Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar

“Bem-vindos à capital do jeans”

Lá pelo final do novo documentário de Marcelo Gomes Estou me guardando para quando o carnaval chegar (nos cinemas), ele nos revela que seu pai lhe dizia que o nome da cidade de Toritama significa, em Tupi-Guarani, “Terra da Felicidade”. O documentário inteiro é uma busca do diretor, de querer descobrir o que aconteceu nessa cidade onde viajava com o pai, funcionário público, na infância, e porque a “terra da felicidade” tornou-se um lugar de onde, no carnaval, todos fogem para que possam ser felizes.

O título do filme, também música de Chico Buarque, é quase explicativo quanto à abordagem do tema, e já sugere essa analogia com a mentalidade cristã no sentido de que a vida só começa depois que se morre, segundo o evangelho do novo testamento - com a revolução industrial, o trabalho no século XX e XXI tomaria esse lugar do tempo e da vida, esse meio pelo qual encontra-se a dignidade, esse calvário que deve salvar o mundo inteiro dos sofrimentos e dos pecados. Lá pelas tantas outras analogias com a religião são feitas, muito para falar do exercício de fé que esse “progresso” exige.

Existe uma temática e uma conduta recorrentes que podem ser percebidas na obra de Marcelo Gomes, sobre como a vida humana acontece, no sentido da passagem temporal, entre rotas de consumo e a repetição do trabalho mesclados com uma camada mais passional e calorosa. Nesse novo longa-metragem todo esse estudo parece fazer mais sentido do que nunca, assim como essa tentativa sempre muito interessante de promover uma “universalização” dessas discussões sugerindo um encontro guiado com as realidades e identidades brasileiras. O próprio diretor em um dos off’s se autointitula “fiscal do tempo alheio”, em uma brincadeira sobre o trabalho do pai. Podemos citar também à recorrência do tema da chegada do “desenvolvimento” no agreste, também trabalhada em “Cinema, Aspirinas e Urubus” - sempre buscando questionar a real face desse desenvolvimento, sem esquecer de suas personagens.

Poderíamos afirmar que é uma guinada a alguma espécie de autocrítica, operada através da aproximação do diretor com as personagens, o grande mérito no sentido de dar ao filme esse tom tão sincero. Marcelo Gomes não só se expõe ao seu espectador, como se expõe aos personagens, ele se coloca diante deles como o corpo estranho que de fato é, e não poupa o espectador dos ruídos de comunicação que muitas vezes surgem, por ser ele alguém que ali realiza um trabalho que, de início, julga ser de uma natureza um tanto diversa daqueles outros a quem documenta. Sabe evitar cair na nostalgia que aquele lugar inevitavelmente lhe desperta, e coloca-se como que quer apreender aquele novo lugar, entender a vida que acontece ali.

Cena do filme Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar

Parece se mostrar de um cinema que já esgotou-se um tanto em sua vontade de falar e dizer coisas, gritá-las aos quatro cantos. O que parece importante em “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” é o saber querer ouvir. Uma escolha que se coloca acima de todas as outras, que permite ao filme ir além dos simples motivos apresentados, ou de qualquer leitura que se possa provocar - mas que nos indicia toda uma conduta que se modifica e permite questionar-se na medida em que se desenvolve.

Nesse cinema que se concentrava em querer falar, a tônica acabava sendo a do reforço de certos esteriótipos, afinal de contas quando tudo o que se quer é, a todo o custo, dizer algo, essa fala acaba poluída pelos desejos e preconceitos daqueles que a detém. Já em filmes nos quais a conduta é querer ouvir, o próprio ofício do cineasta acaba sendo fragilizado, suas verdades são colocadas à prova e os esteriótipos acabam se quebrando. Vemos periferias que não são mais feitas só de crimes ou do tráfico, um agreste que não vive só da seca e da pobreza, etc.

O mesmo acontece aqui, Marcelo chega em Toritama pronto para denunciar a precarização do trabalho e o absurdo das condições encontradas, só faltou combinar com aqueles que são os personagens principais de tudo isso: os trabalhadores. Aquela cidade romantizada, cheia de vazios e de não-lugares, que recorda das viagens de infância com o pai torna-se uma lembrança desafiada pela “verdade” proferida pelos seus moradores: o jeans chegado recentemente é uma benção, uma possibilidade de trabalho e de mudança de vida para aqueles que lá vivem suas vidas, ou pelo menos assim pensam estes. Ou foram convencidos a pensar assim.

