Ninguém tinha dúvidas que Avenida Brasil, a maior novela brasileira da história, ia voltar para a grade da Globo uma hora ou outra. Ela fez história em 2012 (em números, claro, mas como vou tentar argumentar mais pra frente, também em nível artístico), firmou Adriana Esteves no panteão das grandes atrizes brasileiras e causou um tsunami na grade de novelas da Globo depois que ela passou. Foi um dos primeiros grandes momentos do Brasil no Twitter (a hashtag #oioioi subia quase que diariamente nos assuntos mundiais).
Avenida Brasil voltou (e voltou com tudo), e é bom de lembrar porque a novela foi tão grande assim.
Fina Estampa, a novela das nove que precedeu Avenida Brasil, é um bom exemplo da fórmula clássica de uma novela da Globo: centrada em duas figuras fortes, a mocinha Griselda (Lília Cabral, sempre excelente) e a megera Tereza Cristina (Christiane Torloni, a deusa da televisão) eram a versão da vez das figuras fundamentais da teledramaturgia brasileira, a humilde de bom coração e a carrasca de nariz empinado, Ambas conectavam os dois principais núcleos da história, demarcados pelas suas classes sociais que dificilmente se misturam no decorrer da novela.
Quando Avenida Brasil (na Globo, de segunda à sexta, na faixa das 16h30) começou, a novela de João Manuel Carneiro desestruturou essa fórmula o suficiente para renovar o interesse da audiência sem desnorteá-la: a mocinha, Rita (Débora Falabella), é uma órfã que cresceu em um lixão e que nutre uma sede de vingança pela madrasta que destruiu sua vida: a Carminha (Adriana Esteves, numa atuação histórica), que roubou o dinheiro do pai de Rita e se casou com o homem que o matou, o ex-jogador do Flamengo Tufão (Murilo Benício, em um papel que dá a oportunidade de modular entre o drama e a comédia), e realiza o seu sonho de ficar rica.
Avenida Brasil usa de um fenômeno social da sua época, o aumento da classe média, para finalmente mudar a dinâmica dos personagens secundários. A novela não se estruturava mais em um núcleo principal em que seus personagens tinham ligações com núcleos secundários — como “os pobres”, amigos de Griselda; e “os ricos”, amigos de Tereza Cristina, em Fina Estampa. A estrutura desses núcleos muda drasticamente ao dar a mesma origem tanto a Rita quanto a Carminha, e centralizar a história em um mesmo bairro. Tanto Carminha e Rita compartilham suas origens no lixão (onde Vera Holtz e José de Abreu brilhavam); e o dia-a-dia era compartilhado no bairro do Divino, onde a grande parte das histórias paralelas aconteciam.
A relação de Tufão e Carminha com o Divino é, inclusive, algo que eu acho fascinante de assistir. A nova classe média que Avenida Brasil retrata é algo que Tufão se orgulha (ele enriquece e leva a família e os amigos para viver com ele) mas que dá desgosto à Carminha — ela enriquece, mas queria que os outros não tivessem melhorado de vida também para poder se sentir superior. A novela usa essa dinâmica principalmente para a comédia, mas é aí que ela esconde sua grande força: uma complexidade de caracterização dos personagens coadjuvantes que poucas novelas até ali tinha tanta atenção.
Tufão, o ex-jogador de futebol, é cercado de amigos do Divino que ainda batalham todos os dias: sua ex-namorada, Monalisa (Heloísa Périssé), era uma cabelereira que conseguiu ser dona de um salão de beleza com o tempo, mas o dinheiro ainda é difícil de sobrar; Suellen (Ísis Valverde), Adauto (Juliano Cazarré), Darkson (José Loreto) e Beverly (Luana Martau) ainda enfrentam os obstáculos do dia-a-dia para realizar seus sonhos na vida.
Esse cuidado narrativo ajudou Avenida Brasil a segurar a forma problemática da telenovela brasileira. Para uma história durar cerca de 200 episódios de uma hora por seis dias da semana ou a narrativa se atola em reviravoltas e situações impossíveis para aumentar a excitação dos espectadores (como é comum), ou abraça seu elenco de apoio para preencher e expandir o drama para além do confronto principal. Avenida Brasil encontrou seu sucesso exatamente aí, em acompanhar algo bastante particular do seu momento social com humor. Nenhum personagem do elenco de apoio era perfeito, mas nenhum era necessariamente mal-tratado pelo roteiro também, criando uma rica caracterização do brasileiro no dia-a-dia, cheio de simpatia e solidariedade, mas também sempre arredio e com medo de perder aquilo que conquistou. Avenida Brasil foi uma das únicas novelas, porém, que se importou em mostrar o trabalho duro dessa conquista.
Não se deixe enganar, Avenida Brasil ainda têm muito dos elementos de uma telenovela da Globo: as reviravoltas estão ali, geralmente nos episódios dos sábados (quem lembra quando a Carminha enterrou a Rita viva, em uma cena à Kill Bill?), a caricatura é frequente e episódios filler amordaçam a história na última parte da novela. Avenida Brasil também não tem a riqueza visual de Velho Chico, também, mas não é como se a Globo não investisse o suficiente na sua principal novela do ano para criar um Divino vivíssimo em história (a direção de arte das externas são belíssimas, enquanto as internas são… internas de novela). A força da novela está muito mais sobre seu elenco do que sobre suas imagens.
Só que esses momentos são bem pontuais, e mais realçam a força narrativa do que tentam extrapolar ela. Acertando em cheio ao retratar o grupo de personagens secundários com a mesma riqueza narrativa das suas protagonistas, Avenida Brasil ganha seus pontos de virada mais facilmente, porque eles não se destacam tanto assim. A novela ganhou seus espectadores não por causa da situação, o que seus personagens fazem, mas pela caracterização, quem seus personagens são. Um elenco de ponta, uma escrita atenta ao contexto, e uma seleção musical perfeita criaram um verdadeiro monstro televisivo. Avenida Brasil está longe de ser uma representação fiel do Brasil no início dos anos 2010, mas quer ver como o Brasil se enxergava naquela época? Cheio de bagunça e de humor, de cinismo e de artimanha, de beleza e de bom gosto musical? Não precisa ir mais longe: Avenida Brasil está aí, e ainda bem que ela está de volta.