Se a internet fosse uma biblioteca ela seria gigante, repleta com todo o tipo de livro, revista, jornal, diários, trabalhos acadêmicos e o que mais fosse possível enfiar dentro dela. Mas ela também não teria nenhum sistema de organização (nada de plaquinhas de “Estudos Sociais” e “Convergências entre Hipertexto e Política”), e você só teria uma lanterna para ajudar a encontrar aquilo que precisa.
Parando pra pensar, você percebe que ainda é difícil navegar na internet. Você precisa se certificar que seu navegador está atualizado para conseguir exibir o conteúdo corretamente; precisa digitar endereços cheios de pontuação e códigos e, principalmente, precisa ter cuidado com o que acessa — um link para aquele “Flash Player” malandro está sempre na espreita. É por isso que serviços que nos ajudam a navegar nesse mar de conteúdo e a encontrar exatamente aquilo que a gente precisava deram tanto certo — foi o grande acerto do Google, no início do serviço. Você só precisa procurar, e o Google vai varrer o seu índice gigante para encontrar aquilo que for mais próximo. É tão prático que a gente esquece a dor de cabeça que era ter que ficar favoritando todas as páginas que a gente precisava acessar nos anos 90.
Esse serviço de indexação e relação que o Google faz é gigante e custoso, e o fato de ele parecia ser “de graça” era algo que fazia a internet parecer ser a parte do mundo real, onde a gente precisava pagar para poder ter acesso a qualquer coisa — do jornal à enciclopédia. O problema é que, conforme fomos confiando mais e mais na capacidade do Google de nos entregar aquilo que precisávamos, mais o Google queria saber sobre nós e nossos gostos. E assim a web ficou “personalizada”. Mas não no sentido de colocar uma cor diferente na barra do seu navegador (sdds personas no Firefox), e sim no sentido que esses “organizadores da internet” começaram a cercar o nosso acesso naquilo que dava dinheiro pra eles — os anunciantes que pagavam bem. Ferramentas como o Google, e o Facebook e hoje em dia até mesmo o Twitter, começaram a observar (muitas vezes sem o nosso consentimento) aquilo que a gente tinha interesse, e começaram a manipular o acesso à essa informação de acordo com o que era mais interessante para seus anunciantes.
O problema
É como se a Internet fosse essa biblioteca gigante e misteriosa e as vezes perigosa, que a gente já se aventurou tanto alguns anos atrás mas que perdemos contato com ela quando nossos guias ficaram tão bons em indicar atalhos. Mas os nossos guias só nos dão acesso ao shopping center que eles construíram na entrada, logo após aquela fonte bonita, virando a primeira à direita.
Conforme a gente foi permanecendo nessas redomas da internet, como o Facebook, o Slack, e a primeira página de resultados do Google (que hoje é praticamente só conteúdo patrocinado?!), uma coisa perigosa foi acontecendo: a gente começou a misturar esses espaços da Internet e dar aos proprietários dessas empresas multimilionárias o conhecimento não só da nossa vida, mas também do que compramos, das notícias que lemos, daquilo que ouvimos e do que conversamos nos emails e chats da vida. Conforme essas plataformas foram ficando inteligentes, elas foram se “personalizando” através desses dados: começamos a ler notícias no Facebook e a receber dicas do que responder aos nossos colegas de trabalho no Gmail. Você conversa sobre o que dar de presente para a sua mãe e o Instagram está ali te oferecendo um brechó que vai vender aquela roupa “sustentável” e “orgânica” que basicamente significa que eles não pagaram a mão de obra.
A impressão que esses serviços integrados nos dão é que eles são mais pessoais, eles entendem aquilo que a gente quer e preveem uma solução. Não sabe responder aquele email do chefe? Têm essas sugestões aqui pra começar. O que você quer ouvir agora? Baseado no que você ouviu nas últimas semanas tem esse álbum novo que tá todo o mundo ouvindo também.
Nos últimos tempos eu comecei a duvidar muito do quão pessoal a internet realmente ficou. É como conversar com um daqueles bots, como o Robô Ed. Quanto mais você passa o tempo conversando, mais e mais você vai percebendo o quão falso ele é. Conversas no Facebook crescem a ponto de virarem notícias falsas, rumores se transformam em verdades e o algoritmo de timelines começam a servir para entregar informação, e não interação. Não interessa se é verdade ou não, se é o que te interessa é o que vai aparecer para você.
Uma web realmente pessoal
Não faz muito tempo que as coisas eram diferentes. No final da década passada a internet ainda era um nome próprio, e o nosso método de navegação era necessariamente diferente. Por dois motivos: um é técnico, a tecnologia que fundamenta a web evoluiu muito nos últimos anos, mas estava numa pré-adolescência complicada na segunda metade da década de 2000, e não comportava os sites imensos repletos de recursos dinâmicos que existem hoje. O segundo era comportamental: se a gente gostava de um tipo específico de música, não adiantava nada conversar com ela no meio da galera que tava comentando outro tipo — a gente procurava aquilo que era mais especificamente próximo do que a gente queria. Porque a tecnologia não era tão poderosa, os sites eram menores, mais específicos.