O filme se faz de poesia, de saber entender as realidades - e não oferece uma resposta final. Não há aqui dualidade qualquer que globalize o entendimento, mas uma amostragem sólida das experiências todas. Desde a experiência daqueles que estão lá, até a experiência do diretor em realizar um filme que, de certa forma, o coloca em uma posição bastante delicada, pois, como dito anteriormente, são muito frequentes os momentos onde, diante dos próprios entrevistados, é o diretor é quem se coloca no fogo cruzado.

Percebe-se que nem a afirmação dos trabalhadores em favor de sua realidade, nem a intenção inicial de denunciar a precarização das condições das fabriquetas (facções) se concretizam de fato. É como se víssemos na tela um filme que nunca aconteceu, uma espécie de sonho que hora toca a realidade, e hora se reconhece incapaz de compreendê-la - na verdade demonstra um profundo respeito pelo que encontra no caminho, tem uma forma muito comedida e equilibrada de se posicionar, sem nunca querer fazer-se com a razão.

Aquela câmera que deveria intimidar o retratado acaba sendo uma espécie de cruz aqueles que a operam - afinal de contas, é um documentário que busca discutir o trabalho, e o documentarista trabalha enquanto filma. Enquanto questiona todos aqueles sobre o seus ofícios, no final das contas o seu produto é que será posto em prova nas telas de cinema, nas críticas de revistas e blogs e sites. Impossível seria defender que seu tempo ao filmar aquelas vidas é melhor gasto do o tempo daqueles que as vivem de fato, seria cair em contradição. Felizmente o discurso toma outros caminhos.

E é através dessa espécie de paradoxo que envolve trabalhar filmando um documentário sobre trabalho que Marcelo e a equipe conseguem, de fato, operar essa aproximação e extrair algo das entrevistas que só eles próprios poderiam fazê-lo - e é a isso que nos referimos quando falamos da autocrítica, de saber o seu lugar dentro dessas realidades e relações, expor ao espectador (não negá-lo, pelo menos) esse filme planejado modificando-se, esse filme poluído o tempo todo por uma quebra de expectativas e de esteriótipos.

No jogo de egos que pode envolver o fazer cinema, feliz é aquele que permite fragilizar-se, colocar a si mesmo em local de vulnerabilidade.

O filme tem a pertinência de falar desse complexo Brasil atual, de sonhos autônomos de precarização do trabalho, e o cuidado com que consegue chegar nas pessoas é bastante notório. Reconhece ser um filme sobre um lugar, e sabe dar voz àqueles que dedicaram sua vida a ele - fala sobre o tempo deixado nesse lugar, o tempo gasto, vivido, trabalhado. Traz essa questão da temporalidade para um campo mais intelectual, mas faz isso sem perder o carinho e a aproximação que conquistou pelas personagens.

A vida é cheia de inseguranças, e poucas são as garantias, é maravilhoso ver que diante disso tudo o filme não escolhe trilhar caminhos fáceis, mesmo quando eles pareciam se mostrar possíveis o tempo todo. O caminho que se escolhe é doloroso, como já dito, de colocar-se no filme, de fazer a si próprio também objeto e subproduto de todas aquelas relações - sua transgressão está, de maneira muito pertinente, em uma espécie de passividade mediadora. De quem pergunta as horas pensando saber a resposta, e se surpreende quando ouve que já passou mais tempo do que pensava.

Novamente, chegamos até esse agreste perdido em sonhos mercantis de liberdade e vida, como em “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, e mais uma vez o narrador/observador sente determinado incômodo com aquilo que ele próprio tira de dado intelectual de todas as vidas encontradas, instaura-se aí um desconforto criativo, um fazer movimentar-se e se modificarem as razões pelas quais o filme acontece.

Esse desconforto só será sanado de fato no carnaval, quando a própria equipe de filmagem tira as suas férias, e continuar o filme torna-se papel dos próprios personagens. Em algum instante, entre a praia e as festas, Leo, personagem principal, filma um homem na rede e faz-lhe perguntas sobre sua vida - como se tivesse aprendido um novo ofício em poucos instantes, com todo um desejo de expressão ele parece convencido de que a labuta da equipe de filmagens é, para ele, apenas carnaval.