É cansativo viver em 2019. Nunca tivemos tanto poder sobre a informação — podemos aprender sobre qualquer coisa e podemos estar a par de qualquer notícia a qualquer momento — e, enquanto isso é bom para a maior parte, eu acho que teve alguns efeitos colaterais estranhos em minha mente. É fácil se perder nesse acesso infinito. Podemos ter a ilusão de que sabemos tudo ou que podemos saber tudo. Assim, abraçamos a crença de que as injustiças podem ser desfeitas e verdades objetivas são o cerne das regras em que vivemos. Mas ter essa quantidade de informações também deixa claro que não podemos consertar todos os problemas deste mundo e que, como por mais que discutamos, brigamos e ficamos com raiva na internet, as coisas não vão ficar bem no final do dia, porque do outro lado da seção de comentários há outro ser vivo, que teoricamente tem tanto acesso à informação quanto você, e mesmo assim ainda pensa diferente. A era em que vivemos nos torna conscientes do estado do mundo, e ele não vai bem, e nos pede para fazer algo sobre isso. Mas também nos torna conscientes de quão pequenos somos, como só podemos realizar um certo tanto, e como essa lacuna entre o que deve ser feito e o que podemos fazer é maior do que nossos comentários irritados na internet fazem parecer.
Eu vivi no meio de uma depressão nos últimos dois anos, e é uma luta constante para encontrar um significado para a vida. Não o Sentido da Vida, aquele grande desconhecido da existência humana, mas um significado para acordar de manhã, fazer algum trabalho, pegar algo para comer e dormir novamente. Parecia egoísta para mim, estar perdido em minha própria mente e em meu próprio conflito interno enquanto o mundo desmorona. Como eu poderia encontrar um lugar no mundo se eu não sei se ele vai estar lá se eu conseguisse sair dessa algum dia?
Esses últimos dois anos me fizeram reconsiderar muito. O que eu fiz com a minha vida, o que eu acreditava ser meus sonhos e o que eu deveria esperar de mim mesmo. Ainda há alguns dias que eu acordo e luto para entender um pouco disso tudo. Eu também tive um bom tempo para considerar o que aconteceu com a Internet, porque muito de mim, minha própria existência e talvez de toda a minha geração existe não apenas neste mundo agonizante, mas também nesta tela brilhante que adorávamos porque nós podíamos ser nós mesmos, e agora odiamos, porque o que revelou sobre nós mesmos não era tão bom assim. Eu vi como o Facebook e o Twitter e o Medium e o YouTube e etc. transformou notícias e informações em um sistema de gamificação, onde havia dois lados, o certo e o errado, os vencedores e os perdedores, e deveríamos lutar uns contra os outros para que pudéssemos ganhar essa pequena dose de dopamina quando conseguíamos aquela Curtida contra essa outra pessoa que estava errada. Isso nos deixou amargos, nos deixou mais irritados.
Como eu disse, cansativo.
Então, como eu poderia encontrar significado, ou pelo menos tentar desempacotar tudo isso, na bagunça em que vivemos agora? Como eu poderia sair daquele casulo de autodestruição sem querer voltar a ele no momento em que visse como é a extinção? Bem, eu comecei a ler tirinhas.
Animatiras, por Jean Galvão
Meu primeiro contato com tirinhas aconteceu na Revista Recreio. Eu comprava a revista por causa dos Letronix, e nunca lia as matérias da revista porque eram longas demais e eu ficava cansado, mas na última página da revista tinha uma seção de tiras. A minha favorita era a Animatiras, do Jean Galvão. O personagem principal era o Tuneba (vocês não sabem a alegria que eu tive planejando esse post de descobrir que eu lembrava o nome dele), mas o grupo de amigos era extenso. A página também me apresentou aos clássicos, e a partir dela eu conheci a Mafalda, o Calvin e Haroldo e a minha grande paixão até hoje, Peanuts.
