Uma vez eu vi um relógio de sol que me marcou muito. Eu sempre acho eles fascinantes — foram tão importantes pra humanidade e agora estão lá, esquecidos e em desuso, mas continuam fazendo o que sempre fizeram por centenas de anos. Sabe, relógios de sol são lugares, às vezes estão em praças de cidades muito antigas, as vezes estão esquecidos no meio do mato, em um lugar que já foi importante pra alguém, mas que agora não é mais. Eles são imponentes na sua permanência. Eles não só descrevem a passagem do tempo como são testemunhas dela.
Essa propriedade dos relógios de sol — serem usados para visualizarem o tempo, mas são parte do tempo que registram também — me marcou muito, porque é a mesma que eu uso pra arte que me marca. A arte é estranhamente eterna, porque a gente aprecia livros de centenas de anos ou as séries que a Netflix colocou na semana passada, e existe algo nelas que independe do tempo para funcionar. Ao mesmo tempo, uma peça de arte só pode ser feita naquele exato momento e lugar que foi feita, é um registro inescapável. Uma máquina do tempo de via dupla: nos transporta para esse outro lugar e outro tempo, mas também traz esse outro lugar e tempo para o nosso agora.
Eu digo isso porque eu quero celebrar uma das melhores séries que eu já vi. Não, risca isso. Eu quero celebrar a melhor série que eu já vi, uma que eu ando pensando muito ultimamente, mas que eu não consigo me colocar no espaço mental necessário pra assistir agora, quando eu ligo a TV pra ver o Jornal Nacional e um misto de luto e desespero se jogam sobre mim. Eu já falei aqui sobre The Leftovers (é uma das cinco coisas que eu recomendei no nosso listão do ano passado), e eu nunca parei de pensar nessa série um dia sequer desde que ela acabou em 2017. Ela também tem essa dupla propriedade da arte e dos relógios de sol: ela é um pouco universal — ela me toca bastante porque lida com o luto e com o desespero que eu também sinto; mas ela também é definitivamente específica: é sobre o luto e o desespero de um planeta que simplesmente se recusa a acabar, mesmo que o mundo decida que ele já tenha acabado.
The Leftovers começa três anos depois de um evento. Os próprios personagens da série não sabem o que chamar esse evento. Não é tragédia, não é desastre. Mas em um certo dia de outubro, dois por cento da população mundial desapareceu, simplesmente piscou e sumiu. Três anos depois, nós acompanhamos algumas pessoas que ficaram: um policial e seus filhos; sua ex-esposa; uma agente do governo que perdeu toda a família no evento; um padre; e uma mulher que lidera um culto de silêncio. Esse grupo de pessoas se expande e contrai com o passar das três temporadas da série, mas o foco é o mesmo: como essas pessoas continuam vivendo em um mundo que traiu a coisa mais certa na nossa vida. Para dois por cento da população mundial não houve morte, essas pessoas desapareceram aleatoriamente. Como o mundo pode continuar girando se a única certeza que nos guia foi negada?
Nora e Erika, duas mães cujo os filhos desapareceram, enfrentam suas próprias ideias do fim.
Lost, a série anterior de Damon Lindelof (que depois de Leftovers faria a minissérie de Watchmen), é considerada um marco na TV pela sua trama cuidadosamente construída entre enigmas que se dependem um do outro, sobre um grupo de sobreviventes de um acidente de avião aprendendo a lidar com esses enigmas para sobreviver. É, hoje, considerada uma das séries mais importantes dos anos 2000, e um exemplo de como os EUA se enxergavam culturalmente pós o 11 de setembro: uma série sobre o trauma de um evento que pôs em dúvida uma grande parte do país.
The Leftovers dá um passo a seguir, é uma série após o pós-trauma. Depois que o seu mundo, ou a sua percepção do mundo, é destruída; depois que o trauma passa, e o planeta continua a girar e você ainda está vivo, o que você deve fazer? Como o mistério central da série, o que houve com a parcela da população, The Leftovers não está interessada em responder à essas perguntas. A série se interessa muito mais em observar como as pessoas seguem vivendo e o planeta segue girando em meio ao que parece, e o que pode muito bem ser, o fim do mundo. Algumas coisas mudam, algumas coisas não. Em um dos seus momentos mais marcantes, dois personagens se escondem em um hospital enquanto uma cidade é destruída por um culto apocalíptico (há muita gente querendo que o mundo acabe de uma vez). Eles trocam um dos diálogos mais bonitos que eu já vi:
— Eu não sei o que está acontecendo.
— Eu também não.
Eles se abraçam, eles choram e saem para a rua, vendo suas cidades em ruínas. Eles vão para a cada e veem suas famílias.
Algumas coisas acabam, algumas coisas continuam. É uma dessas obviedades que eu comecei a enfrentar ultimamente, e eu não sei se consigo lidar. The Leftovers tem esse poder estranho, muito específico e muito bonito, de fazer você não esperar por nenhuma explicação, mas apreciar cada momento de clareza. Uma delas é esse nosso ímpeto de seguir em frente e de tentar de novo, de tentar ser melhor mesmo sem saber se vamos conseguir ou se vamos viver pra ver os resultados. O mundo parece estar acabando hoje em dia, e The Leftovers me pergunta o que eu vou fazer depois que ele acabar. Depois do desespero e do luto, depois que o mundo parar de fazer sentido e começar a querer fazer sentido de novo, como é que a gente fica?
Vários relógios de sol são feitos para marcar a hora e marcar o lugar. Eles eram postos em lugares importantes para as comunidades às quais eles serviam. Muitos deles tinham pequenos lemas, duas ou três frases ao redor. Muitos são sobre a própria passagem do tempo, como ela é rápida e como o tempo voa. Uma me marcou muito, em que se lia “cada hora fere, a última mata”. Foi quando eu fiz aquela relação com a arte que eu botei no início desse texto. Como uma obra de arte, aquele relógio nos indicava seu tempo enquanto tratava do tempo em si. Mas, como toda a grande obra, ela me lembra da minha própria mortalidade. De como todos nós aqui vamos morrer, e as pessoas vão seguir em frente. Não é algo que eu necessariamente quero lembrar durante um tempo em que milhares de pessoas estão morrendo de uma doença e pela negligência do governo em relação à ela.
Mas é também uma frase que, como The Leftovers, está na minha cabeça nesses quase dois meses. Cada hora fere, a última mata não só me lembra da minha morte, ou da morte daqueles que eu amo. Ela também me lembra que, depois da morte, o planeta continua a girar. The Leftovers usa o luto e a percepção do fim pra explorar a vida antes, e a vida que continua depois. É a mais estranha das máquinas do tempo: ela me desperta pro fim do mundo que é o presente ao me fazer imaginar o futuro em que o mundo vai continuar. Ao me fazer imaginar o futuro, ele me lembra que o amanhã e o agora só existem porque aqueles que nos deixaram continuaram existindo de alguma forma. Em memórias, em lugares e em invenções — das mais modernas àquelas esquecidas e defasadas, no meio da praça. Um lugar que, uns dois fins do mundo atrás, também já significou muito para alguém.