Sobre felicidade

No início dessa semana um amigo meu desabafou como ele se sentia mal por estar feliz em tempos como esses, em que o povo precisa ir à rua em meio à maior pandemia do último século para lutar contra o fascismo, para defender sua comunidade contra o racismo estrutural que quer destruí-la e apagá-la da história por centenas de anos (e que já se provou eficaz em fazer isso). Eu passei o resto da semana pensando nisso, porque é um desabafo tão forte e tão honesto pra se ter. As coisas não estão indo bem, como é que a gente encontra motivos pra estar feliz no meio disso?

Teve um momento da minha vida que eu queria contar histórias. Eu me achava um bom contador de histórias, inclusive. Eram histórias sobre pessoas que não conseguiam conversar ou pessoas que não conseguiam encontrar um rumo pra vida (oi!) e, lendo elas hoje em dia, eu acho tudo insuportável. Nas palavras de uma pessoa muito mais inteligente que eu, são histórias desprovidas de charme. Todas elas são extremamente tristes, com pessoas perdidas em sua tristeza e sem qualquer perspectiva. Eu estava desesperado em explorar o fundo do poço, de ver como é não conseguir se expressar.

Deixa eu te contar algo que eu só aprendi quando desisti de escrever ficção: quando a gente quer explorar a escuridão, a gente precisa ter um ponto de luz, senão a gente não consegue enxergar nada. Isso vale pra vida real — leve uma lanterna quando for explorar uma caverna! —, mas também vale pra narrativa: é inútil tatear a tristeza de uma pessoa, se você não oferece ao seu leitor uma referência do que é a felicidade. Essa é uma regra que vale de Hamlet à John Wick. A gente só entende a dor, a tragédia do que presenciamos porque entendemos o que é a felicidade, o que foi perdido.

Eu aprendi isso quando assisti Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk, 2018). Dirigido por Barry Jenkins, adaptado de um romance de James Baldwin1, o filme conta a história do amor entre Tish e Fonny no início dos anos 1970. Tish e Fonny se conhecem desde sempre, mas faz pouco tempo que os dois perceberam que estavam apaixonados. Eles querem alugar um apartamento, mas nenhum proprietário em Nova York aluga apartamentos para negros. Um dia eles encontram um lugar, e decidem fazer uma janta para celebrar. No mercadinho, Tish é assediada por um homem. Fonny o confronta, mas um policial branco tenta prendê-lo por agressão. A dona da loja impede, chamando o policial de racista. O policial vai embora, mas a amargura de “ter perdido” para Fonny o faz voltar, dias depois para prendê-lo com uma acusação de estupro.

O filme narra, então, a luta de Tish e sua família em provar a inocência de Fonny; enquanto Tish também descobre que está grávida. A narrativa do filme progride de forma não linear, e esse é o início. Tish, sozinha, descobre que está grávida, e precisa contar para a mãe. O momento é carregado de tensão, mas o sorriso de Sharon quando a filha lhe dá a notícia é que dá o pontapé no filme. Essa é uma história de uma família, e de uma comunidade, lutando por um mínimo de justiça e dignidade, e cada momento que permita a união e o amor entre eles deve ser celebrado.

Todas as qualidades do filme anterior de Barry Jenkins, Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016) estão de volta, mais maduras, em Se a Rua Beale Falasse. Esse é um filme de um grande diretor, e a visão expressionista de Jenkins — com imagens ultra-coloridas e closes frontais dos rostos de seus personagens, isolados do tempo como se fossem sonhos — são usados para pontuar a história triste que ele narra. O diretor é detalhista, e a forma não-linear que Se a Rua Beale… possui permite que ele navegue pelos apartamentos da família de Tish e de Fonny com aquela liberdade de espaço e tempo que as memórias têm: ficam na nossa mente o azulejo do banheiro em que as crianças tomam banho na banheira, brincando com a espuma, o barulho dos capôs dos carros da rua em que eles brincavam, ou a forma como os olhos de Tish refletem a vidraça colorida do apartamento do namorado à noite.

São breves lampejos de beleza em meio à uma história triste e furiosa sobre a injustiça e a impunidade da violência contra a população negra dos Estados Unidos. Ela é bem demarcada e bem contextualizada — os apartamentos dos personagens do filme são aconchegantes, mas também são pequenos; a rua que eles moram é linda com o farfalhar das folhas avermelhadas no outono; mas ela existe na sombra de uma linha de trem, e o barulho é constante.

Mas ainda assim é lindo, e Tish e Fonny encontram felicidade nesses lugares: como é lindo se apaixonar, como as vezes seus pais reagem à uma grande notícia da melhor forma possível, ou como a gente sai na rua exatamente no fim do dia, e aquela primeira rajada da brisa fria da noite bate no nosso rosto. É glorioso, e Jenkins acentua esses breves momentos para nos lembrar de tudo o que o racismo interrompe e arranca do mundo. Como é trágico que algo lindo não possa existir.

Mesmo assim, são esses os momentos que Tish lembra pra ganhar forças e seguir em frente. Pra ir no tribunal e fazer sua parte. Pra dar à luz ao filho do amor que existe. A tragédia, Se a Rua Beale Falasse parece indicar, não é que Tish e Fonny estão separados, como as histórias de amor tendem a retratar. Mas porque há uma força que as impede de ficar juntos. Essa é a tragédia.

A felicidade é tão breve e passageira, e nos alcança sempre acompanhada de algum outro sentimento — uma pitada de saudade, ou talvez de medo — que eu não sei se ela é capaz de nos cegar para a tragédia. Ao contrário, eu acho que ela nos ajuda a enxergar melhor. A fazer sentido do caos, a nos lembrar do que nos move. Ela nos dá perspectiva e nos dá esperança, e batalhar para que mais pessoas possam sentir algo assim vale a pena.


  1. Eu li o livro depois de ver o filme, mas é incrível e eu recomendo muito (os dois, vai nos dois tranquilo), mas como eu não sei muito comentar sobre literatura eu vou tentar ficar só no filme, que vou saber explicar meu ponto melhor.