Hoje em dia é estranho, mas antes redes sociais só deixavam a gente conversar uns com os outros. A gente ia no Orkut para ver as fotos da festa que ficaram ótimas e mandar juras de amor por depoimento (não aceita!), mas o Orkut não era um bom espaço para você compartilhar aquele link de notícia que te chamou a atenção. Pra isso você postava no seu blog, que tinha um link para seu perfil no Orkut, que mostrava as comunidades que você participava. Você baixava o último álbum bacana no Discografias no Orkut, comentava sobre ele no seu blog, que tinha um link que levava para seu perfil no Last.FM. Uma coisa levava a outra, e nossa presença na web nunca era centralizada em uma identidade só (inclusive imagina se nossos pais usassem o Orkut naquela época, que perigo).
Isso era bom para o usuário, que estava sempre descobrindo coisas novas e tendo acesso a conteúdo interessante (ou bobo, nem tudo são flores); e para os negócios, já que mais sites menores e específicos conseguiam sobreviver porque formavam pequenas comunidades, e pessoas conseguiam ganhar uma grana criando esse conteúdo riquíssimo (o que tinha de blogueiro sendo “promovido” a redator e colunista, inclusive). Claro que nem tudo são flores: era caro manter um site, e muitas vezes eles desapareciam porque não tava mais para manter. As vezes eles não eram muito seguros (mas, em contrapartida, a gente não fornecia tantos detalhes da nossa vida também).
A solução é sair do Facebook e parar de acessar o Google, o YouTube e o que mais for? Acho que não. É como dizer para as pessoas pararem de usar carro: seria o ideal, mas enquanto cidades inteiras são pensadas e formadas partindo do princípio que carros existem, se mover nelas sem eles é muito mais difícil (e, para muitas pessoas, impraticável).
É hora de pegarmos a internet de volta
Uma coisa boa que aconteceu na internet nessa última década: a tecnologia que mantém ela amadureceu e ficou mais barata. A mesma tecnologia que mantém uma timeline no Twitter e no Facebook mantém um leitor RSS ativo, ou o seu player de podcasts. Uma tecnologia mais madura é mais fácil de confiar, porque tem menos chances de mudar de uma hora para a outra ou simplesmente parar de funcionar. Você pode ensinar seus pais a usar essa opção sem precisar ficar ensinando essa configuração ou aquela outra a cada três meses. É muito mais fácil do que piratear o Windows.
Nos últimos anos esse amadurecimento da internet começou a causar frutos interessantes:
- Os podcasts, que pareciam uma forma moribunda de comunicação, se transformou num gigante (muito dessa nova vida é graças ao já clássico Serial, inclusive). Jornais como o NYT, a Folha de São Paulo e o G1 passaram os últimos anos apostando muito em podcasts para transmitir notícias em pequenos podcasts diários ou grandes podcasts semanais.
- Os blogs, que pareciam mortos ali por 2013, tiveram um belo retorno no último ano: o UOL colocou todos os seus colunistas e colaboradores em blogs próprios (a Veja fez algo semelhante, mas eu não acompanho muito aquilo lá). O Tumblr, a ferramenta mais fácil para criar blogs no mundo, que estava caindo aos pedaços graças à bagunça que é o Yahoo!, acabou de ser comprada pela empresa responsável pelo WordPress.com, que é dedicada em criar ferramentas para blogs, e o futuro parece brilhante por aqueles lados hoje em dia.
- E o que parecia morto já nos anos 2000, as newsletters, hoje são o meio mais pessoal de se manter em contato com os autores que você gosta (o Daniel Galera tem uma esparsa, mas excelente). O Tinyletter se deu muito bem em se dedicar somente a isso nos últimos anos.
Esse retorno de blogs, newsletters e podcasts (e, por meio deles, do RSS como uma forma de distribuir e consumir conteúdo) está sendo bem interessante de acompanhar. Por um lado, é uma resposta dos provedores de conteúdos de tomarem o controle da forma de novo, depois de anos em que uma mudança no algoritmo do Facebook levassem todos à falência. Por outro, é um retorno da vontade do usuário de tomar o controle de como consumir esse conteúdo. Em 2001 a gente queria baixar só as faixas legais dos álbuns que a gente gostava. Em 2019 a gente escuta aquilo que o Spotify acha que a gente gosta.
