Bacurau é um filme furioso. Co-dirigido por Kleber Mendonça Filho, o diretor de O Som ao Redor e Aquarius, com seu frequente colaborador Juliano Dornelles (o designer de produção nos filmes anteriores), o filme começa com o velório de Carmelita, a matriarca da pequena cidade no sertão brasileiro que dá nome ao filme. Dias depois, enquanto a cidade ainda está de luto, percebem que Bacurau sai do mapa — e atos violentos começam a ocorrer.
Muito da força de Bacurau (que estreia nos cinemas na semana que vem, dia 29) está em como esse filme usa vários gêneros e várias dinâmicas de diretores famosos que ele homenageia para entregar uma surpresa constante, tanto de pretenção quanto de execução. É por isso que é especialmente difícil revelar um pouco mais sobre o que está acontecendo em Bacurau, a pequena cidade, sem estragar muita da potência que Bacurau, o filme, entrega com precisão. É seguro dizer que, não importa aquilo que você espera de um filme como a premissa como essa, ou da próxima obra do diretor que entregou dois dos melhores filmes da década, é um filme que ao mesmo tempo responde diretamente à essas expectativas e que está disposto a transformar elas naquilo que bem entende.
De certa forma, Bacurau é uma continuação natural dos experimentos narrativos anteriores de Kleber Mendonça Filho. Em O Som ao Redor, o diretor reduzia e encenava um país inteiro às relações sociais entre os habitantes de um mesmo condomínio em Recife, criando um panorama de uma comunidade para ver como ela se comporta e como ela significa o brasileiro, aquele que é capaz de ser parte de um coletivo guiado por respostas emocionalmente honestas ao mesmo tempo em que é arredio e inseguro do seu espaço. Em Aquarius, ele oferece a mesma observação, mas agora para a composição de uma identidade única (a de sua protagonista, Clara), e como ela carrega nossa história cultural e herança emocional, tanto íntima quanto de seu país. Com Bacurau, o exercício de moldar uma identidade é levada para uma comunidade inteira — é um filme que procura entender e personificar aquela cidade sistematicamente esquecida, mas que nunca perdeu sua voz.
Isso dá a Bacurau uma primeira parte lenta, mas essencial: a de composição dessa sociedade. Esse é um trabalho de construção de mundo que é algo nunca antes visto nos filmes de KMF, e que eu suspeito que seja algo vindo do Juliano Dornelles, que moldava vidas em prédios e apartamentos nos filmes anteriores e, agora, compõe elas na narrativa em si. Desde a composição do Museu e da Igreja à distribuição de seus habitantes nas ruas da cidade, a pequena Bacurau parece ter uma vida própria, e que o espectador só vê parte dela. Muitos detalhes de como Bacurau funciona e se rege são apenas postos na narrativa, mas nunca necessariamente esmiuçados, como se nem mesmo nós somos completamente dignos de confiança. E Bacurau dá bons motivos para não sermos.
Essa construção de identidade de uma comunidade é um processo complexo, e é fácil cair na armadilha de parecer estar filmando um zoológico sem conseguir dar ideia de como as figuras marcantes de Bacurau convivem entre si. Só que Bacurau é um filme de ação, de cima a baixo, e como todo bom filme de ação sua narrativa está sempre seguindo em frente, a passos rápidos; e seu fôlego evita que ele se perca em observações que possam remover dessas pessoas, e dessa identidade de comunidade, seus mistérios que as tornam reais e a inteligência que um filme do gênero requer de seus personagens evita que ele remova deles agência e percepção do mundo que os cercam. É quando a ação engrena, na sua segunda parte, que Bacurau mostra suas garras (e suas referências mais explícitas à John Carpenter, o diretor de Eles Vivem, Fuga de Nova York e do Halloween original).
Bacurau é um filme inteligente o suficiente para saber o que o espectador quer depois de toda a construção de mundo da sua primeira parte, e por um breve momento o filme parece que vai entregar o oposto. Como todo o bom filme, Bacurau não entrega nem um nem outro, mas aquilo que soa natural à si mesmo, e nesse caso é uma história furiosa que vai deixar seu espectador igualmente furioso, e com isso dar a ele alguns dos momentos mais catárticos que um filme vai dar esse ano. Em uma das melhores cenas do ano, quando a tragédia parece posta de vez em Bacurau, o filme explode em sangue e é difícil não se surpreender, mas também não sentir que essa fúria, que o filme imprime mas que existe no brasileiro há alguns anos, é recompensada. Nós imaginamos o pior dos resultados nesse momento específico, mas o brasileiro sempre surpreende. Se em O Som ao Redor essa declaração era complexificada por causa da discordância de vozes de seus personagens, em Bacurau ela é posta num tiro e mirada na cabeça do vilão — só há um sentido, só há um resultado, e tomara que ele dê certo.
Em uma cena anterior, quando uma dupla de forasteiros pergunta o que significa o nome da cidade, uma das habitantes explica que Bacurau é o nome de uma ave da região que só sai à noite e, como Bacurau faz questão de entender, ele está furioso.