Eu não dei muita bola para Pokémon Let’s Go! Eevee na primeira vez que eu joguei, no ano passado. Focado nos novos jogadores que conheceram os monstrinhos através de Pokémon Go, Let’s Go! é um remake dos primeiros jogos da franquia (Pokémon Yellow, pra ser mais exato) com algumas diferenças no sistema de capturas, que se assemelha mais à mecânica do jogo de celular. Antes, você batalhava com um pokémon selvagem para você enfraquecê-lo e ficar mais fácil de capturá-lo, agora você só precisa acertar bem a mira da pokébola.
Eu não achei tudo isso quando eu joguei Let’s Go! Eevee pela primeira vez (eu já tinha jogado o outro remake, Pokémon FireRed e LeafGreen, e são uns dos meus favoritos). Eu adoro Kanto, o continente onde se passa essa geração, mas a jogabilidade simplificada (você controla tudo com apenas um joy-con — ou metade de um controle do Nintendo Switch) sempre pareceu me indicar que esse jogo não era para quem já tinha experimentado jornadas maiores, como Pokémon Diamond & Pearl ou Sun & Moon.
Mês passado minha cadelinha Vivi morreu enquanto se recuperava de uma cirurgia para remover os tumores de um câncer. Tá sendo um mês difícil. Nos últimos cinco anos a minha vida foi adaptada ao redor da rotina dela. Vivi, que sofreu um acidente e perdeu os movimentos das patas traseiras, pedia alguns cuidados especiais. Ela não exigia muito de mim, mas eu gostava de ficar perto dela, de ajudar ela a fazer algo. Ficar por perto da Vivi, como é normal para o bichinho de estimação que você tanto ama, era especial.
Ela era uma boa companheira e uma grande amiga. A ausência dela acabou me dando tempo livre (algo que me faltava nas semanas anteriores à morte dela, no período em que “cuidar da Vivi” era uma demanda pesada), mas eu lutei pra saber como preenchê-lo. Eu nunca achava que eu perdia tempo ou gastava meu tempo com a Vivi. Cuidar dela era parte do meu dia a dia, um dos prazeres da minha rotina. Sair do trabalho e ir brincar com ela na rua era o meu exercício físico e o meu tempo ao sol. Acordar cedo para levar ela no banheiro e tomarmos nosso café da manhã juntos era o melhor jeito que alguém poderia começar seu dia. Passar a madrugada de sexta-feira ao lado dela assistindo um filme de terror enquanto ela roncava me trazia paz.
Esse tempo livre se tornou um peso nesse último mês. Um que eu não sabia como preencher. Eu não sentia vontade de ver filmes (!) nem de rever Gilmore Girls (!!!!), porque eram coisas que eu fazia com ela. Eu ficava sentado no meu sofá sentindo falta da Vivi, e não sentindo saudade dela. Não lembrando dos momentos bons em que eu passei com ela, mas em como a ausência dela pesava em mim. Como não ter ela por perto me deixava triste, como não ver ela do meu lado quando eu acordava me fazia me sentir sozinho. Como não precisar sair e correr com ela pelo pátio me deixava cansado demais pra me levantar.
Eu não sei qual foi o meu raciocínio pra dar mais uma chance pra Pokémon Let’s Go! nesse último mês, mas ainda bem que eu tive ele, porque Let’s Go! Eevee (o melhor Pokémon) está me ajudando a transformar essa falta da Vivi em saudade.
A Vivi
Se você já jogou qualquer jogo RPG de Pokémon, principalmente os da primeira geração, então Let’s Go! não vai ser tão diferente assim. Você ainda é uma criança que ganha um Pokémon inicial do professor que mora na mesma pequena cidade que você, e você vai de cidade em cidade derrotando os líderes de ginásio Pokémon para ganhar insígnias e poder enfrentar a Liga Pokémon, onde os melhores treinadores de Pokémon se enfrentam para saber quem é o novo campeão.
