A terceira temporada de Serial começa com a história de Anna, uma mulher que se meteu em um briga de bar depois de vários homens agarrarem ela. Anna acabou sendo a única presa e acusada (de agredir um policial) no incidente. Durante o episódio, Anna vai precisar visitar o tribunal várias vezes para as várias etapas do seu julgamento; vai ser enterrada em taxas administrativas pra pagar; e vai aprender sobre “inocência como uma contravenção” — a ideia de que o sistema de justiça dá mais incentivos para encorajar pessoas marginalizadas para declarar-se como culpadas em crimes que elas não cometeram.
Mesmo assim, quando a apresentadora Sarah Koenig pergunta para o advogado e para a promotora do caso de Anna sobre como o processo judicial agiu sobre a jovem, eles comentam que esse é um exemplo do sistema funcionando como deve. Anna termina o primeiro episódio desempregada por causa do seu tempo presa aguardando julgamento; afogada na dívida das taxas judiciais inexplicáveis (seu advogado ri quando Koenig lê para ele o descritivo de cobrança); e com fome — ela está grávida. É impossível não ficar furioso ao final ao final do episódio. Como esse é o exemplo de um caso que deu certo para o tribunal?
Nós não ouvimos mais sobre Anna no restante da temporada de Serial. Em seu terceiro ano, o podcast que redefiniu todo o meio não esmiuça um acontecimento como fez nos anos anteriores. Ao descrever a abordagem, Sarah Koenig diz que a inspiração veio de ter sido questionada sobre o que as histórias das temporadas anteriores a ensinaram sobre a aplicação da lei nos EUA. Ambas as histórias são extraordinárias, Koenig explica, elas não podem servir de exemplo: poucos casos são sequer investigados no dia-a-dia de um tribunal ou tem repercurssão na mídia como o assassinato de Hae Min Lee e a captura de Bowe Bergdhal, os sujeitos das temporadas anteriores, tiveram. Por isso, Koenig e sua equipe passaram um ano gravando e ouvindo as histórias de um tribunal em Cleveland, onde Serial coloca sua lupa e sua capacidade de dissecar em mínimos detalhes, observando como esse sistema que “deu certo” com Anna age em outras histórias, quais suas repercussões na comunidade em que ele age e, então, no que ele revela sobre a sociedade americana como um todo. É ambicioso na teoria e sem precedentes na prática.
Nas temporadas anteriores, Serial usava sua serialidade para se aprofundar nas investigações e no diálogo entre cada pessoa envolvida. Sarah Koenig é uma grande contadora de histórias, e a sua capacidade de ouvir e estabelecer conexões entre diferentes partes de uma mesma história guiavam as duas primeiras temporadas com a fluidez de uma amiga nos contando algo curioso que descobriu no trabalho aquela semana. Nessa terceira temporada, sem a necessidade da continuidade de uma história que precisa sempre seguir em frente, Koenig usa as diferentes histórias para se aprofundar mais e mais na estrutura sistemática do tribunal de Cleveland e do sistema de justiça dos Estados Unidos como um todo. Ao fazer isso, o podcast leva junto consigo qualquer noção pré-concebida que o ouvinte tem de ideais de justiça e moral: dois episódios depois ouvimos a história de Erimius Spencer, preso e espancado por policiais que acharam ele, um homem negro, suspeito de estar batendo na porta da casa de seu amigo. No edifício em que ele mesmo mora.
Um artista foi convidado para aplicar um mural em uma área relevante para cada episódio.
Spencer acaba no hospital com um osso orbital quebrado, com risco de ficar cego. Em seguida, ouvimos um juiz ameaçar outro homem de aumentar sua sentença se ele tiver mais filhos. O réu escuta calado porque sabe que o Juiz Gaul, um homem branco, gosta de falar mas dá sentenças mais leves. Ouvindo essas histórias, a aparência de que o caso de Anna, que saiu da sua sentença apenas com uma dívida para a vida inteira, talvez tenha sido o melhor resultado possível.
