Como todo o mundo, no meio do ano passado eu me peguei no meio do furacão que era a segunda temporada de Fleabag. A primeira temporada da série inglesa sobre uma mulher tentando levar a vida em meio a um colapso familiar, sexual e profissional é engraçada pra cacete desde o primeiro episódio, com a Fleabag parando a ação para comentários rápidos, muitas vezes sarcásticos, sobre o que está acontecendo ao redor dela. Mas quando Fleabag voltou com tudo, ano passado, ela jogou pro alto todas as regras que tinha criado na primeira temporada e, no caminho, partiu meu coração.
É fácil descrever o que acontece na segunda temporada de Fleabag, mas caramba se é difícil de descrever o que ela te faz sentir.
As duas temporadas de Fleabag acompanham a personagem principal (a própria criadora da série, Phoebe Waller-Bridge) em momentos especialmente estressantes. Na primeira, acompanhamos ela nas semanas prestes a perder o aluguel do café que ela montou com sua melhor amiga, que morreu e cujo luto abate Fleabag constantemente. Pra ajudar, ela não tem uma boa relação com a madrasta que é cada vez mais central na vida do seu pai, e sua irmã Claire está envolvida em um casamento terrível.
A segunda temporada acontece às vésperas do casamento de seu pai com a madrasta, o que reaproxima Fleabag de sua família depois de um isolamento de um ano. O café vai bem, sua relação com as memórias da sua amiga são mais saudáveis, mas Fleabag se sente cada vez mais sozinha e em dúvida sobre o rumo que sua vida está levando.
Fleabag é, basicamente, todo mundo no final dos anos 2010, mas também é somente ela mesma: Phoebe Waller-Bridge criou uma personagem tão específica e atua com tanta precisão na entrega dessa personagem que, embora a gente compartilhe muitas das frustrações e medos da personagem, é impossível não vê-la como uma amiga. Fleabag domina esse jogo dando às quebras da quarta-parede um duplo sentido: não só preenchem a série de meta-comentários engraçadíssimos, mas também nos tornam testemunhas das reações de Fleabag. Nós somos os únicos que realmente entendemos ela.
Até que chega o padre. Muito já se escreveu sobre o porquê do padre de Fleabag ter sido o tsunami que foi. Andrew Scott tá no ápice do seu talento com um papel igualmente no auge de uma roteirista. Ele escuta Fleabag e entende suas frustrações como ninguém ao redor dela. Ele não se aproxima dela porque ela é uma fodida que precisa de ajuda, como ela acreditava com os homens que se aproximavam dela na primeira temporada. Ele gosta de Fleabag porque ela é como ele: alguém fodido das ideias, querendo saber como viver melhor, e que enxerga nela alguém que pode carregar essas frustrações junto. Ele nos vê, ou ao menos sabe que estamos aqui, do outro lado da TV, assistindo. É algo que ninguém além de Fleabag sabe.
Ele também é o fruto proibido, e se tem uma coisa que a Fleabag gosta é um desafio.
Quando eu vi a segunda temporada de Fleabag pela primeira vez ano passado, o final despedaçador bateu forte: depois de uma noite em que Fleabag e o padre finalmente transam, de dias se aproximando e sendo tentados um pelo outro, os dois se sentam no ponto de ônibus depois do casamento do pai e da madrasta. É lá que o padre confirma para Fleabag que ele a ama tanto quanto ela o ama, mas que ele não pode ficar com ela.
Esse finalzinho partiu meu coração pela primeira vez nessa cena
FLEABAG: Eu te amo.
PADRE: Vai passar.
Partiu meu coração porque a entrega é sublime. Quando o padre fala isso, os dois se olham por um segundo a mais. Eles sabem que é mentira. O amor que eles vão sentir pode mudar, com o tempo. Mas ele vai continuar ali, entre eles.
Então o padre vai embora, e Fleabag, como toda ferrada nessa vida, vê que seu ônibus foi cancelado. Não só levou um fora, vai ter que voltar a pé pra casa. A câmera segue, mas Fleabag para, olha pra trás e diz que não. A gente fica pra trás, ela dá uma última olhada e acena, timidamente. Fleabag segue em frente.
É quando a série parte o meu coração, pra valer.
Eu revi a temporada várias vezes depois disso, porque o efeito desse final em mim foi surreal. Como foi que Fleabag me afetou tanto assim? O que ela faz de diferente de outras comédias pra me ter me deixado tão desolado?
A resposta está no truque. Fleabag é engraçada desde o início, vale a pena dizer, mas a primeira temporada tem um quê do que eu chamo de fascínio de uma temporada — um conceito bom o suficiente pra levar os seis episódios, mas que podem arruinar uma série se ela seguir em frente. É algo que Phoebe Waller-Bridge parecia saber também. Nos anos seguintes ao lançamento do primeiro volume da série, em 2016, ela comentava que os seis primeiros episódios de Fleabag era tudo o que ela tinha pra personagem.
Quando a série reapareceu ano passado, então, era porque Waller-Bridge tinha encontrado um jeito de levar ela pra frente sem que o macete — a quebra frequente da quarta parede — virasse um problema (Os Normais conseguiu porque o casal vivia quebrando as próprias regras que tinham em relação à isso). Se passando um ano depois dos acontecimentos da primeira temporada, Fleabag nos chama de volta em um momento estressante.
O relacionamento de Fleabag conosco, suas testemunhas, não passava muito mais do que um truque de comédia na primeira temporada. É muito engraçado, é claro, mas é uma relação imóvel. Quando Fleabag volta, na segunda temporada, ela demarca um novo crescimento emocional para a personagem. Fleabag usa seu público como válvulas de escape, muletas longe da realidade onde ela pode fazer graça da vida dela, varrendo a sujeira pra baixo do tapete.
Tudo muda quando o padre chega. Ele entende o que ela está fazendo — é algo tão genial que quando ele olha pra nós, a TV parece que vai explodir —, e oferece algo melhor pra Fleabag: uma amizade verdadeira, quem sabe uma paixão, com alguém que quer saber o que ela pensa, que quer entender seus sentimentos. É algo que ela não tinha desde a morte da sua melhor amiga, muito antes da série começar.
A maioria das comédias românticas poderia parar aí, nos fazendo entender porque Fleabag se apaixona pelo padre, e porque é doloroso quando eles não ficam juntos. Mas Fleabag não está só desenvolvendo a relação dos dois com isso. Está explorando a natureza da relação entre Fleabag e nós — e nos colocando mais e mais de escanteio. Em um episódio ela chega a correr de nós, com vergonha do que fez. Mas ela nunca corre do padre.
Eu demoro pra entender as coisas, e talvez seja por isso que eu precisei rever essa série muitas vezes pra entender o que estava acontecendo. Fleabag estava terminando comigo. Estava me mostrando que nossa relação era insuficiente, que ela não precisava mais dessa válvula de escape, dessa muleta emocional. Que agora ela tinha a chance, ou a vontade, de enfrentar as coisas como elas são. Ela olha com carinho para nós uma última vez, e então ela segue em frente. A gente fica feliz por ela, é claro, e isso significa que não vamos nos ver de novo.
É uma história de amor, diz a Fleabag bem no início, e a gente faz parte dela também.