I.
Kentucky Route Zero começa no fim.
Ou algo que parece ser um fim. Um caminhão estaciona na margem da interestadual no pôr-do-sol e seu motorista, Conway, pergunta por direções em um posto de gasolina. É a sua última entrega antes do antiquário que trabalha fechar as portas, mas o endereço é confuso e o pôr-do-sol o distraiu, ele comentou. É uma imagem que fica na memória: os últimos vestígios de um dia e de um trabalho.
Então é apropriado que, sete anos depois de eu jogar essa cena pela primeira vez, Kentucky Route Zero termine em algo que pareça um início. É manhã, e o sol finalmente irrompe no jogo de novo. O verde das árvores toma conta da tela do computador, depois do que pareceu ser uma noite perdida nas cavernas misteriosas do Kentucky. Não um começo de novas possibilidades ou de novas chances, mas um mais simples e mais real: o sol nasceu de novo, brilhando no reflexo das poças d’água de uma cidade inundada por uma terrível tempestade. Algumas coisas se perderam para sempre, mas outras continuam ali.
Mesmo assim, é estranho de pensar que não tem mais Kentucky Route Zero para esperar. Seu primeiro ato foi lançado em 2013, e desde então o tempo de desenvolvimento de cada um dos outros quatro atos aumentou exponencialmente. O segundo ato foi lançado alguns meses depois, mas o terceiro demorou um ano inteiro; o quarto apareceu só dois anos depois; e o último ato só chegou em janeiro de 2020, em uma atualização que une todos os atos com seus quatro interlúdios — pequenos experimentos de jogabilidade que exploram personagens secundários do jogo.
Eu escrevi sobre KRZ através dos anos aqui no Pão, e mesmo depois desses sete anos (e esses dez meses desde o lançamento do Ato V), eu ainda tenho dificuldade de expressar o que esse jogo me fez sentir.
Um pouco disso é porque Kentucky Route Zero é um jogo enganosamente simples de se explicar: é uma aventura de apontar-e-clicar, um dos gêneros fundamentais dos videogames modernos, em que você ajuda Conway a fazer sua última entrega. Você escolhe entre opções de diálogo e controla um caminhão para ir até os lugares que os personagens precisam ir, lugares feitos com formas geométricas simples e sem texturas.
Mas se tem uma coisa que KRZ não é, é simples. É um jogo rico e provocador, em que cada um de seus elementos se subvertem em um profundo questionamento do poder dos videogames como arte. Conforme o jogo vai passando, você tem menos controle de onde você guiará os personagens a seguir, até um ponto em que você está a mercê da correnteza. As opções de diálogo também se tornam cada vez mais profundas e significativas: elas não vão mudar a narrativa, mas ajudam você a compreender o que os personagens pensam ou sentem.
É um jogo repleto de hipertexto, que parece existir em sua própria simulação da internet. O cenário é o mesmo de Adventure, o primeiro jogo do gênero; os visuais parecem a evolução natural do clássico Another World. Personagens de Esperando Godot existem no universo do jogo, e assim por diante. Não é um jogo que requer o conhecimento prévio dessas obras para poder apreciá-las, mas que vai provocar o jogador a procurá-las e experimentá-las, e se deparar com um universo de arte computacional, poesia aleatória e muito absurdo. Dos filmes de Andrei Tarkovsky à um livro escrito por computador, Kentucky Route Zero é apaixonado pela arte que é difícil de definir.
II.
Kentucky Route Zero se passa em uma fatídica noite de verão. Você começa com Conway e seu cachorro naquele pôr-do-sol, na beira da estrada, mas logo ele conhecerá Shannon, uma técnica de TVs de tubo. Como Conway, Shannon também está vendo seu trabalho desaparecer (“Os novos modelos estão dando problemas para ela”). Juntos, os dois decidem encontrar o endereço incomum para a última entrega de Conway. Para isso, eles precisarão cruzar uma mítica Rota Zero.
A trupe cresce conforme vão se aventurando nessa Rota. Ezra é um garoto que se perdeu da sua família em uma noite na rodoviária, quando essa foi despejada da casa em que moravam. Junebug e Johnny são andróides que fugiram da servitude em uma mina e se transformaram em músicos nômades, “cada dia se especificando, cada dia se sentindo mais como eles mesmos”. Clara é uma tereminista que está longe da família enquanto eles passam por um momento difícil, e ela talvez não queira voltar. Reunidos, esse grupo de pessoas parece uma trupe de aventureiros — mas no mundo real chamamos eles por outro nome: sem-tetos.
É aí que a descrição de Kentucky Route Zero faz jus ao jogo: o mundo de KRZ é o de um realismo fantástico, onde ursos moram em um andar de um complexo empresarial; árvores têm folhas de fogo; e águias gigantes trabalham para a especulação imobiliária.
