caindo da escada, ou Dick sendo esmagado por um ar condicionado, ou Dick se estatelando na calçada.
É uma sinopse sombria, mas As Mortes de Dick Johnson não é formado apenas por essas esquetes, mas por toda a preparação das filmagens e toda a reação que Richard, o pai, está tendo em ver sua filha matá-lo várias e várias vezes. Como o filme anterior da diretora, As Mortes… é um pouco de filme diário, também. Ela acompanha seu pai se despedindo de seu trabalho e desmontando seu escritório, saindo da casa que viveu a maior parte da sua vida e se mudando para o quartinho no apartamento minúsculo da filha. Richard é uma presença magnífica, e se tem algo que o filme documenta em toda a sua imensidão é o amor dele pela diretora.
As Mortes de Dick Johnson acompanha justamente o desaparecimento de Dick, e como ele vai progressivamente perdendo as memórias que ele tem de sua família; vai perdendo a consciência de onde está e o que está fazendo. Johnson monta cenários onde seu pai morre de várias formas possíveis, mas ela documenta como a morte é uma perda contínua e progressiva, um desaparecimento gradual daquilo que se ama. É um filme que mata e fala de morte sem parar e, ainda assim, é um filme que captura aquilo que tem de mais lindo em se sentir vivo.
Um dos atributos mais lindos e poéticos da arte é como ela é capaz de imortalizar. Seja seus artistas ou seus sujeitos, seja o tempo e o lugar em que ela é feita ou que ela representa, a arte é uma pequena máquina do tempo. A gente comenta como a arte eterniza seus artistas, como a gente sempre terá aquela fração de Tarkovsky e de sua mente que permanece em seus filmes; a gente sempre vai ter uma parte do coração imenso de Ariano Suassuna em seus livros. Mas Dick Johnson não tem medo de mostrar o que a diretora não vai ter mais quando seu pai morrer. E eu acho que isso é o mais mágico desse filme: ao fazer isso, Kirsten Johnson encontra um jeito de fazer um pouco do seu pai viver para sempre — de capturar um pouco daquela vida, daquele espírito, justamente enquanto ele se esvai.
Ao encarar a morte de frente, Kirsten Johnson nos indica o que nos dá vida, o que nos faz amar. O modo como Dick adora o bolo de chocolate dos netos, a cadeira que ela leva para tudo o que é lado porque as sonecas do pai ficam mais e mais longas. É o que pode ser eternizado, é o que torna esse filme vivo. Não é a toa que ao final fica a dúvida se Richard morreu. E, para nós, isso não interessa. Um pouco dele vai estar sempre vivo, em sua filha, no que ela faz e no que ela registra, e no que ela nos faz ver.
É um filme extremamente pessoal tanto pra diretora, que entrega uma linda carta de amor ao seu pai e se prepara para perdê-lo; quanto para quem assiste, porque As Mortes de Dick Johnson captura exatamente essa nossa força interna de amar e de viver, e como ela costuma se confundir uma na outra. Kirsten Johnson imortaliza seu pai ao quebrar o tempo no meio, e permitir que ele viva ali, naquele espaço de memória, para sempre com ela. É um filme que abraça a morte e percebe aquilo que não morre.