“Paris foi decapitada”, disse um homem ao New York Times quando o pináculo da Catedral de Notre Dame caiu, consumida pelas chamas.
Ainda não se tem ideia do quanto da Notre Dame se perdeu no incêndio de segunda-feira, mas o evento foi acompanhado pelo mundo com tristeza e desespero. O fogo não apenas ameaçou levar um dos mais conhecidos espaços sagrados do ocidente, e não apenas um tesouro artístico. Notre Dame, e obras arquitetônicas como ela espalhadas pelo mundo, são uma lembrança da realização humana como sociedade. Notre Dame não é a obra de uma pessoa, mas de gerações e gerações que a construíram, das gerações que a visitaram, e da geração que, por um momento, imaginou perdê-la.
A construção de Notre Dame levou cerca de duzentos anos. Começando em 1180, a catedral foi completada em meados de 1260. Ela sobreviveu à deterioração do tempo. Ela testemunhou a revolução francesa. Ela sobreviveu Napoleão e as duas grandes guerras. Ela esteve conosco na virada do milênio. Ela é de um tempo em que construções não eram orçadas e avaliadas pelo tempo que levariam para ser construídas, e sim quantos séculos ela continuaria imponente.
Notre Dame representa, em sua arquitetura e em seu legado como arte, a beleza da realização humana quando nós colocamos quantidades inimagináveis de tempo, recursos e de mãos humanas. É difícil de capturar a importância de uma realização assim, que nos conecta com o passado que levou à sua construção e aos eventos que se passaram nas suas portas — obras como Notre Dame são um legado que levamos como sociedade, que nos lembra o custo, de vidas e de recursos, que nos trouxe até onde estamos agora.
É uma grandiosidade difícil de capturar, e sentida apenas quando se permite estar dentro de um ambiente como a Notre Dame — ou no momento em que achamos que iremos perdê-la. A comoção vista ontem, e que me lembrou muito a tristeza profunda durante o incêndio do Museu Nacional ano passado, me remeteu à uma descrição de uma obra prima de Victor Hugo.
“Grandes construções, como grandes montanhas, são o trabalho de séculos”, escreve Hugo em Notre Dame de Paris, o romance que ficou conhecido por aqui como O Corcunda de Notre Dame. “A arte sofre uma transformação enquanto pendente […]. A nova arte toma o monumento onde o encontra, nele se incrusta, assimila-o a si mesmo, desenvolve-o de acordo com a sua fantasia e o termina se puder”. O autor continua:
O homem, o artista, o indivíduo, se apagam nessas grandes massas, que carecem do nome de seu autor; a inteligência humana está aí resumida e totalizada. O tempo é o arquiteto, a nação é o construtor.
Todas essas tonalidades, todas essas diferenças, não afetam apenas as superfícies dos edifícios. Foi a arte que mudou de pele. […]
Victor Hugo escreveu O Corcunda de Notre Dame como uma ode à catedral, que na época sucumbia à falta de restauro e manutenção. Notre Dame era considerada antiquada, símbolo de uma outra França, de um outro povo, e por isso acabou negligenciada e vandalizada. O livro de Victor Hugo, uma obra magnífica por si só (e muitíssimo extensa, não tome como parâmetro a [excelente] animação da Disney), lê-se hoje como uma celebração do quão magnífica era uma realização humana como a Notre Dame, e quão triste seria perdê-la — o livro começa com Hugo prevendo que a igreja em breve “desapareceria da face da terra”.
Mas é também uma lembrança que Notre Dame já esteve à beira de ser perdida, e foi reencontrada novamente (em grande parte, por causa da O Corcunda…) e hoje, tanto a catedral quanto o livro são exemplos daquilo que podemos criar, e testemunhas da passagem do tempo. Hugo descreve como as paredes de Notre Dame, tendo demorado séculos para ficarem prontas, carregam dentro delas a minúscia e o legado de diferentes artistas, de diferentes movimentos artísticos. A ideia de perder nem que seja parte de uma construção dessas é destruir parte desse legado, que tanto significa nosso passado e nos ensina um futuro.
Somados cada um desses artistas, cada um de seus restauradores, cada uma das pessoas que a visitou e criou memórias lá, está a perpétua construção da humanidade em si. Se transforma, se fortalece e eventualmente cai — para então, nas ruínas do que se restou, se unir e levantar de novo.
Você pode encontrar O Corcunda de Notre Dame, em livro ou ebook, na Amazon. O livro original, em francês, está disponível de graça no Projeto Gutenberg.