Eu não sei o que me levou a parar de ler tirinhas, mas provavelmente foi porque existe muito conteúdo na internet, e a gente sempre acaba substituindo algo por outra coisa. Por muito tempo eu ligava meu computador pra começar a trabalhar pela manhã e a primeira coisa que eu fazia era ler alguns tuítes. Nos últimos anos isso me fazia mais mal do que bem, e então eu voltei a adotar o leitor de RSS, essa tecnologia de dinossauro. Além de uns blogs que eu sempre gostei de ler e um ou outro colunista de jornal, eu lembrei como era bom ler Peanuts de manhã, então comecei a assinar o feed de tirinhas. É como se fosse um jornal: todo o dia pela manhã, em meio aos posts que eu leio, há quatro quadros com a turma do Charlie Brown tentando resolver algum problema, ou simplesmente se deparando com um, e aprendendo a viver com ele.
Outros autores mais inteligentes são capazes de explicar a genialidade desse formato. Umberto Eco, por exemplo, era o maior fã de Peanuts. Para mim, resta apenas dizer que ver que esse confronto dos últimos anos não é algo exclusivo meu, mas sim o cotidiano de todo o mundo, aparentemente. A natureza fechada desses pequenos quadros diários não me permite mergulhar na melancolia de Charlie Brown ou no medo do Calvin, mas me permite olhar para eles e ver que sim, mais alguém passou por isso. Não existem muitas soluções para os problemas dos personagens dessas tirinhas. A gente nunca sentiu tanto o peso do mundo nas nossas costas como agora, a pressão de fazer algo porque o tempo tá acabando ao mesmo tempo em que a gente precisa dar um jeito na nossa vida. O que Peanuts e Mafalda e Nancy me lembram, um pouco todos os dias, é que nem sempre a gente vai conseguir dar um jeito. Mas a vida continua, e na manhã seguinte o Snoopy vai escrever mais uma página do seu grande romance.
A simplicidade de uma tirinha — alguns poucos quadros, um acontecimento simples, e as vezes uma piada — é revigorante nesse rio eterno de informação que a gente vive hoje em dia. Episódios de séries estão cada vez maiores, franquias de cinema não acabam nunca. Um artigo sobre o último tuíte do Bolsonaro faz a gente se sentir tão mal que a gente passa vinte minutos lendo ele aos poucos. Saber se o Snoopy vai conseguir derrubar Woodstock do galho demora vinte segundos, mas traz uma finalidade. Essa simplicidade tambémesconde o que as tirinhas parecem fazer de melhor pra mim: refletir um pouco o constante desafio que é viver o cotidiano, se deparar com obstáculos grande demais. Da falta que uma mãe faz para seu filho à frustração de não ser bom o suficiente naquilo que você queria ser excelente. No meio de tanta coisa que vai contra esses personagens, o que dá a eles a força para seguir em frente?
Seja Charlie Brown encarando seu fracasso ou a Mônica aprendendo a lidar com o ego, esses personagens enfrentam o cotidiano de uma forma semelhante a nossa: um pouquinho a cada dia. As tirinhas são um espaço curto para Grandes Declarações da Humanidade, então elas trabalham muito mais em refletir algo eventual, e isso acaba criando uma aproximação nossa com os acontecimentos da vida desses personagens, que geralmente são coisas pequenas, nada excepcionais. Como no nosso dia-a-dia, onde a gente enfrenta não só os nossos conflitos internos constantemente, mas também essa e aquela tarefa do cotidiano. Entào a gente dorme, acorda no outro dia, e encontra elas de novo.
Peanuts, por Charles M. Schulz
Não digo que esse foi o antídoto da minha tristeza, e nem que essa é a solução definitiva para os problemas do mundo. Mas encontrar conforto num breve momento de empatia com o outro todos os dias ajudou a me deixar saudável, e a querer ficar saudável para seguir em frente. Isso eventualmente me ajudou a escrever mais, a me preocupar mais comigo mesmo e com as pessoas ao meu redor e, o mais importante, me fez aprender a apreciar esses breves momentos de uma introspecção repentina que acontece, seja na hora de lavar a louça ou quando a gente sai do ônibus e um carro passa e nos enxarca com a água da rua. Apreciar esses pequenos momentos no papel me fez ver eles de uma nova forma na vida real. É algo que eu pretendo levar no meu dia-a-dia daqui pra frente.