Uma das forças fundamentais da “nova era do ouro da TV” é a ideia do anti-herói, como o Tony Soprano (Família Soprano), Don Draper (Mad Men) ou o Walter White (Breaking Bad): homens que têm o mundo nas mãos (ou, no caso do Walter, conquistam ele) mas que se deparam que o temo faz o mundo mudar, e o tempo é indiferente à eles. A jornada desses personagens geralmente é trágica: diferente dos heróis televisivos, que aprendem, mudam ou crescem, os anti-heróis preferem fazer o mundo ao redor deles mudar a serviço deles, e a indiferença do mundo quanto ao que eles querem (ou o poder deles de fazer o mundo deixar de ser indiferente) causa destruição — seja da alma do personagem ou daqueles ao redor dele.
Essa forma foi muito bem sucedida nos anos 2000, e até hoje séries consagradas usam ela. Game of Thrones ou Sucession são dois exemplos recentes. Mas esse tipo de pessoa começou a ganhar mais poder hoje em dia — eles são presidentes de novo, olha só —, e acompanhar séries sobre pessoas assim agora parece muito mais uma obrigação para entender o que está acontecendo mais do que entender como essas pessoas também são humanas, como Família Soprano e Mad Men fizeram tão bem lá atrás.
Nos últimos anos, então, começou a aparecer uma variação do anti-herói: a de pessoas falhas que querem que o mundo gire ao redor delas e que, ao se deparar com outras pessoas falhas como elas, descobrem que elas se sentem vazias ou quebradas por dentro — por algum motivo ou outro — e descobrem que juntas podem ter mais força de se reconstruírem, de criarem algo. Essa ideia não é exatamente nova (Friends já brincava com algo assim nos anos 1990), mas com The Office, United States of Tara e Community elas começaram a ser uma resposta ao anti-herói das séries prestigiadas. É algo que deu super certo nas comédias dramáticas (a HBO explorou isso bastante com Girls, Looking e Togetherness) porque essa jornada geralmente envolve um grupo, geralmente eles tem muitas recaídas e geralmente é sobre uma galera mais próxima do mundo real: um bando de perdido que não tem ideia do que fazer no mundo, e o mundo é indiferente a eles nisso.
Com Crazy Ex-Girlfriend (na Netflix), esse tipo de personagem dá mais um passo e cria uma das melhores séries da década.
Eu já comentei (brevemente) sobre a primeira temporada de CXGF aqui. Naquela época, a série ainda parecia “apenas” uma comédia sobre comédias românticas, que tentava pegar os clichês do gênero e desconstruí-los para mostrar como elas podiam nos dar ilusões sobre o amor. A primeira temporada de CXGF é divertidíssima, mas o que a série começou a fazer depois dela é genial.
Crazy Ex-Girlfriend conta a história da Rebecca Bunch, uma advogada de um poderosíssimo escritório de Novas York que decide se mudar para West Covina, na Califórnia, depois de ter visto uma propaganda de manteiga na TV (e de ter reencontrado o seu ex-namorado da época do ensino médio, Josh Chan). Lá, ela faz um bando de coisas questionáveis (a série demora para chamar essas ações de loucuras) para tentar atrair seu ex de volta.
É uma comédia romântica, em um primeiro momento, e Crazy Ex-Girlfriend sabe o que a gente espera desse tipo de história. E sabe também quando a gente espera uma reviravolta desse gênero. Essa é a série que homenageia Harry & Sally e (500) Dias com Ela no mesmo episódio, afinal de contas.
Mas CXGF também é um musical que se passa dentro da mente de Rebecca. Ela é uma mulher com emoções muito fortes, e a série revela essas emoções em números musicais que vão desde como ela se arruma para sair com um cara até como é horrível ser advogado.
Na primeira temporada, Rebecca vai até West Covina guiada por essas emoções fortes e números musicais imaginários. Ela quer reviver seu amor com Josh e, com sua nova melhor amiga Paula (a incrível Donna Lynne Champlin) ela não mede esforços para isso acontecer: desde influenciar o casamento da irmã do Josh até criar um namorado falso que se torna mais real do que deveria para causar ciúmes nele.
Se na primeira temporada da série nós somos apresentados à esse grupo de personagens e como eles agem entre si — como Paula ajuda Rebecca porque ela mesma queria viver uma “grande história de amor”; como Josh é o manda chuva dos seus amigos e está trancado nas memórias da adolescência; como Valencia prefere que Josh não tenha personalidade; ou como Greg, o melhor amigo de Josh, se apaixona por Rebecca porque ela não tá afim dele — a partir da segunda ela transforma em uma observação como nós procuramos em nossos amigos e amores alguém que valide também nossos vícios, não só nossas virtudes, e como elas podem ser prejudiciais quando juntamos esses piores lados.
É aí que Crazy Ex-Girlfriend não tenta só desconstruir a comédia romântica, mas também a comédia de amigos. Por mais bela que seja a amizade entre Rebecca e Paula, as duas acabam criando ilusões uma para a outra sobre suas ações. Paula acha que a busca de Rebecca pelo amor é um romance de vampiros ao vivo; Rebecca acha que o suporte de Paula é o que uma verdadeira mãe devia fazer. Greg vê no seu amor destrutivo com Rebecca a chance de validar seu pior lado; e Josh insiste em viver com Valencia porque ele não consegue acreditar que seus dias de glória já passaram.
É um grande arco, e Crazy Ex-Girlfriend navega nele com precisão. Embora a série se centre na busca de Rebecca por encontrar o seu final feliz — seja ele com um amor ou com amor próprio —, ela é inteligente o suficiente para saber que finais felizes são passageiros, que nós fazemos escolhas erradas e que nossos amigos nem sempre tem um grande conselho para nos dar. E pior: eles mesmos estão tão perdidos quanto nós.
Mas Crazy Ex-Girlfriend também valoriza que, mesmo se estamos perdidos, vai ser mais fácil encontrar um caminho melhor juntos.
Não é novidade o que CXGF faz. Community sempre foi fascinada pela ideia de que, por mais que o grupo de estudos seja algo necessário para a vida das pessoas, eles nem sempre fazem bem uns aos outros. Em Crazy Ex-Girlfriend, essa jornada é interna: a compreensão de que você faz parte de um todo e esse todo talvez não tenha mais tanta certeza quando você imaginava, e como isso pode desestabilizar ainda mais você. Rebecca não vê um futuro porque é infeliz, e CXGF não quer que ela descubra a felicidade em outra pessoa. A jornada de Rebecca é em descobrir o que a faz infeliz e insuficiente para si mesma, e como ela pode melhorar.
Isso cria uma terceira temporada difícil de assistir, em que Rebecca mergulha no seu pior lado, sua ansiedade aumenta e seu comportamento errático machuca os outros, inclusive seus amigos. Parece que CXGF vai abraçar o anti-herói que existe em Rebecca, mas na última (e genial) temporada, a série força seus personagens a enfrentarem esses medos e quererem buscar ajuda. Um nos outros e em si mesmos. É quando os musicais de Rebecca começam a fazer mais sentido. Até que, um dia, nós podemos esperar, sua vida e seus sonhos vão andar de mãos dadas, e não em conflito. É o que queremos para nós e para quem amamos.