Esse texto pode conter detalhes da trama do curta-metragem Inabitável (2020, Matheus Farias e Enock Carvalho), então se ainda não assistiu pense duas vezes antes de ler.
No cinema brasileiro contemporâneo, tem se tornado comum essa estratégia de utilizar o fantástico como uma forma de “atacar” uma realidade que está o tempo todo no limite do absurdo, especialmente desde as cisões políticas e sociais ocorridas na última década. Essa constante impressão e percepção de uma realidade volátil, frágil, entregue às constantes reviravoltas e intersecções do aleatório, do arbitrário, acaba tendo esse efeito interessante sobre quem produz ficção no país, esses elementos fantásticos aparecem como uma tentativa assumidamente frágil de assumir o controle sobre toda uma subjetividade que escaparia por entre os dedos de uma narrativa que se detivesse ao real.
Em Inabitável existe um tensionamento muito interessante nesse sentido, temos essa narrativa que o tempo todo busca afetar uma percepção muito particular da realidade através desses elementos. O curta inicia com a mãe que procura a filha desaparecida, e logo gera uma certa comoção na vizinhança e entre as amigas das duas - essa reação que, por parte das outras personagens se esboça quase de maneira verborrágica, por parte da mãe se expressa de maneira muito contida, é quase como se fosse cotidiano para ela estar à procura da filha, ou como se desde sempre ela esperasse por esse dia em que Roberta simplesmente sumiria. Essa reação diversa que o sumiço dela gera em cada uma das personagens acaba por emprestar verossimilhança àquilo que o espectador já estava o tempo todo “pescando” no ar: estamos diante de um enredo que trata da condição do Brasil como um dos países mais mata pessoas LGBTQI+ no mundo, e o filme parece iniciar “expondo” essa realidade.
No momento em que esse contexto é evocado, enquanto a mãe e as amigas buscam pistas do paradeiro de Roberta em seu quarto, encontra-se um objeto “fantástico”, um amuleto luminoso que evidencia o poder da ligação entre Marilene e sua filha; entretanto, isso não é suficiente ainda para tirar a nossa atenção dessa realidade que assombra o sumiço de Roberta, e o frio na barriga segue até a cena em que Marilene vai até o IML fazer a identificação de um corpo que, segundo à análise dos legistas, pode ser o de sua filha - se a construção de todo o filme até então culminou nesse instante “dramático” de convergência, é aqui que o registro se mostra alheio a essa ideia que parece querer globalizar a narrativa, é aqui que se “ataca” essa realidade dos dados. O medo da morte diante do desaparecimento de uma mulher trans no Brasil se mostra nessa cena, em que Marilene não reconhece o corpo como sendo de sua filha, uma simples afetação dessa realidade aleatória e incontrolável que se coloca entre nós e a nossa leitura dos estímulos proporcionados pelo filme até aqui - não o índice que irá levar adiante a nossa narrativa.
É quase que um ato de recusa à esta realidade, muito simbólico através de sua ficcionalização, terminamos o curta com essa impressão; o filme contorna uma realidade para demonstrar como a sua leitura típica pode ser demonstrativa do próprio sintoma - o desaparecimento de uma mulher trans é deslocado completamente de um contexto de violência, embora o tempo todo tenhamos essa impressão, é um comentário sobre como acabamos normalizando uma realidade completamente permissiva à violação de direitos e liberdades das pessoas LGBTQI+ nosso país. Existe uma verdade colocada pelo filme que só pode ser acessada através da ficção, através desses elementos fantásticos e do que pode surgir de seu confronto com essa realidade.
Inabitável, dirigido por Matheus Farias e Enock Carvalho, integra a Mostra Competitiva de Curtas Brasileiros do 48° Festival de Cinema de Gramado e está disponível no Canal Brasil Play até hoje 20/09 às 20 horas. O 48° Festival de Cinema de Gramado começou no dia 17/09 e vai até o dia 26/09, com filmes disponíveis através do serviço de streaming oficial do Canal Brasil, e diversas outras atividades realizadas através das redes do festival.