Poucos filmes entendem a morte tão bem quanto A Rota Selvagem

Esse texto contém detalhes sobre a trama de A Rota Selvagem.


Depois que a Vivi morreu em agosto do ano passado, eu desenvolvi uma aversão à filmes de animais — principalmente se nesses filmes a morte do animal supostamente significa algo que a pessoa precisa aprender. Eu fiquei meio triste com isso, é claro. Eu gosto de vários filmes em que animais desempenham um papel importante na narrativa, como Bambi e Wendy & Lucy, mas as vezes esses filmes mexem muito com meu emocional a ponto de assistir eles ser quase insuportável porque eu acabo me preocupando demais com o destino do animal. Sem mentira, eu não vejo mais um filme sem acessar o Does The Dog Die.

Um dos meus filmes favoritos dos últimos anos foi A Rota Selvagem, um filme de cavalo. Não só isso, mas um filme de cavalo em que o cavalo morre. Eu pensei que minha nova aversão ia me impedir de rever ele por um bom tempo, mas conforme o primeiro ano sem a Vivi vai se completando — vai fazer um ano no próximo dia 27 —, eu comecei a pensar em como eu reagiria à esse filme de novo, afinal é uma parte do processo você se reeducar a sentir certas coisas sob determinadas circunstâncias. Eu ia ficar deprimido? Com raiva? Eu decidi assistir ele no domingo pra descobrir.

Eu chorei horrores quando vi esse filme pela primeira vez, em maio de 2018. É um filme bem triste, que conta a história de Charley, um garoto que vive com o restinho do dinheiro que seu pai recebe dos bicos que trabalha. Um dia seu pai sofre um acidente, e a responsabilidade de prover decai pro filho, que encontra emprego em um estábulo de cavalos de corrida. Charley, um corredor, conhece Pete, um cavalo de corridas curtas no final da carreira, e cria uma afinidade com o bicho. Depois que uma tragédia acomete o pai, e vendo que Pete parou de vencer as corridas que seu dono Del — um excelente Steve Bucemi — o coloca (o que, pra um cavalo de corrida só significa uma coisa), Charley decide evitar uma segunda perda na sua vida e foge com o cavalo, atravessando árido estado do Oregon em busca do único vestígio de família que lhe resta.

A Rota Selvagem é demarcado por duas mortes: a primeira do pai de Charley e a segunda por Pete. Nas duas, as circunstâncias nas quais Charley vive o impede de viver o luto. Na primeira, Charley precisa encontrar um lugar pra viver; na segunda, ele precisa seguir em frente pra sobreviver. Embora Charley não veja a morte de seu pai, ele presencia de forma traumática a forma que Pete morre — assustado, o cavalo sai correndo pela estrada até ser atropelado por um carro. Dirigido por Andrew Haigh (45 Anos, Weekend), um dos melhores diretores hoje em dia, o filme não esconde o momento. Como nas melhores cenas dos filmes anteriores de Haigh, o acidente que provoca a morte de Pete é de uma construção de imagem exímia, que consegue traduzir a intensidade do medo de Charley, a brutalidade do acidente e o breve silêncio que acontece depois da morte, tudo em meio minuto.

Não se engane, eu chorei ainda mais dessa vez assistindo essa cena. Mas o momento que mais me fez emocionou veio bem antes no filme, quando Charley conhece Pete. Depois da primeira corrida que o garoto trabalha para Del, Charley precisa dormir na caçamba da caminhonete do chefe. Fascinado pelas estrelas, Charley não consegue fechar os olhos — ele olha para o lado e Pete também não dorme. Os dois trocam um breve momento de paz juntos. Em um filme de Andrew Haigh, momentos assim valem uma vida inteira.

Os filmes de Andrew Haigh tem uma qualidade muito especial, eu acho, de nos fazer sentir que só estamos acompanhando um breve momento na vida de pessoas que existem antes da história começar e terminam muito depois dos créditos finais. Ele é um exímio diretor de atores, mas seu maior forte é na decupagem (o processo de decidir como serão compostos os quadros de um filme), fazendo com que cada segundo de imagem não seja desperdiçado, que indique o tempo passando tanto dentro quanto fora da tela. Em A Rota Selvagem, ele faz isso pontuando os grandes planos vazios do deserto que Charley e Pete cruza com breves closes no rosto do garoto, nos lembrando que o protagonista é uma criança. Esses closes também servem para nos lembrar do que conhecemos de Charley — seu apetite grande, sua voz gentil, seu corpo atrapalhado com o próprio tamanho.

É esse interesse do Haigh em observar ações completas — ao invés de cortar pro mais interessante da ação, o diretor prefere deixar elas acontecerem lentamente dentro do quadro do filme, desembocando umas nas outras com naturalidade, quase gentileza — que torna a realização final de A Rota Selvagem tão dolorosa de assistir, mas também que me fez apreciar esse filme ainda mais. Diferente de outros filmes que fazem crianças aprender a lidar com a morte através da perda de um animal, Charley não pode, nem consegue, tirar ensinamento nenhum com a morte de Pete. Pete se choca com um carro, morre, e Charley precisa sair correndo pra longe dali.

45 Anos, o filme mais aclamado de Andrew Haigh, termina em um plano que gela a espinha: durante a dança celebrando o aniversário de casamento com seu marido, Kate (Charlotte Rampling) olha ao redor do salão, cheio dos seus convidados cantando e dançando, realizando que talvez nada na sua vida seja verdade. É um final memorável, porque a expressão de Rampling vai além do que é possível de descrever, e Haigh decide só observar enquanto o rosto da atriz vai de um sorriso ao mais profundo desespero. Como em A Rota Selvagem, a gente pode não conseguir descrever o que Kate sente, mas nós entendemos completamente, porque passamos as últimas horas acompanhando ela e o desenrolar de seu dia com a mesma dedicação aos detalhes.

Em A Rota Selvagem, Haigh termina o filme de uma maneira ligeiramente semelhante. Acompanhamos Charley, já abrigado na casa de sua tia, em uma de suas corridas matutinas. Charley para e olha para trás, observando os arredores, como se procurasse por algo que sabe que não está ali. “Os pesadelos talvez não desaparecerão completamente”, a tia Margie explica pra ele no final do filme, “mas você vai fazer memórias boas”. É reconfortante, mas só até certo ponto, e a expressão de Charley no final compreende isso. A Rota Selvagem entende a dor que é perder alguém que se ama, porque é uma perda irreparável. Nada vai substituir aquele amor. Aquela falta vai estar sempre ali, logo atrás dele. É pra eela que Charley olha no plano final. Ela está ali, em todo o lugar, como uma lembrança mas também como um tijolo em seu bolso. É o que a gente ganha em troca quando a gente perde.