Muito da jogatina dos jogos Pokémon têm a ver com as batalhas, com o treinamento dos monstrinhos. Enfrentar outros treinadores e batalhar com seu Pokémon sempre foi a mecânica central, e em Let’s Go! isso não é diferente. Treinadores ainda existem nas rotas entre uma cidade e outra puxando briga com todo o mundo, ginásios ainda são o centro das cidades, e a equipe Rocket ainda tem seus planos mirabolantes. Let’s Go! é uma viagem ao passado da franquia — o mapa é pequeno e as mecânicas são simples! —, mas também é uma lembrança que quase nada da franquia mudou fundamentalmente. Novas mecânicas e stats foram colocados um acima do outro com os jogos que vieram depois, mas o que faz Pokémon sempre é essa estrutura de jogabilidade básica.
O que muda em Let’s Go!, e que pra mim é o grande acerto do jogo, é a forma como você se relaciona com os pokémons. Desde o modo como você captura até o modo em que você “cuida” deles, Let’s Go! faz o treinador ser o cuidador dos monstrinhos que estão com ele. Não é mais necessário batalhar com as criaturas selvagens que te atacam do nada. Graças ao poder de processamento do Switch, você finalmente pode ver o Pokémon no seu habitat natural. Se você quiser capturar aquele Ratatá brincando no meio do arbusto, você só precisa ir até ele. Para capturá-lo você não precisa mais batalhar com ele até enfraquecê-lo, e sim mirar bem e esperar o momento certo para mandar a pokébola. O Pokémon pode se recusar a entrar ou dar um golpe que manda a pokébola para longe, e você pode tentar acalmá-lo com diferentes tipos de fruta.
A Vivi veio da rua. A minha vizinhança tem isso como característica: como moramos afastados da cidade, as pessoas da cidade vêm e largam seus cachorros que elas não querem mais aqui. Alguns cachorros sortudos sobrevivem seus dias na rua até que algum vizinho de coração mole decida deixar ele entrar (os menos sortudos morrem de frio ou atropelados, ou sufocados porque as pessoas mais cruéis jogam eles fora enrolados em um saco de lixo). Para atrair um cachorrinho que teve sua confiança abalada, que está sentindo dor e frio é um processo difícil, de criar confiança nele que você vai ser um dono melhor, que você não vai desapontá-lo.
A Vivi dormia embaixo de um caminhão quando fomos buscar ela (ela sempre gostou de dormir coberta, e o caminhão servia como uma casinha), e o processo foi semelhante. Sentar perto dela com um pote de comida, e esperar ela se sentir confortável o suficiente para vir comer. Eventualmente, ela começou a nos seguir e então entrou em nosso pátio. Na mesma noite ela encontrou um buraco na cerca e foi para o pátio do vizinho, onde os cachorros muito maiores pegaram ela e quebraram a coluna dela. Eu encontrei ela na manhã seguinte e peguei ela no colo, ela não se mexia mas não conseguia dormir de tanta dor. Nos meses seguintes, eu aprendi com o veterinário sobre terapia da dor, sobre como ser o fisioterapeuta do seu cachorrinho, e da atenção especial que a Vivi ia precisar. Foram meses difíceis, mas eventualmente a Vivi aprendeu a andar no carrinho de rodas, e nós estabelecemos uma rotina que era basicamente dormir, acordar, banheiro, comer, brincar, banheiro, comer, banheiro, dormir. Era estranho e era divertido, e era algo 100% nosso.
Eu não acho que Pokémon Let’s Go consegue substituir a Vivi na minha vida, e a relação que o personagem do jogo tem com a sua Eevee não é a mesma que eu tinha com a Vivi. A Vivi não era útil para mim, ela não me ajudava a alcançar algo. Ao menos não conscientemente.
Mas Let’s Go captura algo da nossa convivência juntos, que é uma parceria especial. Acho que é algo que você tem com aquele bichinho de estimação que você conquistou a confiança. Quando eu chegava da faculdade, a Vivi vinha correndo me dar oi. Ela sentia saudade de mim tanto quanto eu sentia dela. Eu me preocupava com ela quando eu não tava por perto, e o canto do meu olho acompanhava ela em todo o lugar quando ela estava por perto. Eu amava brincar com ela, eu amava cuidar dela e eu amava saber que ela estava comigo. Mesmo que dormindo, mesmo que me mijando enquanto eu corria com ela pela casa para irmos no banheiro.
