A Rede Social é o filme da década

Um dos meus textos favoritos sobre cinema é o Missing the Target do Jonathan Rosenbaum. Nele, o crítico comenta sobre uma observação que um amigo dele fez, de que filmes podem ser janelas ou espelhos. Filmes como espelhos são aqueles que parecem ter o espectador como alvo: é feito para agradar uma audiência específica. Filmes sobre o heroísmo americano no campo de batalha geralmente são filmes-espelho: eles agradam homens brancos americanos que acreditam na supremacia do seu país. Filmes como janela são o oposto, são filmes que nos pedem pra estender a nossa empatia para outra compreensão de mundo. São aqueles filmes sobre como é ser uma pessoa vivendo em um determinado lugar e em determinada época. São pequenas máquinas do tempo.

Eu gosto desse texto porque eu acho que ele resume muito bem pra mim o que faz um grande filme. Um grande filme é aquele que é, ao mesmo tempo, um espelho e uma janela. É aquele que nos permite observar o mundo sobre outra perspectiva, e que nos permite aplicarmos a nossa visão sobre ele, e ele vai retribuir. São aqueles filmes especiais pra nós, que podemos ver dezenas de vezes com o passar dos anos, e sempre vamos pegar algo novo, parece que ele sempre vai ressignificar alguma coisa pra nós. Primeiro, porque os tempos mudam, e o significado do filme pode mudar. Segundo, porque a gente nunca vê o mesmo filme como a mesma pessoa. Querendo ou não, a gente tá sempre mudando também.

E nenhum filme nesses últimos anos consegue ser tão bem um espelho e uma janela como A Rede Social.


A Rede Social capturou a euforia perigosa do Vale do Silício

Eu não lembro de uma pessoa que não olhasse com suspeita pra ideia de um filme sobre a criação do Facebook. Mesmo tendo um diretor como David Fincher (de Seven: Os Sete Crimes Capitais e Zodíaco) e um roteirista como Aaron Sorkin (da série The West Wing), a ideia de um filme sobre a lavação de roupa suja de adolescentes privilegiados que criaram uma rede social não parecia uma ideia envolvente. E, se fosse, tinha tudo pra ser um filme que iria envelhecer no mês seguinte.

Ninguém parecia esperar que, quando o filme estreou no Festival de Nova York, a recepção seria tão positiva. A Rede Social se tornou um daqueles clássicos instantâneos que aconteceram poucas vezes nos anos seguintes1, onde o bafafá do festival se transformou em críticas estelares, excelente bilheteria e acabou liderou as premiações do ano — e fez tanto barulho ganhando tudo isso quanto perdendo o Oscar para O Discurso do Rei no ano seguinte.

O que A Rede Social conseguiu fazer, e que foi o motivo da surpresa pra todo mundo, foi observar a ironia do mito de criação da maior rede social do mundo. A história do Facebook é narrada através de flashbacks repletos de inconsistências entre os pontos de vista das pessoas que os contam — principalmente Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), Eduardo Saverin (Andrew Garfield) e os irmãos Winklevoss (Armie Hammer). Esses relatos são dados, na verdade, através de dois tribunais onde Zuckerberg está sendo processado simultaneamente, um pelos irmãos Winklevoss que alegavam que Zuckerberg roubou a ideia do Facebook deles; o outro por Saverin, até então seu melhor amigo, que acusava ter suas ações do Facebook roubadas por Zuckerberg e Peter Thiel2. Embora os flashbacks sejam a espinha dorsal na qual o filme inteiro se estrutura; é nesses tribunais que A Rede Social encontra sua força: na verdadeira tragédia grega de Zuckerberg, um jovem tão incapaz de se conectar significativamente com alguém na sua vida que acaba sozinho até mesmo na rede social que ele criou.

É um filme construído de forma impecável. Sua estrutura narrativa é dificílima de descrever em poucas linhas e, ainda assim, flui como poucos filmes conseguem. A Rede Social é impaciente, inquieto e frenético: as cenas todas possuem um impulso narrativo para a próxima cena, o espectador está sempre sendo bombardeado de nomes e informações. E, ainda assim, o filme não é corrido ou ininteligível. Ele só assume que você consegue acompanhar o ritmo no qual esses personagens têm — e a conversa de dez minutos que abre o filme, uma das melhores cenas que eu já vi, é a melhor preparação possível. É a melhor tradução que eu já vi para a euforia perigosa do Vale do Silício, um lugar que busca por inovação de forma violenta e impassível.

