“Remedial Chaos Theory” é o episódio mais importante de Community

Alguns episódios de nossas séries favoritas revelam tudo: sabe o que essa série faz de bom, e qual a fórmula pra fazer ainda melhor; entende o espaço que essa série ocupa no panorama da televisão; e oferecem algo novo, complamente novo — nos fazem ver aquilo que a gente ama com novos olhos, ao mesmo tempo que extrapola uma premissa à ponto de ressignificá-la. É uma tarefa gigante, mas alguns episódios conseguem. Na terceira temporada de Twin Peaks, uma temporada em si difícil de se classificar, a “Parte 8” talvez seja a melhor forma de resumir o que foi esse verdadeiro evento em forma de seriado. No clássico absoluto que é Família Soprano, “Long Term Parking”, examina a tragédia irreversível de seus personagens em um dos arcos mais brutais. Já na sua primeira temporada de Plantão Médico, “Love’s Labor Lost” vai definir o tom e o ritmo das quinze temporadas e mais de 300 episódios, bem como reestabelece toda a dinâmica de um hospital inteiro e nossa confiança nesses personagens em pouco mais de quarenta minutos.

Um episódio de um seriado de comédia precisa fazer isso na metade do tempo, e precisa redefinir a situação para que seu episódio seguinte ainda possa usar o mesmo ambiente, os mesmos personagens e as mesmas batidas que a comédia empregou. Ao mesmo tempo, esse episódio precisa ser significante, ele precisa mostrar, para seus personagens e para seu espectador, que algo mudou, que esse é um ponto de virada ou uma afirmação de algo novo. Em um seriado que sempre entendeu demais o que o fazia tão bem — a ponto de isso se transformar em um problema em alguns episódios — a tarefa de criar um episódio que pudesse resumir tematicamente e expandir emocionalmente Community parecia impossível, mas é exatamente isso que “Remedial Chaos Theory” (3x04) conseguiu fazer.

A primeira temporada de Community tinha um coração gigante, tanto por esses personagens quanto pela faculdade que eles estavam explorando, porque todos eram, em igual medida, pessoas que perderam tudo — ou que sequer encontraram algo. É 2009, a crise de 2008 ainda estava sendo devidamente compreendida, mas as suas cicatrizes são recentes, e tanto os estudantes quanto Greendale (a faculdade) não tem dinheiro pra coisa melhor, então todos precisam se contentar entre si. Era uma série de adversidades — os sete personagens principais precisavam vencer suas diferenças para conviverem juntos, até que se transformam em amigos inseparáveis — que olhava com carinho para uma situação quase desoladora, em que pessoas se reúnem em um lugar decadente porque elas também não tem perspectivas para um futuro.

Foi um sucesso instantâneo, e Community logo foi renovada para mais duas temporadas, mas o que Dan Harmon, o criador da série, queria e o que a emissora esperava eram duas coisas um tanto diferentes. O tom carinhoso e esperançoso, pontuado por momentos cínicos e um humor afiado, pareciam exatamente o que a NBC precisava para complementar uma grade já com Parks & Recreation e The Office. Dan Harmon e sua mesa de escritores pensava em algo diferente, e Community logo se transformou, na sua segunda temporada, em uma profunda comédia de conceito, que pegava Greendale e o grupo de estudos dos protagonistas para explorar justamente a dinâmica de pessoas que se unem porque não há nada melhor para elas. Em sua segunda temporada, Community fazia autoreferências por segundo, piadas de nicho que as vezes só seus próprios personagens conseguiam entender, e aprofundou uma vasta mitologia da própria faculdade. Pra quem queria uma diversão carinhosa e despretenciosa que uma sitcom de amigos proporcionava saiu correndo — Community queria proporcionar uma comédia de caça aos detalhes no nível de Lost, só que duas vezes mais rápido.

Imagem de Community

Para quem ficou depois da debandada de público na segunda temporada — provavelmente o ápice criativo da série —, a terceira temporada de Community buscou amadurecer os experimentos do ano anterior. Agora, toda essa mitologia de jogos terapêuticos de Dungeons & Dragons, castelos de cobertores à Game of Thrones e guerras de paintball gigantescas ia ser colocada em uma lupa, o que levou Community a se observar e entender mais de si mesma. O que culmina, já no quarto episódio, numa representação máxima do que Community significa para seu público, e como a série se forma a partir de seus sete personagens principais. “Remedial Chaos Theory” parece um episódio impossível de ter sido feito, mas observando o lugar que ele ocupa em Community é impossível ver a série crescer sem ele.

A premissa de “Remedial Chaos Theory” é simples: Troy e Abed estão se mudando para um apartamento, e chamam os outros integrantes do grupo para uma “festa” com pizza e Yatzee. O problema: o interfone não funciona, e quando a pizza chega um integrande do grupo precisa ir buscá-la. Jeff, que nunca quer fazer algo que ele não precisa fazer, cria uma solução: ele vai jogar um dado do Yatzee que eles nunca jogaram e o número vai identificar quem vai descer e pegar a pizza. Abed avisa, porém, que ao fazer isso Jeff vai abrir seis linhas temporais diferentes. Como de costume, Jeff não acredita na bobagem metatextual de Abed e, como de costume, Abed está certo.