A Rota Zero fica nas profundezas da Caverna do Mamute, e é lá que Conway e Shannon conhecem comunidades esquecidas há muito tempo: radialistas de estações fracassadas; pessoas que perderam tudo há duas ou três crises financeiras; donos de restaurantes submarinos; e funcionários de repartições burocráticas tão específicas quanto barrocas; visionários esquecidos e andróides que, em una mistura de mofo e música, desenvolveram almas.
Kentucky Route Zero: Ato II, Cardboard Computer
III.
No início do segundo ato, Shannon — a primeira acompanhante que Conway encontra no caminho — se impressiona com o tamanho de uma caverna, onde o teto é de se perder de vista, tão grande que uma catedral se instalou lá. Ela pergunta para Conway se ele acha que eles estão dentro ou fora.
Você pode escolher três respostas para Conway: dentro, fora, ou ambos.
É o tipo de pergunta que Kentucky Route Zero gosta de fazer constantemente: qual percepção é real, essa ou aquela? Não existe uma resposta certa, nem um ponto de interpretação fixo. Esse é um jogo que une perspectivas de pessoas diferentes, que se conflitam e se complementam em uma visão muito mais completa do mundo. Não muda nada na história se você escolhe que Conway vai lembrar de uma história da sua juventude ou se ele vai esquecer de um momento da infância, mas vai mudar o jeito que o jogo sente.
Em um momento, você ouve um velho casal contando a história de como salvaram o restaurante que eles mantém, no meio do lago subterrâneo da caverna. Sam lembra que foi a necessidade que o inspirou a explorar uma nova caverna submarina, onde encontrou iguarias únicas. Ida lembra que foi a fome de dois aventureiros que a fez experimentar novas receitas. Qual das duas versões é real? Existe apenas uma verdade?
O mais mágico de Kentucky Route Zero é como essas histórias são contadas em segunda ou terceira mão pelas pessoas que conhecemos, e nossas escolhas são mais interessadas nas circunstâncias que um personagem está ouvindo. Essa história faz ele lembrar de um momento feliz do passado ou de um momento triste na manhã anterior?
As ramificações da jogabilidade vão ficando cada vez mais complexas e ricas conforme você segue ajudando a trupe de pessoas através dos cinco atos. Não porque o que você escolhe tem a chance de mudar o destino deles (não tem, porque esse jogo é uma tragédia), mas porque conforme KRZ aumenta o seu escopo, os pontos de vista vão ficando mais ricos. As vezes você vai poder escolher entre perguntas e vai precisar também escolher entre as respostas, as vezes você precisa escolher entre uma lembrança ou um arrependimento. As vezes você precisa escolher entre conhecer um lugar, mas vai acabar não conhecendo outro.
Você vai perder coisas em Kentucky Route Zero. Você pode não conhecer o protagonista de uma história contada por outro personagem; ou você pode perder a história, mas conhecer o protagonista. Não importa o que você vai se deparar, todas as coisas que você encontrou aconteceram — mas todas aquelas que você perdeu ou não encontrou também. O jogo não pune você por isso, suas escolhas levam à algumas histórias e personagens e momentos específicos, e outras vão ficar para trás. Quando você chega ao fim, você vê que todas as suas escolhas importaram, de fato, mas não na maneira que você espera.
Kentucky Route Zero: Act IV, Cardboard Computer
IV.
O mundo de KRZ é, como o nosso mundo avassalado pelo capitalismo tardio, implacável. Tecnologias obsoletas, como TVs de tubo, celulares-tijolo, rádios, e centrais telefônicas estão por todo o lugar. São tecnologias que não deslancharam, peças que pessoas nunca conseguiram se desfazer (por um motivo emocional ou não), ou coisas que o mundo definiu como desnecessário.
Grandes corporações tornam pessoas em fantasmas. Alguns reais, alguns metafóricos. Alguns assombram os lugares que foram tirados deles — suas casas, suas igrejas, seus trabalhos. Outros apenas persistem, vivendo cada dia em um lugar, em um trabalho, sem saber se vão continuar persistindo.
É um mundo onde dívidas são verdadeiros labirintos sem saída; ou para conseguir um trabalho você precisa vender a sua alma. É um mundo onde os mortos são usados como fermento para uísque, para aproveitar o custo-benefício de dividir o espaço de uma destilaria com um cemitério.