Tudo isso fez A Rede Social ser um reflexo perfeito da década anterior à qual o filme foi lançado. Em 2010, ele parecia resumir as frustrações sobre como a tecnologia nunca entregou o que prometeu, como as “reinvenções” que os jovens do Vale do Silício gostavam de anunciar eram muito mais fruto de sua grandiloquência e dos bolsos fundos de acionistas especuladores. Era um espelho perfeito para o fim da primeira década dos anos 2000, e uma janela fascinante para o ritmo de vida dos seus bilionários. É um filme temática e formalmente perfeito — e eu não fui o primeiro e nem o último a chamar ele de “Cidadão Kane da era digital”.


Dez anos depois, A Rede Social é a melhor definição que temos dos anos 2010

Um dos meus textos favoritos sobre A Rede Social é Generation Why, um lindo ensaio sobre os perigos de sermos transformados em meros dados em uma rede social para sermos traduzidos por anunciantes. O texto, publicado em 2010, ainda era um pressuposto — “se” o Facebook conseguisse atrair um número de usuários que representaria uma nação inteira era muito antes dos dois bilhões de usuários que o site tem agora —, mas ele foi preciso na catástrofe que o site acabou sendo para a sociedade nos anos seguintes: ao nos reduzirmos à meros dados e a um conjunto de fatores, um sistema grande o suficiente seria capaz de “achatar” a realidade em si, em transformá-la em 0 ou em 1 bem como a própria arquitetura de um computador. Ou você é ou você não é algo, ou você quer ou você não quer o produto que o anunciante vai exibir para você. O Facebook reduz o ser humano à esse conjunto de 0 e de 1, mas como muito do nosso mundo hoje é visto e definido através desse sistema, o Facebook é capaz de reduzir o mundo ao nosso redor também. Uma população em um formato só, mais fácil de ser compreendido e de ser arrematado pelos anunciantes que o comandam.

Eu revi A Rede Social várias vezes nos últimos anos. Eu revi ela no início do mês pra escrever esse post, e eu sempre me pego com mais um detalhe que o filme acertou em cheio. Quando eu vi o filme pela primeira vez, em 2010, eu fiquei impressionado com como ele era bom. Era uma história incrível pela ironia central do filme — do bilionário criador de um site de relacionamentos não conseguir se relacionar com ninguém.

Com o passar dos anos, porém, A Rede Social foi se tornando desconfortavelmente profético: é um filme que observa desde a masculinidade tóxica que impera pela internet, e que levou Zuckerberg à criar o FaceMash quando recebeu um pé-na-bunda da então namorada (a excelente Rooney Mara) até o #MeToo em uma cena emblemática sobre a internet dos anos 2010. A Rede Social sempre foi um filme cínico sobre a história que tá contando e sobre o Facebook em si, mas a maneira que o filme conseguiu observar como a internet se tornaria um parquinho de anunciantes e de um site que ganharia dinheiro por incentivar que seus usuários expusessem suas frustrações e seu ódio. Isso porque A Rede Social observa que esses foram os elementos que formaram o próprio site em primeiro lugar.

A tragédia, que em 2010 parecia ser a de Zuckerberg, se revelou à das pessoas à sua volta que hoje são 2,5 bilhões. É esse o segredo de A Rede Social e como ele nunca envelheceu — e talvez nunca envelhecerá. Seja lá o que acontecer com o Facebook, seja lá a forma que a internet vai assumir daqui a dois, cinco ou dez anos, A Rede Social vai prevalecer. Não é só a história de um site, de uma ferramenta ou de uma amizade, mas uma observação do que nos move e do que nos consome — a inveja, a traição e a ambição que criaram o Facebook são tão antigas quanto contemporâneas; tão essenciais para sua criação quanto para as forças que se alimentaram dele para prosperar na última década.

No fim das contas, o filme é sempre uma janela e sempre um espelho. Um mito de criação e uma tragédia de desolação tão antigas quanto a humanidade em si, tão contemporâneas quanto a manchete que vamos ler na Folha amanhã. Nenhum filme conseguiu traduzir esses mitos para a era digital como A Rede Social fez. É o que o faz único e ao mesmo tempo natural. É o fruto e a comprovação da nossa experiência humana.

  1. Eu só consigo pensar em dois filmes que geraram tanto barulho e excitação nos anos 2010: Mad Max: Estrada da Fúria em 2015 e Parasita em 2019. 

  2. De todas as profecias de A Rede Social, a mais inesperada foi a de enquadrar Thiel, como o bilionário perigosamente mesquinho que descobrimos que ele é