Com as “mídias sociais” explodindo durante a última década, essas formas pareciam fadados ao esquecimento de uma pré-história da internet que nossos pais não presenciaram (ou não tinham interesse em acompanhar), vítimas de aplicativos difíceis de operar e da instabilidade tecnológica. Hoje, porém, esse retorno faz cada vez mais sentido. A onipresença do Facebook, do YouTube e do Google e a sua abordagem cada vez mais intrusiva em distribuir conteúdo para nós fica cada vez mais agressiva. Notificações do Facebook definem quando a gente deve ler uma notícia ou ouvir o nosso amigo reclamar do ônibus lotado em um áudio alto demais. Parece que temos cada vez menos controle sobre a nossa interação com a internet, o que é contra o propósito de estarmos nela — de termos o domínio sobre essa informação, ou sobre o acesso à ela.
Com os blogs, os podcasts, as newsletters, esse controle volta para nós. Por existirem em espaços diferentes, eles não se introduzem no nosso cotidiano sem serem chamados. O leitor RSS só vai ser aberto quando você quer ficar em dia com as suas notícias. O podcast está ali esperando o trem com você. Por não estarem confundidas com as mensagens pessoais ou uma conversa do trabalho, esses conteúdos oferecem um contexto adequado para serem consumidos: no leitor RSS não vai ter seu irmão perguntando quando é o aniversário da sua mãe. Esse contexto não requer que você esteja respondendo a algo. Ele requer a sua atenção: agora é hora de ler, então presto atenção. Depois é hora de ouvir, então fico quieto.
A confluência de conteúdo foi um grande salto da internet. Ter todo esse conteúdo acessível com tanta facilidade é uma dádiva que a tecnologia nos proporcionou. Isso não significa que precisamos dela o tempo todo, nem que ela pertence ao mesmo contexto do nosso dia a dia. Se tem uma coisa que a internet precisou amadurecer para perceber é que o ser humano é inteligente o suficiente para mudar de contexto facilmente. Com um app de distância eu posso ser o filho perfeito dos meus pais enquanto no do lado eu discuto a consistência do arroto depois de comer feijão. Está na hora de tomarmos esse poder de volta para nós, de decidirmos os nossos contextos através da nossa vontade.
Nessa última década nós experimentamos com máquinas definindo o que a gente via e quando a gente via. Nós experimentamos com anunciantes sabendo o que queríamos e quando queríamos. Os resultados foram desastrosos — dos menores, em que o Facebook e o Twitter criaram ambientes de discussão que não incentivavam uma conversa rica e elaborada, e nos acostumaram com gritos e faltas de contexto; aos maiores, em que democracias inteiras estão prestes a serem consumidas pelo ódio que essas discussões criaram. Nós confiamos o controle dessa tecnologia, que foi tão importante para nós, à grandes corporações, e elas traíram a confiança que foi dada na ambição de terem mais controle do que aquele que nós demos a elas. Nós experimentamos, e isso não deu certo.
Está na hora de tomarmos o controle desse espaço que nos definiu e nos fez avançar. Não é algo que vamos fazer da noite para o dia, mas é uma transformação que está começando e que podemos abraçar. Não significa pararmos de usar os serviços que eles nos oferecem (para muitas pessoas, a internet é o Facebook, e essa é uma percepção difícil de desfazer), mas está na hora de adaptá-los às nossas necessidades, e não ao contrário — ninguém parou de assistir TV quando o YouTube apareceu, nós começamos a ver YouTube pela TV, por exemplo. O Facebook já foi um ótimo lugar para ver como as fotos da festa ficaram ótimas. Mas o pronunciamento de um presidente não deveria ser o post logo abaixo de você vomitando na festa da semana passada — você já está passando raiva demais.
Há dez anos eu trocava o ícone do Google Chrome pro do Internet Explorer pro meu pai acessar a internet com um navegador mais rápido e seguro. É hora de fazermos isso de novo (coloque o Firefox no lugar do Chrome no Moto G do seu pai). Hoje em dia é muito mais fácil criar e ler blogs e newsletters do que era quando o Facebook e o Twitter apareceram. Acompanhar podcasts (e criá-los) finalmente é intuitivo, e eles nunca ofereceram conteúdos tão bons. Nunca foi tão fácil mostrarmos para nossos pais o excelente podcast da Piauí, por exemplo, e é uma boa hora de incentivarmos esse hábito.
Descentralizar o conteúdo dessas super-potências da internet significa tomarmos o poder dela de volta para nós, estilo web 2.0, de definirmos o contexto que queremos ler as notícias que nos interessam, e não deixarmos que algoritmos que fazem de tudo para nos rastrear façam essa decisão por nós. Lentamente, deixamos elas irrelevantes — ou no mínimo menos relevantes. Era comum a gente separar o que era importante ou não na internet. Há dez anos era uma decisão de comodidade, hoje é uma necessidade.