Existe um grande jogo dentro de Spore

É difícil pra mim escrever sobre Spore, o jogo de simulação do mesmo criador de The Sims e SimCity que, antes do seu lançamento, parecia ser o jogo que mudaria tudo. Lançado em 2008, depois de atrasos consecutivos e hype acumulado, a revolução que Spore parecia trazer era assunto nas revistas New York Times Magazine e New Yorker. Cada demonstração do jogo era notícia nos sites especializados, e cada atraso criava especulações crescentes da comunidade.

Spore entrou na minha vida muito antes do seu lançamento, em 2008. Ele me ajudou a encontrar uma carreira como desenvolvedor web, me fez entender o que cada componente de um computador faz, me incentivou a aprender a ler em inglês e me apresentou a ideia de participar de uma comunidade na internet. Para um garoto impressionado e tímido de onze anos, que entrou em uma nova escola, o refúgio era a ideia de chegar em casa e aprender HTML para escrever no blog que criou sobre um jogo que não tinha nem data de lançamento ainda, para conversar com outras pessoas com a mesma curiosidade que ele.

Quando foi lançado em setembro de 2008, Spore foi aquele banho de água fria em todo o mundo. Ele estava longe de ser um jogo revolucionário como as pessoas esperavam, e longe de ser o sucesso estrondoso que a EA havia sonhado para acompanhar The Sims.

Mesmo assim, é impossível para mim não olhar para a grandeza do escopo de Spore e não ficar fascinado. É um jogo que incentiva a criatividade mais do que qualquer um antes dele, e que deu ferramentas simples e para que qualquer um se achasse um verdadeiro artista de modelagem 3D. É um jogo feito de lindas contradições (um god game que simula a evolução de uma espécie) unidas por uma ideia visual simples e eficaz: o grande zoom que, com o passar das gerações, revela mais e mais o contexto em que essa espécie vive, exibindo a selva, o continente, o mundo até eventualmente atingir o espaço.

Embora seja muito para digerir na teoria, Spore começa executando ela na menor escala. O primeiro estágio, Célula, é uma espécie de Pac-Man onde o jogador controla uma pequena mistura de bolha de ar com olhos em um oceano em nível microscópico. É uma fase de apontar-e-clicar onde você deve se alimentar daquilo que é menor que você, e fugir daquilo que é maior. É tão pequeno e tão breve que essa fase não permite sequer salvar o jogo antes de terminá-la: você nada por esse oceano infinito enfrentando e fugindo de outras células conforme aprimora a sua com espinhos e nadadeiras melhores, coletando DNA toda a vez que você come e, com isso, definindo a dieta da sua espécie. Conforme você vai chegando na superfície, mais a câmera se afasta para exibir mais do mundo à sua volta — isso é útil tanto em jogabilidade (é possível ver melhor onde está a comida e quantos inimigos estão por perto) quanto no contexto geral de Spore. É algo que o jogo vai fazer até o final.

Quando era demonstrado ao público nos anos de 2006 e 2007, o grande destaque de Spore geralmente era o estágio da Criatura. E há um motivo para isso: é o primeiro grande momento do jogo, que apresenta o belo balanço da simplicidade da sua jogabilidade com a complexidade que vem das suas ferramentas de criação. Em uma fase que se baseia explicitamente em Diablo, você controla uma criatura que se desenvolve em terra firme interagindo (ou atacando) outras criaturas. Eventualmente, você acasala e tem acesso à verdadeira revolução de Spore: seu Criador de Criaturas. Uma poderosa, mas simples ferramenta de criação de personagens, que permite criar coisas realmente fantásticas, que eventualmente foi utilizada no também simples e poderoso Criar-Um-Sim de The Sims 4. A criação e evolução de uma criatura nesse estágio revela o belo balanço entre complexidade estratégica que permeia Spore, entre criar a espécie que você quer, e a que tem o que é necessário para sobreviver no mundo ao redor dela. Suas escolhas no Criador vão definir sua estratégia durante o estágio, que irão influenciar suas próximas decisões ao editar sua criatura novamente.

