Eu nunca tinha assistido ao filme do Marcelo Gomes e do Karin Ainoz, e ainda tento digerir algumas das sensações que ele me causou. Fazia muito tempo que eu não tinha uma experiência tão complexa assim com o cinema. O filme meio que falou comigo em um nível que me fez, de certa forma, desarmado para uma visão mais analítica. Existe um tanto que não tá ali, que tá dentro da gente, que é pra gente preencher para que aquilo que de fato está ali se mostrar de um jeito único pra cada um. Isso tem sido bastante discutido e comentado no estudo do cinema contemporâneo - a gente pode citar, por exemplo, o trabalho de Umberto Eco, que identificou essa tendência da arte mais contemporânea e nos trouxe o conceito de “obra aberta”, que diz respeito, justamente, a essa abertura, essa abordagem diversa da temporalidade, essa indefinição poética; entretanto, o cuidado ao configurar a forma com que aquilo que o filme dá de objetivo, influencia nesse tanto de energia (e de interpretação, em um sentido mais qualitativo) que a gente usa pra preencher as lacunas é o que torna a experiência com esse filme tão particular.
É uma espécie de vídeo-diário de viagem de José Renato, um geólogo que atravessa o sertão nordestino estudando as condições do solo para a abertura de um canal que desviará a água do único rio próximo para abastecimento da região semi desértica. E no começo é tudo sobre trabalho, sobre planejar a viagem e estudar as características do solo, mas não demora nada, na verdade, para que a população desses lugares, grande parte que será desabrigada para a passagem do novo canal, ganhe a atenção dele. Isso porque, de certo modo, existe também dentro do José uma sensação de abandono e de estar sendo deixado de lado, “levado um pé na bunda”, como ele mesmo nos diz através de sua narração. José é alguém que está com o coração machucado e que tenta esquecer um amor, e é por isso que, por onde olha, procura afeto, procura algum tipo de conexão amorosa que confirme essa teoria que já não consegue mais acreditar: de que o amor existe de verdade, e não é só mais uma dessas coisas inventadas para nos distrair até o dia da morte.
O que ele encontra no caminho são tantas e tantas pessoas perdidas nessa mesma ideia, que ao mesmo tempo que lhes limita a um ideal um tanto patológico de amor romântico, traz em si uma promessa de futuro, de não-solidão, muito necessária para se levar a vida por aqueles cantos. E é nesse jogo que está o grande acerto por parte das escolhas estéticas do filme: a narração acontece em um tom um pouco rancoroso, corrosivo e melancólico, se posicionando contra esses desejos, ao mesmo tempo em que sucumbe a eles de uma forma inevitável, enquanto as imagens captadas mostram um tipo de afeto que parece transcender tudo isso, que parece uma espécie de manifestação do corpo. Que também rejeita e critica todos esses desejos, que também teme se perder em sonho e depois não mais saber o caminho de volta.
“Sinto amores e ódios repentinos por você”.
Essa “abertura” interpretativa, que parece nos desafiar, também tem um poder imersivo muito forte. É quase como se nos sentíssemos fazendo aquela mesma viagem, sentindo aquela mesma solidão, e naqueles mesmos lugres, a aridez do sertão, e a sensação de agonia pela “paisagem que não muda nunca”.
E mais do que isso, viagens transformam as pessoas, não se vai e se volta o mesmo, nunca. Para José, existe um contexto que guia o seu olhar por essa viagem, que é o contexto desse afeto errante e desencontrado, mas existe, acima disso, um motivo, uma razão para a sua viagem, e essa razão é o próprio trabalho, o seu ofício.
Amor e trabalho são dois assuntos que se cruzam o tempo todo ao longo do filme, são temas que encontram uma relação um tanto diversa, mas que fazem parte dessa visão que preserva uma relação quase barroca entre crítica e aceitação, mas que, entre denunciar essa ideia romântica de amor como subproduto do capitalismo e (quase) da pobreza, e se entregar a essa mesma sensação de carinho e “chamego”, acaba levando um forte baque através das imagens que evidenciam vidas irredutíveis a um simples estudo social de seus afetos.
Como quando o narrador parece desdenhar as flores artesanais “gotas de orvalho artificiais, em pétalas de plástico”, e a imagem que vemos na tela é a de uma senhora fabricando um desses buquês de flores “falsas”, recortando suas pétalas com certo vigor — quem no mundo pode dizer que o esforço (trabalho) posto naquelas flores não lhe garantem também vida? pode essa ser uma “verdade” tão válida quanto a seiva que corre nas rosas enraizadas no chão. É quase como se o narrador, apressado por uma análise fria e dolorosa, percebesse a si mesmo como alguém incapaz de compreender a real dimensão desses amores a que reclama.
Como quando fala de seu antigo relacionamento, “eu geólogo, ela botânica… o casamento perfeito”, novamente, o que justifica o “casamento perfeito”, mesmo para ele, que olha de maneira tão crítica essa idealização e objetificação do afeto, é uma relação de suas profissões, de suas “funções” no mundo.
Ele viaja a trabalho, e passa a noite com mulheres que têm como ofício cumprir momentaneamente as lacunas que essa idealização toda exige do corpo: o sexo.
É, basicamente, um filme sobre encontros, sobre ir em busca de algo e estar disposto a encontrá-lo na forma em que este objeto de desejo se encontra: o casal que o fotógrafo se recusa a filmar em separado no mesmo plano. É fruto da obsessão pelo seguimento de uma espécie de centelha fundamental nos trabalhos de direção, cinematografia e montagem.
