Uma das coisas mais bacanas nos festivais de cinema é aquela sensação única de que você tem filme demais pra assistir em pouco tempo. Um festival de cinema é um espaço que celebra esse tipo de exaustão: é um pouco do cinema de várias partes do mundo, e você precisa decidir o que assistir. Você quer descobrir algo novo, quer assistir o filme mais novo de um diretor que você gosta?
Eu fiquei feliz de perceber que, de certa forma, o festival de curta-metragens do Kinoforum conseguiu trazer esse sentimento pra sua versão online. Não é a experiência completa, claro. Parte desse mar de possibilidades e experiências de um festival de cinema é descobrir pessoas que veem os mesmos filmes de formas distintas, ouvir os comentários dos colegas de sala na saída da sessão. Mas o Kinoforum trouxe uma quantidade gigante de curtas-metragens pras suas várias mostras espalhadas pela última semana, e eu me pegava explorando a programação todos os dias pra encontrar um filme pra assistir a seguir.
A ideia é a seguinte: até quarta, as mostras tem sessões diárias, que são liberadas às 19h e ficam no site do festival por 24 horas. A partir do dia 27, todos os filmes vão ficar liberados até o fim do mês. É muito filme, no bom sentido. Tem muita coisa boa pra assistir, então nos próximos dias o Guilherme, a Tainara e o Erê vão postar seus textos com suas impressões das mostras que cada um escolheu pra se dedicar. Eu me aventurei um pouco em todas, assistindo um filme aqui na mostra nacional, ali nos experimentais, acolá na mostra latina, mas me dediquei a assistir todos os filmes da Mostra Internacional1.
Um Mundo Mais Humano
A curadoria da mostra internacional é excelente, agrupando os filmes em temáticas semelhantes por dia, permitindo relações de obras vindas de cantos e visões distintas, como Ainda em Funcionamento (Still Working, Suíça) de Julietta Korbel e Padrões Distópicos (Distopic Patterns, Bélgica) de Isabelle Nouzha, que veem o hoje como o fim do mundo do passado — o que nos fazem questionar qual vai ser o nosso fim do mundo a seguir. Já em outros casos, as relações são muito mais difíceis de definir, como em Invisíveis (Kaunapawa, Namíbia) de Joel Haikali e Uma Estudante (A Student, Coréia do Sul) de Mi-ji Lee, e parte da diversão é se abrir como espectador o suficiente pra poder enxergar o que os curadores estavam propondo ao unir esses dois filmes.
Claro que, como em qualquer seleção dessas, há seus altos e baixos. A Mostra Internacional acerta muito mais quando dá voz à diretores que estão começando a formar suas vozes ou explorando algo novo, o que torna a inclusão de filmes de diretores mais conhecidos como Jonathan Glazer (A Queda, que também está disponível no acervo do MUBI) e Yorgos Lanthimos (Nimic) menos interessantes, porque tentam ser versões mais resumidas de coisas que exploraram muito melhor em algum filme anterior. Também tem o fato de que, no terceiro dia, a mostra tentou se reduzir demais ao momento que a gente vive, trazendo filmes feitos durante o isolamento social ao redor do mundo, o que faz a justaposição desses filmes bem menos interessantes do que nos outros dias, que permite que os filmes conversem com o nosso agora de forma mais livre.
O experimento mais interessante pra mim foi o excelente Um Mundo Mais Humano (A More Human World, Nova Zelândia) de Gavin Hipkins, exibido já no primeiro dia, uma espécie de filme diário do filho sobre o pai, onde as imagens que o pai captou em uma exposição no auge do otimismo da era atômica na Europa, cerca de trinta anos antes da explosão de Tchernóbil, faz ele considerar o futuro que o pai imaginou para o filho. É um retrato curto, mas despedaçador de como o tempo lava a esperança da humanidade.
Catiorros
O pessimismo do primeiro dia da Mostra nunca é pesado demais. Um Mundo Mais Humano ainda vê aquele futuro imaginado no coração do filho, por exemplo; e a necessidade de conexão é central no cenário pós-apocalíptico do ótimo Ainda em Funcionamento. Mas a Mostra definitivamente vai abrindo seu horizonte otimista com o passar dos dias. Já no segundo dia, é a estranheza dos pequenos momentos que o dia-a-dia traz, como charmoso Catiorros (de Halima Ouardiri, do Marrocos), que observa a organização política dos cachorros em um abrigo na hora da comida; ou no piquenique de Fim de Semana (dirigido por Ario Motevaghe, do Irã), com uma boa lembrança de que a “normalidade” do nosso cotidiano antes da pandemia começar também reservava uma boa dose de desentendimento. A partir daí, a seleção internacional passa pelo sobrenatural, com o interessante E Daí Se O Rebanho Vai Morrer?, de Sofia Aloui (França/Marrocos); à contos familiares, como a belíssima animação Ele Não Consegue Viver Sem O Cosmos de Konstantin Bronzit (Rússia).
Mas o destino é claramente o excelente programa de hoje, com quatro dos cinco filmes que valem a pena a experiência. Algo Para Lembrar (de Niki Lindroth von Bahr, Suécia) é de partir o coração, e A Pequena Alma (de Barbara Rupik, Polônia) é de revirar o estômago, mas ambos olham pros nossos arredores — os animais no primeiro, a decomposição no segundo — para enxergar a nossa capacidade de sentir algo pelo próximo. A seleção do dia termina, porém, com os melhores filmes desde o primeiro dia da programação, com os belíssimos Invisíveis e Uma Estudante. O primeiro é uma jornada nos desertos da Namíbia, o segundo um pequeno conto moral nos arredores de Seoul, onde pessoas se deparam com obstáculos aparentemente intransponíveis — a morte em um, a passagem geracional em outro. Se a mostra abriu os trabalhos com a distância que a humanidade assumiu do próprio mundo à ponto de deixá-lo morrer; hoje ela fez o caminho de volta — com filmes onde não importa o quanto a gente se afaste, a gente ainda tá no meio de tudo isso. Às vezes esse tudo é assustador, como no curta polonês, mas ele sempre vai estar por aí. É algo bom de lembrar quando a gente se sente distante de tudo por tanto tempo.
-
Para constar, a mostra internacional ainda não acabou. Eu ainda não vi os filmes de quarta-feira, então podem ter coisas maravilhosas nesse dia que não vou cobrir aqui. ↩