Depois dessa premissa inicial, “Remedial Chaos Theory” se divide em sete linhas temporais diferentes, em que cada um dos integrandes do grupo precisa descer, e o que acontece com os que ficam. É então que o episódio mostra sua verdadeira força. Em cada uma das linhas, um integrante do grupo sai da equação, e os outros reagem à sua ausência. Alguns eventos são constantes: Britta, que tem uma empolgação além da conta pra tudo, vai sempre tentar cantar “Roxanne” do The Police, e Jeff vai sempre interrompê-la. Jeff, por sua vez, vai sempre bater no ventilador; Shirley vai sempre estar preocupada com suas tortinhas; e Pierce vai sempre tentar contar a história de quando ele transou no banheiro com Eartha Kitt (“veio naturalmente”).

Essas ações em comum nos orientam nas linhas temporais, mas os seus desfechos nos revelam o papel da pessoa que está ausente em manter a harmonia do grupo. A timeline da Annie, que serve principalmente pra nos apresentar à forma do episódio, revela uma amiga que sempre quer cuidar de seus amigos, mesmo que isso a coloque contra aquilo que é melhor pra ela (a série vai explorar isso mais na continuação natural desse episódio, a series finale “Emotional Consequences of Broadcast Television”); Shirley é uma “mãe”, mas como tudo em Community, é uma versão mais complicada de um clichê do gênero: a “mãe” do grupo está sempre furiosa com suas crianças, enquanto tenta guiá-las no que ela acredita ser o melhor para todos, enquanto eles se recusam enquanto estão preocupados demais com os problemas de jovens, mas secretamente adoram que tenha alguém que cuide deles — eles não querem comer as tortinhas que Shirley prepara em cada linha do tempo, mas Britta sem querer deixa escapar que elas são deliciosas. Pierce é o provocador do caos, que coloca os membros do grupo uns contra os outros enquanto tenta ser especial para alguém, porque ele realmente ama todos — o perigo de um amigo abusivo — sem perceber que isso os une mais enquanto se afastam dele; Britta é quem entende as dinâmicas entre os seus amigos e os aproxima por isso, mas é incapaz de encontrar ela mesma o seu papel nele, sem perceber que é uma peça chave nessa amizade; Troy é o anti-Pierce, que previne o caos do grupo ao fazer cada um satisfeito consigo mesmo como amigo; e Abed é o canalizador de todos para o público — que compreende tudo como um clichê de sitcom e que acaba fazendo seus amigos serem emocionalmente honestos uns com os outros. E Jeff, que é justamente quem divide esses amigos, é um novo Pierce: orgulhoso demais pra querer fazer parte da bagunça da vida de seus amigos, mas que não consegue evitar em querer ser essencial para eles como eles são para si.

Imagem de Community Caos reina.

É Jeff que interrompe Britta de cantar toda a vez, e de puxar os seus amigos para dançar e ter um momento de intimidade honesto e bonito, e é ele que precisa sair para buscar a pizza para que a noite do grupo possa ser feliz. Quando isso acontece, “Remedial Chaos Theory” encontra, em meio à ambição criativa herdada da segunda temporada, a honestidade emocional do primeiro ano. É um episódio emblemático que disseca a estrutura da série para revelar para o espectador como ela funciona, e então tirar dele uma reação emocional ainda mais forte ao ver esses personagens felizes entre si. É poderoso o momento em que Abed diz “não” para Jeff, porque é ali que um amigo limita o outro para que todos possam ser felizes. É o papel de amar e de fazer parte de algo,: permitir se amar e amar aos outros, o que significa ficar emocionalmente vulnerável à uma decepção inevitável. Mas quando a gente se permite isso, e é recompensado por pessoas que também estão dispostas à amar e que querem fazer parte de algo com você, os breves momentos de felicidade e união fazem valer a pena — é quando você entende o seu próprio papel, entende no que você precisa melhorar e o que te faz especial para as pessoas que são especiais à você. Sem querer parecer clichê aqui, é quando Jeff entende seu papel nessa comunidade.

“Remedial Chaos Theory” faz tudo isso em vinte e poucos minutos, ao mesmo tempo que entrega piadas em um ritmo frenético que só Community consegue, graças à sua autoreferência constante. A estrutura temporal do episódio permite que as piadas sejam todas criadas na introdução, mas que suas punchlines se espalhem pelas linhas temporais, enquanto essas próprias linhas alimentam as piadas umas das outras. É uma construção genial que não só entrega uma das melhores análises de como se estrutura uma sitcom e como essa série em específico funciona, mas que permite um ritmo de humor que está sempre crescendo e se retroalimentando. Assistir “Remedial Chaos Theory” é presenciar um lapso de genialidade pura, o que fica mais evidente quando você percebe o quão claro e direto ele é: existe uma linha emocional que está sempre progredindo nessas idas e vindas temporais, o que torna a virada final em uma pequena catarse como seria comum em Community nas suas primeiras temporadas: perceber o que esses amigos estão fazendo entre si, vendo que eles também perceberam, e tentando melhorar para o futuro. É honesto porque nem sempre vai ser possível, mas esses amigos se amam demais para desistir.

Community iria dissecar “Remedial Chaos Theory” nas suas três temporadas seguintes. O próprio episódio seria citado no finale, que segue uma estrutura e premissa similares, mas é esse episódio que consegue capturar a honestidade emocional do seu primeiro ano e uní-la à genialidade formal do segundo em um episódio que é, ao mesmo tempo, tematicamente rico e emocionalmente poderoso. Porque a felicidade na cena final do episódio é igualmente significativa para seus personagens e para o espectador, “Remedial Chaos Theory” nos aproxima à essa comunidade que é, por algum motivo, especial para nós tanto quanto é especial para os personagens que amamos. Não é só o melhor episódio que Community conseguiria fazer, é uma das melhores meia-hora que a TV poderia nos proporcionar.