Mas é muito mais do que isso: é uma busca pessoal daqueles que realizam esse filme atrás desse afeto de difícil encontro. E isso está acima de qualquer limitação imaginada a um planejamento estético/técnico, tanto é que o filme passa longe de estabelecer - em qualquer momento - uma unidade de fruição, uma linha que ensina o espectador sobre os seus modos de se apresentar. Isso porque a forma com que se deram as escolhas de como retratar e apresentar as ideias estão muito afetadas, justamente, por esse encontro; pela euforia passageira gerada por ele. Passageira e inesquecível, como um amor, uma paixão.
O pretendido nesse filme não é demonstrar, em forma de texto fílmico, o que foi esse encontro, mas preservar esse efeito de encontrar, preservar as sensações ligeiras que surgem destas sinapses, de todo um imaginário (que envolve amor e romance) que é subvertido e posto em prova quando o espectador vê tais afetos, daquele local em particular, sob a perspectiva daquele narrador; entretanto, torna-se necessário dizer (como já foi apontado) que neste caso cada espectador também transforma o filme e age sobre todos os outros fatores.
Lembra um tanto Guimarães Rosa, não só a relação clara que existe com Grandes Sertões, mas também porque a personagem principal tem uma relação (que desconheço se proposital, ou não) com o trabalho do escritor. Guimarães era médico e escreveu grande parte de sua obra nesse exercício de suas profissões, sobre os lugares a que viajava como voluntário, para atender seus pacientes no sertão goiano, criava vínculo com as pessoas que encontrava, e dedicava a sua literatura à preservação de suas identidades, e só havia um jeito de fazer isso: não lhe bastava criar histórias fictícias de grandes combates épicos e personagens idealizadas como fez o gaúcho Simões Lopes Neto, mas era preciso utilizar a linguagem escrita, a estética da literatura, para preservar essa sensação de encontro que ele sentia - a presença de Diadorim, a ausência do pai em A Terceira Margem do Rio. Como expoente da modernidade na literatura nacional traçava, através de suas escolhas estéticas na escrita, um caminho muito semelhante aos caminhos de Viajo porque preciso, volto porque te amo.
E logo por ser esse encontro tão caro ao filme é que a forma com que ele acontece, juntando as sensações que as imagens e a narração se propõe a provocar com aquilo tudo que já existe dentro da gente, gera essa experiência única de assistir na tela um filme inteiro acontecer dentro de nós, mexendo com algumas energias e sensações errantes, que nunca nem chegaram a se transfigurar em pensamento - fazendo referência a um novo encontro, este interiorizado, das coisas que pensamos enxergar nas imagens do filme, mas que na verdade estão dentro de nós.
“Acordei no meio da noite suando em bicas. Tive um sonho em que eu tava numa sala de cirurgia… aí vinha uma mulher vestida de médica e raspava meu cabelo todinho e eu ficava careca. Depois vinha outro médico e me perguntava se as dores de cabeça eram constantes, e eu dizia que sim. Aí ele perguntava em que região da cabeça, e eu apontava com o dedo no lugar. Aí ele abria minha cabeça, com bisturi, e saía pedacinhos do teu corpo… de dentro da minha cabeça, galega.”
As imagens em Viajo porque preciso, volto porque te amo não querem simplesmente entrar nessa área desconhecida de nossos sonhos, medos e pensamentos para enraizarem-se ali como se fossem parasitas, elas querem é mexer com tudo o que está lá dentro, poluir esses ideais, fazer com que todas essas coisas deixem de fazer sentido, que as visões de mundo, amor e afeto se transformem - ou melhor, se transfigurem.
É por isso que os diretores saem pelo sertão a fora munidos de câmeras e em busca das mais diversas manifestações desses sentimentos, porque não conseguem (assim como a personagem) aceitar que o amor sempre terá um final triste e inevitável, de quem percebe que gente não é coisa e nem produto, de quem percebe que a vida do outro vai além dos nossos próprios pensamentos e desejos. Que quando a gente não tá perto da pessoa amada ela não para de viver, porque ela já vivia antes a própria vida, e vai continuar a vivê-la depois da gente também. Porque não existe mais estado totalitário monárquico que esse amor “romântico” precise enfrentar… e é assim, justamente assim, que ele perde todo o seu sentido. Como um veterano de guerra, vagando pelo campo de uma batalha já encerrada.
Mas essa ideia de amor romântico, monogâmico, não pode ser dita também assim, como algo que foge ao natural, pelo menos não à uma “natureza fenomenológica”; pois assim como a personagem do filme sente essas coisas, todos nós também sentimos, porque são os seres humanos capazes de fazer sentir o criado, o inventado, o simulacro do que deveriam ser as coisas em sua “gênese” - também porque acreditamos em gênesis e criações - e é aí que voltamos às flores de plástico, elas são a prova de que podemos “criar” as bases de nossos afetos, e sentir uma amor distante de algumas dessas nocividades.
No final das contas o filme parece dizer que é isso mesmo, que só existe amor porque um dia alguém inventou. E mostra que é menos doloroso percebê-lo como artificio, e tentar criar a partir disso a sua própria verdade. Porque sentimentos são também fruto de esforços, de tentativa e erro - de encontros planejados.
Acho que o lance do “amor de verdade” pode levar a uma interpretação que não é bem o que eu quis dizer, acho melhor não arriscar. Acabei mudando o resto da frase pra fazer mais sentído.
Onde posso assistir Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo? O filme possui uma linda edição que acompanha um livro com a transcrição dos relatos de José — ela está disponível na Amazon. Você também pode assistir o filme no YouTube.
Já que falamos em Guimarães Rosa, talvez seja interessante aproveitar a carona de Ainouz e seguir viagem pelos afetos destes sertões:
A João Guimarães Rosa (Marcelo Tassara, 1968):
Você pode ler A Terceira Margem do Rio.