Eu me lembro do dia que o meu pai, em 1998, trouxe um computador pra casa. Eu era jovem demais pra entender o que aquela máquina fazia ou o como ela fazia o que ela fazia, mas eu lembro que, já naquele dia, eu tinha um fascínio por ela. Eu nasci na primeira metade dos anos noventa, e vivi o fim da minha infância e o início da minha adolescência nos anos 2000.
Eu me lembro como era comum computadores não funcionarem conectados à internet, e eu lembro como, quando a gente finalmente teve acesso à internet, era algo quase ritualístico. A gente só podia se conectar à ela na calada da noite e a gente não fazia ideia de como ela funcionava. Era como se a gente entrasse em uma grande biblioteca na calada da noite e fosse, só com uma lanterna, explorar os corredores dela: era um pouco assustador, um pouco mágico. A internet era um lugar estranho onde pessoas estranhas conversavam na calada da noite sobre seus hobbies, iluminadas só pelo brilho das suas telas de computadores. Eu lembro passar as madrugadas de sábado conversando com meus colegas nela, ou procurando códigos pra GTA em fóruns que davam a impressão que, se você clicasse em alguma coisa fora do comum, seu computador podia muito bem tomar vida própria. Essa sensação misteriosa da internet tornava ela ao mesmo tempo íntima e distante. A gente podia expôr uma parte de nós que nunca revelamos a ninguém através dela e tínhamos a segurança de que, quando desligássemos o computador antes do sol raiar, tudo ia desaparecer na noite seguinte.
Eu lembrei de tudo isso quando eu assisti A Vastidão da Noite (The Vast of Night, 2020) há algumas semanas. É um filme que se passa No Passado™, não existe uma data específica mas sabemos que os soldados que voltaram da II Guerra ainda zanzam por aí procurando emprego e que telefones ainda são operados por telefonistas. Não tem nada nem parecido com a internet nesse filme, mas ele traduz muito bem aquele sentimento do desconhecido e do mágico que eu sentia no final dos anos 90 e no início dos 2000.
A Vastidão da Noite se passa nessa época desconhecida do passado, onde Fay — uma garota que trabalha como telefonista em uma pequena cidade no interior dos EUA — ouve um barulho estranho em uma das suas conexões, e comunica Everett — um jovem que sonha em ser um grande radialista, mas por enquanto faz o programa noturno da estação de rádio municipal. Fay liga para Everett no meio do seu programa, e pede para ele ajudar a identificar o som estranho que ela está escutando. Everett (um geek interessado pela parafernália audiovisual inovadora que começou a surgir no pós-Guerra) não consegue evitar a sedução de descobrir a origem de um som tão incomum, e pergunta para seus ouvintes sobre pistas do que pode ser. Quase todo o mundo da pequena cidade está no jogo de basquete que está acontecendo naquela noite, mas Everett e Fay recebem uma ligação.
É aí que o suspense no centro de A Vastidão da Noite começa a girar, e quando o filme mostra sua abordagem maravilhosa de criar ficção científica. A Vastidão da Noite é composto por planos longos e silenciosos que são típicos de uma noite de verão pra quem vive em uma cidade pequena: dão a impressão de que a noite pode durar pra sempre, e que tudo pode acontecer porque muito pouco está acontecendo. Quando o primeiro telefonema chega, o filme não tem pressa nenhuma em nos mostrar o que a pessoa está contando. Ele está muito mais interessado em ouvir como a pessoa conta.
Esse é o truque que acabou me enfeitiçando enquanto assisti A Vastidão da Noite. Visivelmente uma produção de baixo orçamento, que não poderia contar com efeitos visuais muito caros que o gênero costuma demandar, o filme abraça essa limitação como parte fundamental da sua essência. Ao invés de ação ou conflito, A Vastidão da Noite é composto completamente por uma descoberta que se revela lentamente através de várias histórias que as pessoas contam para Everett e Fay. O filme navega por essas histórias com becos sem-saída e momentos que se desdobram em memórias, mas ele observa como nossos personagens reagem ao que é dito. Isso tudo é verdade? Isso tudo é mentira?
A noite é escura demais para termos certeza do que acontece nela, e A Vastidão da Noite usa esse curto espaço de tempo — o filme se passa durante a partida do jogo de basquete — para encher o ar noturno de possibilidades, criando uma sensação de maravilha e descoberta que me lembrou de E.T., um filme de ficção científica onde a mágica mais interessante não era o alienígena que dá nome ao filme, mas sim a relação entre ele e as crianças que cuidam dele.
Como no filme de Spielberg, o misterioso está entre os personagens, como um alimenta os sonhos e os medos do outro durante a noite, e como eles reagem às histórias que estão sendo contadas a eles. É um truque de mágica difícil de ser quebrado porque, para funcionar, ele precisa encher o espectador de possibilidades. As histórias são contadas em A Vastidão da Noite através de telefones e gravadores, por meios que tornam difícil de descobrir o todo. É como explorar uma biblioteca com uma lanterna, como conversar com seus amigos até altas horas da calada da noite, seja ao redor de uma fogueira de acampamento ou na frente do computador nos anos 90. Tudo ao redor de nós é um mistério cheio de possibilidades. No meio dessa noite, há uma pessoa contando uma história para outra — no meio do desconhecido, aí está algo que faz sentido.