O objetivo de sua criatura é criar um bando e, ao fazer isso, sua espécie evolui para o terceiro estágio, a Tribo. É esse estágio que apresenta uma contradição fatal. A partir desse estágio, o jogador não controla mais uma criatura e sim uma sociedade. Mas se na fase da Criatura havia uma escolha entre como o jogador quer que a espécie prospere com o que é necessário para evoluir, nas fases de Tribo e Civilização só há um caminho para a evolução: a destruição. Agora, embora o jogo permita que você crie edifícios e veículos para sua civilização, o único caminho para o desenvolvimento é a dominação de outras espécies e de outras culturas. Até mesmo uma postura “pacífica” nesses estágios oferece uma ação de dominação: ou você conquista civilizações vizinhas através da guerra, ou da doutrinação religiosa, ou da compra dessas comunidades. Não existe a possibilidade de unir espécies diferentes, ou de uma civilização coexistir com a outra. No papel, Spore pretende dar ao jogador o poder de controlar a evolução de uma espécie mas, quando chega no estágio de Tribo e Civilização, o jogo se fecha demais no paradigma humano da evolução, e não permite que o jogador decida um outro caminho. Em termos de jogabilidade, isso se transforma em uma série de ações repetidas de criar unidades, levar elas às outras civilizações e conquistá-las.

Captura de tela de uma criatura em Spore Olha que coisa bem fofa a minha criatura.

Talvez isso só seja mais frustrante porque, quando o jogador atinge o último estágio, Spore reabre suas possibilidades. O estágio do Espaço é quando Spore realmente brilha: você volta a controlar uma unidade — uma nave espacial —, depois de controlar tribos e civilizações, e com ela explora uma galáxia repleta de outras espécies criadas por outros jogadores, compartilhadas pela incrível Sporepédia (de longe meu recurso favorito do jogo). Durante todo o jogo, Spore modula a câmera do jogador para ir se afastando gradualmente conforme sua espécie fosse evoluindo. Na última fase, a câmera não só atinge sua última escala, mas o jogo também oferece ao jogador o poder de mudar ela. Você pode se aproximar de um planeta e observar as criaturas que o habitam, o comportamento da atmosfera ou guiar uma tribo de criaturas para o caminho do progresso. É um grande recurso, que faz o jogador apreciar todo o cuidado que foi dado ao desenvolvimento de Spore — desde a simulação de eventos meteorológicos até as conversas humoradas entre criaturas em uma cidade alienígena. E o jogador decide, aí, como essa civilização interplanetária irá se comportar: criando guerras ou alianças, estabelecendo relacionamentos econômicos ou vivendo simplesmente como viajantes, indo de estrela em estrela para conhecer qual a próxima fascinante, estranha, linda espécie que vive ali.

Demora, e encontra um grande, quase intransponível obstáculo em seu caminho, mas a jornada de Spore vale a pena. A primeira vez que eu pude dar zoom out do meu planeta e ver a galáxia meu queixo caiu. E agora, onze anos depois, fazendo isso de novo depois de anos sem tocar em Spore, aconteceu novamente. Você guia uma espécie por um longo, as vezes tortuoso caminho até atingir esse momento, e Spore faz ele valer a pena.

No fim, Spore me ensinou há anos que o caminho que tomamos não foi o melhor. Me forçando a seguir esse caminho de novo para que a espécie que eu criei pudesse avançar tecnologicamente, eu vi que os bons momentos que ela teve com outras criaturas lá no segundo estágio talvez fosse o verdadeiro ápice existencial. Na fase do Espaço, depois de eras e eras de evolução e sangue nas mãos, se lembrar de como essa jornada começou dá aquele sentimento nostálgico que é quase clichê. E talvez seja essa a força de Spore. Ao gradualmente expandir os horizontes de sua espécie, Spore faz sonhar mais longe. É uma última contradição, essa um tanto agridoce. Spore é um jogo que faz seu jogador sonhar com o que poderia ser feito para além de suas limitações. É o que evita ele de ser um grande jogo, é verdade, mas talvez seja justamente o que me faz voltar a pensar nele, e aprender com ele algo novo.


Spore está disponível na Origin, no Steam e no GOG. A coleção completa, que inclui os dois pacotes de expansão lançados pro jogo, está em promoção no GOG por R$ 15.