Au revoir Agnès Varda

Eu não lembro qual foi o primeiro filme que eu assisti de Agnès Varda, mas eu lembro como eu cheguei nele. Como todo o jovem que aprende sobre “cinema estrangeiro” no ensino médio, eu e o cineclube assistíamos a O Cão Andaluz porque, secretamente, a gente queria impressionar os mais jovens com o nosso gosto requintado de cinema — olha um olho estourando! A gente conversava sobre coisas como “surrealismo” e “nouvelle vague francesa”. A gente sabia que era cult, a gente não tinha ideia do porquê.

Foi quando eu resolvi me deparar com os filmes da nouvelle vague. Foi quando eu assisti O Acossado e fiquei impressionado como era diferente e, ao mesmo tempo, era uma versão primordial de coisas que eu gostava de assistir, como Pulp Fiction ou Seven. Depois eu assisti Os Incompreendidos, o dramalhão do Truffaut, e me senti ~profundo. Eu lembro de ter me perguntado o que assistir depois desses dois, e algumas pesquisas da internet depois eu estava baixando um filme de Agnès Varda.

Isso ficou na minha cabeça quando eu vi o anúncio do falecimento da mestra do cinema no fim de março. Lendo na timeline todas as lindas histórias de como as pessoas descobriram ou cruzaram com a arte de uma verdadeira lenda do cinema, que com 90 anos nunca parou de se questionar e de explorar o mundo e de pedir que a gente olhasse pra ele.

Uma das coisas em comum em todas essas histórias era sobre como elas se relacionavam com a figura de Varda que, nos últimos anos, se tornou uma presença na internet tanto quanto foi uma presença na cinefilia. Diferente da maioria dos artistas de sua geração, e de seu calibre, Varda se tornou mais e mais acessível com o passar dos anos. Não em questão da densidade de seus filmes (eles sempre tiveram essa complexa e minuciosa qualidade de serem leves), mas em pessoa mesmo. Ver um filme de Varda é como conhecer ou reencontrar uma amiga, voraz e faminta, e fazendo ela nos impressionar com as suas últimas viagens ou as últimas descobertas da sua vizinhança. Tudo era cinema para Varda e, enquanto ela segurou uma câmera, tudo foi cinema.

Da sua estreia La Pointe Courte ao seu grande término de carreira com Visages Villages (e sua despedida com Varda por Agnès), Agnès Varda andou na complexa linha da empatia. Seus filmes são, ao mesmo tempo, um retrato de quem ela foi em um determinado lugar e uma determinada época, e um instantâneo de algo que ela capturou em sua câmera. Muito disso se deve à como Varda foi uma desbravadora. Sua estreia é, hoje, considerada o grande início da nouvelle vague — um movimento de vanguarda do cinema francês que influenciou boa parte do cinema ocidental —, que contava uma história que ninguém parecia querer contar. E seus filmes seguintes, todos sobre histórias que ninguém nunca contou, ou contadas de uma forma que ninguém nunca pensou em contar, marca a carreira de uma diretora inquieta não pelo pioneirismo, mas pela necessidade de seguir em frente — e, nessa inquietação, abrir caminho para que nós possamos seguir adiante.

Talvez isso seja reflexo da mulher que Varda foi. Aos dezoito, mudou de nome para Agnès, porque gostava mais. Aos vinte e tantos, descobriu um corte de cabelo que a agradava, e o manteve pelo resto da vida. Em 1950 abriu sua própria produtora, Cine-Tamaris, para garantir seu poder sobre seus próprios filmes. E seus filmes, todos eles, refletem e expandem quem Varda foi naquele determinado momento de sua vida. Em 1970, enquanto cuidava de seu bebê Mathieu, Varda queria filmar e não queria ficar longe do filho, e então resolveu fazer um documentário das pessoas que conseguia filmar com a distância do cabo de eletrecidade da sua casa. O belíssimo fruto dessa inquietação, o documentário Daguerreótipos, captura não só a beleza da vida que Varda observou nos meses que esteve “presa” à casa, como da mãe sedenta de histórias para contar — e da artista que, como mágica mas também como arte, encontrava histórias em tudo.

Pessoas dançam na praia As Praias de Agnès

Talvez o que mais surpreenda na carreira de Varda não seja a sua constante reinvenção — de ícone vanguardista da nouvelle vague à diretora política nas décadas de 70 e 80 à ensaísta e documentarista dos últimos vinte anos. Mas, mesmo com filmes tão discrepantes, todos eles mantem uma mesma leveza, que qualquer diretor teme por parecer não profundo. É fácil ser denso, mas como é complexa a capacidade de flutuar no ar, e se tem algo que o cinema de Varda parece fazer é de flutuar entre os temas mais difíceis e mais distantes entre si, e encontrar uma humanidade que nunca suspeitaríamos. De uma foto que marcou a vida da diretora em Ulysse, das escadas que a levaram à cinemateca em Você tem lindas escadas, sabia?, ou à linda observação de como ela encontrou paz no ato de morrer em As Praias de Agnès. Que outro diretor, considerado um mestre por meio mundo, se permitiria co-dirigir um documentário que comenta a sua velhice como Varda fez em Visages Villages?

Agnès Varda comenta em um de seus filmes que ela não faz filmes porque ela quer mostrar, mas porque ela quer que as pessoas queiram ver. Seu filme-legado, As Praias de Agnès, termina simbolicamente com Varda em uma casa feita com os negativos de seu primeiro filme. Ela comenta que tem a impressão de que sempre viveu ali, naquele lar de cinema. Varda por Agnès, seu íltimo filme, um ensaio sobre seu cinema, garante que ela mesma feche a porta de sua carreira.

Há um poder em tomar para si a sua própria história, como Varda fez no final de sua carreira, principalmente de As Praias de Agnès para cá. Em uma linda passagem de Os Catadores & Eu, a diretora, fascinada com os avanços da captação digital de imagens e da portabilidade das novas câmeras, filma a estrada através de “uma lente” que faz com sua própria mão. E Varda nos mostra as rugas de sua mão, e as observa com cuidado, como se sobre elas passasse o tempo em si, impressionada que ela mesma possa filmar a própria mão. Aí está o cinema de Varda em um instante, de uma diretora que nunca deixou de explorar e descobrir, e nunca deixou de ficar fascinada pelo que pode filmar e contar para quem fosse curioso o suficiente para assistir.


Você pode ver vários filmes da Varda nos streamings por aí. O MUBI está com o especial Voilà Varda, com algumas das obras-primas da diretora: Tio Yanco, Os Panteras Negras, O Amor dos Leões, As Tais Cariátides e, em breve, Jacquot de Nantes e As Praias de Agnès, perfeito se você quer ter um panorama da amplitude do cinema de Varda. O Telecine Play tem quatro dos filmes mais famosos da carreira: os clássicos La Pointe Courte e Cléo das 5 às 7 e os incríveis Os Renegados e As Duas Faces da Felicidade. E no Looke você pode alugar Visages Villages, seu documentário mais recente.

Varda por Agnès deve lançar em breve no Brasil.