Em Let’s Go, o seu Pokémon inicial (Eevee ou Pikachu, dependendo da versão que você escolheu) não existe dentro de uma pokébola e você vê ele quando precisa batalhar. Ele anda do seu lado na sua jornada, ele fica pendurado na sua cabeça quando você entra em cavernas ou no meio do mato. Ele está ali com você, e é bom sentir essa companhia, seja quando você está procurando aquele Pokémon raro no meio da floresta, seja simplesmente quando você está indo de casa em casa procurando aquela side quest e ouvindo as histórias dos NPCs.
Ajuda muito que Let’s Go é lindo de ver, e remete à uma geração que eu particularmente gosto muito. Ver a floresta de Floresta de Viridian com os feixes de luz do sol no meio das árvores e os Pidgeys voando é um deleite (é um dos poucos lugares que o framerate se engasga, também), e reencontrar personagens conhecidos como o Brock e a Misty sempre vai ser especial. Mas esse não é mais o maior atrativo do jogo para mim, é em acompanhar minha Eevee na jornada da vida dela, e agradecer por ela ter me escolhido para acompanhá-la.
“Olha esse cuzão!”, disse Eevee.
Eu posso dizer com certeza que esse último mês sem a Vivi está sendo bem mais difícil do que os cinco anos que eu passei junto com ela. A ausência dela é muito mais complicada de lidar do que os curativos que eu aprendi a trocar, dos banheiros que eu aprendi a limpar depois de uma noite em que ela comeu a comida dos outros cachorros ou das brigas em que ela se meteu e eu tive que apartar (acredite ou não mas aquela noite em que os cachorros do vizinho pegaram ela não foi a última batalha que ela travou com eles). Eu sinto falta dela todos os dias, e qualquer coisa me lembra ela. Algumas semanas atrás isso me dava raiva, de mim por ter cometido o erro que eu cometi, dela por não estar perto de mim. Hoje eu tô aprendendo a sentir saudade. Ver o treinador conhecendo Kanto com a Eevee ao seu lado me ajuda a lembrar de como foi bom ter Vivi ao meu lado nas minhas próprias descobertas, como foi bom ter compartilhado elas com a Vivi, e como elas, de certa forma, a partir de agora vão ser parte da minha memória dela.
Eu tinha medo de ter perdido algo pra sempre quando eu enterrei a Vivi. Eu perdi, é óbvio. Enquanto ela parava de respirar eu fiquei fazendo um cafuné para que ela não se sentisse sozinha, mas também para tentar eternizar na minha memória como era sentir o pelo dela no meio dos meus dedos. Mas ver o carinho que eu tinha pela Vivi registrado na arte de outras pessoas — seja num jogo como Pokémon ou em filmes como Wendy & Lucy — me fazem lembrar que o que eu senti foi real.
É um processo, eu acho, e eu acho engraçado como um jogo de batalha como Pokémon, que aprecia e celebra a vitória, me ajuda a aceitar algo imbatível. A nossa existência tem um fim, mas o nosso amor transcende. Ele vive na arte que fazemos, nos lugares que habitamos e naqueles que amamos e que deixamos para trás. Eu nunca mais vou sentir o pelo da Vivi entre os meus dedos, mas eu tenho a lembrança de que, um dia, eu amei fazer um cafuné em alguém; que eu senti algo tão bom, tão grande, sobre algo tão pequeno e tão breve quanto um carinho, e que alguém sentiu algo assim também — porque está ali, eternizado nesse jogo que eu aprendi a gostar.
Para lembrar da Vivi eu tenho fotos e vídeos que enchem o meu celular, mas lembrar do que eu senti pela Vivi é algo mais difícil, e é algo que eu seguro com força porque é o que eu tenho no lugar dela agora. Não é tão bom quanto, nem nunca vai ser. Mas vai ter que ser o suficiente. Eu quero olhar para o canto do sofá que ela gostava de deitar e não lembrar da falta que ela me faz, e sim de como era bom ficar sentado com ela comendo pipoca no meio da madrugada. Eu não quero pensar que, por causa da Vivi, eu nunca mais vou amar um cachorro tanto quanto eu amei ela. Ao contrário, eu quero pensar que, por causa da Vivi, eu aprendi a amar mais.
Nossa última foto juntos, aproveitando o sol do inverno.