Mas também é um mundo que vive e respira arte, mesmo que ela e seus artistas vivam às margens. Os pais de Shannon morreram em uma tragédia dentro de uma mina graças ao descaso de uma dessas grandes corporações. Seus pais, também, eram cantores, e entoavam hinos do sindicalismo. São esses os hinos que despertaram Junebug e Johnny de sua servitude, que “especificaram” eles nas pessoas únicas que são hoje, que cantam as músicas que fazem Conway lembrar de sua juventude, de um amor que passou, e de uma vida que ele ao menos pode lembrar que teve. Onde computadores guardam histórias de amor que podem ser contadas, onde o eco de uma vida ainda ressoa nas paredes de uma parte da caverna.
Essa é uma jornada que expande, com dúzias de personagens em que cada um tem uma história para contar, um passado que os assombra e um presente que é incerto. E, ainda assim, é uma história de como essas pessoas conseguem se aproximar umas das outras, de se unir e de tentar criar algo novo, nem que seja para dar um breve respiro de volta à superfície.
Em uma das cenas mais emocionantes do jogo, nós acompanhamos os personagens para um bar deserto, onde Junebug e Johnny vão se apresentar. Você escolhe os versos da canção linha-por-linha. É um momento lindo que parece fazer o teto do bar flutuar para o espaço, abrindo espaço para as estrelas, enquanto você decide o destino da história de amor daquela canção. A ilusão dura um momento, mas ele é perfeito enquanto dura. Você está dentro ou você está fora quando ele acontece?
Kentucky Route Zero: Act III, Cardboard Computer
V.
Não era meu plano passar mais de seis meses sem atualizar o Pão com Mortadela. O plano original era fazer uma pausa em janeiro, deixar uns posts encaminhados, e voltar a postar em fevereiro. Não era meu plano, mas foi o que aconteceu.
Em meados de janeiro eu recebi o código pra baixar o último ato de Kentucky Route Zero, e o final — breve, e diferente de tudo o que o jogo tentou até ali — chegou, eu quebrei. É difícil de definir o quanto KRZ significou pra mim nesses últimos sete anos, e seu final termina um ciclo da minha vida.
Quando foi lançado, em janeiro de 2013, o primeiro ato do jogo era uma clara referência à crise financeira de 2008, com suas cicatrizes ainda ardendo nos EUA. Com o passar dos anos, Kentucky Route Zero não só refletia sobre 2008, mas também sobre a era de escuridão que passaríamos na segunda metade dos anos 2010. Foi cada vez mais difícil de distanciar a tempestade que avassala a comunidade subterrânea da Rota Zero com as crises financeiras desde então e com a ascensão da extrema direita ao poder. Eu vi não só a minha promessa de vida, mas de toda a comunidade que eu vivo, ruir. A gente percebeu que sonhos ficaram mais distantes, e o trabalho ficou mais pesado. Não ajudou nada que a gente envelheceu no meio disso tudo também.
Seria mentira se eu dissesse que Kentucky Route Zero termina com um final otimista. Nós presenciamos um velório e a desolação de uma cidade de funcionários de uma empresa que há muito tempo já deixou de suportar aquele lugar ou seus cidadãos. Alguns falam que vão embora, outros não sabem se tem lugar para onde ir. Mas todos são categóricos: seja lá o que for feito com aquele lugar, será construído sobre as vidas que eles tiveram, e as vidas daqueles que vieram antes. “Sob nossas solas estão os crânios daqueles que ficaram”. E, ainda assim, o final de Kentucky Route Zero se dá sob a luz do sol, e a entrega de Conway finalmente é realizada.
Nesses últimos sete anos eu conheci pessoas e perdi pessoas. Algumas se afastaram de mim e algumas eu me afastei. Nesses últimos sete anos, nem todos os meus planos deram certo. Alguns não terminaram ainda, outros eu desisti antes de terminar. Eu provavelmente esqueci de coisas que eu gostaria de lembrar, e eu lembro de coisas que eu preferia esquecer.
Eu penso em todas as histórias que eu ouvi nesse jogo durante os últimos anos. Eu também penso em todos aqueles momentos que eu perdi. Eu me surpreendo sobre como eu sou diferente do que eu era quando eu joguei esse jogo pela primeira vez. Eu me assusto quando lembro da promessa de vida que tinha antes. Eu lembro de algumas partes de quem eu era. Algumas delas eu sinto falta e gostaria de continuar sendo. Outras me envergonham, e eu preferiria esquecer.
Mas tudo isso é história. Todos nós fazemos parte dela, e nem tudo o que vai acontecer é importante, mas tudo acontece, e a gente vive tudo isso. Eu vou perder algumas coisas que eu queria, eu vou conseguir outras. Algumas pessoas que eu amo eu vou deixar de amar, e vou desapontar algumas que me amam. Mas eu vou lembrar de algumas dessas coisas quando o tempo passar.
E eu espero lembrar que, de alguma maneira misteriosa, alguém conseguiu comprender tudo isso em um jogo. E, por alguma sorte do acaso, eu estive vivo no momento em que ele existiu.