Com esse mergulho, Serial nos proporciona uma visão íntima e horripilante de como os sistemas de justiça americanos interagem e afetam as comunidades às quais eles supostamente servem. Talvez o ponto alto da temporada seja no momento em que Koenig conhece a mãe de Tamir Rice, outro garoto negro morto por um policial branco na cidade. Em uma reunião da polícia com a população, impaciência de Samaria Rice é palpável. E Serial faz questão de mostrar o porquê quando um representante da polícia pergunta para ela — a mãe de um garoto morto pela mesma força policial — o que ela pode fazer para ajudá-los. Rice é categórica: não é papel da população ajudar a polícia à entendê-los, e sim da força de mudar seu pensamento de se defender mas confrontar a população. Koenig não pergunta para Rice o que ela quer dizer com isso, mas vai atrás da polícia em si para procurar ilustrar o problema. Minutos depois, ouvimos o presidente do sindicato dos policiais que a culpa da morte de qualquer suspeito morto pela polícia é do próprio suspeito. “Um garoto num corpo de homem”, o presidente diz. “Ele sabia exatamente porque os policiais estavam correndo atrás dele”. Ao invés de permitir a retórica racista do homem, Koenig apenas resume sua opinião como “Ações de suspeitos promovem a reação policial”, em uma aula de como apresentar ambos os lados sem propagandear o ódio de um dos lados.
É nesse terceiro episódio, a partir dessa fala de Samaria Rice, que Serial mostra o efeito-cascata da falta de confiança entre a comunidade e a polícia. Quando uma criança é morta na porta de casa e ninguém oferece informações do que aconteceu. Num lugar onde não há relações entre as forças da lei e a população, se alguém oferece algum detalhe ou é suspeito, ou é coagido. O que leva à pessoa errada a ser acusada. O que leva à mais uma vida destruída e mais desconfiança do sistema que deveria protegê-la. O que leva mais incerteza para a comunidade, e o que eventualmente à destrói por ser, como diz os noticiários, “violenta demais”. Nesse ponto de Serial, que se tornou um fenômeno por escavar à fundo para descobrir a verdade, ela parece inatingível.
Policiais mentem e juízes ameaçam, mas nada acontece. Serial maneja apresentar dois lados de uma guerra, mas os apresenta com seus devidos contextos — um deles, é um sistema centenário que preza em se auto-defender antes; e do outro são as pessoas que tem suas vidas destruídas pelo ódio que o outro propaga. E tudo remonta uma declaração que Koenig ouve já no primeiro episódio. Perguntado sobre a sentença de Anna, um juiz diz que “diferentes demografias percebem seu tempo na cadeia de forma diferente”. Para ele e Koenig, essa opinião sugere, uma noite na cadeia é devastadora, mas para “eles”, é apenas uma volta na praça. A implicação dessa fala assombra Koenig pelo resto da temporada: de que, para o sistema de justiça do país mais poderoso do mundo, as pessoas para que eles servem são diferentes. Aqueles que são presos e punimos, aqueles que cheiram, eles são espécies diferentes, com os sentidos entorpecidos e endurecidos.
“Eles não sentem dor ou medo, felicidade pela liberdade que tem e tristeza pela liberdade que perderam”. Koenig rejeita categoricamente essa explicação. Quando nós vemos o sucesso que é uma mulher ser presa por ter sido agarrada em um bar, Koenig termina o episódio com uma honestidade dolorosa. “Anna não sentiu o estresse e a raiva ou a vergonha desse caso menos do que eu. Eu acho que ela sentiu mais”. É uma pequena realização, a de que a pessoa no nosso lado também é humana, que sente e que sofre. Mas é essa, no final, a verdade que Serial está tentando buscar dessa vez. E talvez seja a única que precisamos nesse momento.
Você pode escutar Serial no site oficial ou no seu reprodutor de podcasts favorito.