Onde Vivem os Monstros é uma obra-prima sobre a infância

Carol é grande e tem a voz esganiçada, Alexander tem um nariz ranhoso, Ira e Judith estão apaixonados um pelo outro, o Touro é quieto e assustador, e KW tem um olhar doce e cabelos ondulados. Todos eles são peludos, só alguns tem chifres, outros tem rabos longos e dentes pontudos. Mas tem um que é pequeno e não tem pelos. Ele veste uma roupa de lobo e apareceu no meio desses monstros depois de brigar com sua mãe e fugir de casa. Esse é Max, e os outros monstros o chamam de rei.

Max, interpretado aqui pelo novato Max Records, é o protagonista de Onde Vivem os Monstros, um filme intensamente original e maravilhoso. Depois de uma produção complicada que demorou anos e refilmagens e rumores, o projeto — a adaptação de um livro infantil composto por um punhado de frases e imagens lindas — ganhou vida e uma crueza emocional nas mãos de Spike Jonze, um diretor que já tinha mostrado histórias esquisitas com uma crueza emocional inusitada em Quero Ser John Malkovich e Adaptação. Com Onde Vivem os Monstros, Jonze expande e detalha o mundo do autor Maurice Sendak no que pode ser o seu filme mais complexo e mais adorável até aqui. Uma jornada pela infância com a empolgação, a fúria e a melancolia de uma criança.

No livro de Sendak, publicado pela primeira vez em 1963 nos EUA (e só em 2009 no Brasil), Max também apronta e sua mãe o manda de castigo para o quarto sem jantar, mas o quarto se transforma numa floresta e lá ele pega um bote e alcança a ilha das criaturas selvagens, que o tornam rei. Todos os monstros tem fome, e Max acaba cansando das brincadeiras e deseja voltar “para um lugar que gostem dele de verdade” e pega o bote de volta para a casa, onde o jantar (“ainda quente”) o espera.

Os monstros de Sendak podem ser (e foram) interpretados de várias maneiras, mas Jonze, que escreveu o roteiro com o badalado autor Dave Eggers, evita esse caminho e prefere algo mais honesto. Em sua adaptação, ele expande essas criaturas e as deixa tão reais quanto Max acredita que elas sejam. Onde Vivem os Monstros ainda é a história de um garoto, sua mãe, seu quarto e dos vários monstros que ele criou; mas Jonze dá mais material para explorarmos essa história, mais detalhes para complementar quaisquer interpretações que damos aos monstros do livro, como uma irmã mais velha, Claire, cujo cabelo ondulado e o olhar cansado são vistos também na mais dócil dos monstros, KW.

Onde Vivem os Monstros abre com Max correndo atrás do seu cachorro escada abaixo, seguido por uma câmera de mão que mal consegue acompanhá-lo em quadro; mas depois de abrir a sua história com uma agitação desorientadora, Jonzr estabelece uma melancolia que perdura o filme inteiro em um interlúdio que nos revelará tudo o que precisamos saber sobre o garoto e anuncia o que acontecerá no resto do filme. Essas cenas iniciais são íntimas e carinhosas. Jonze, trabalhando com seu diretor de fotografia Lance Acord, nos aproxima de Max enquanto ele constrói um iglu, começa uma guerra de bolas de neve com os amigos de Claire e é deixado chorando quando seu iglu é destruído — e quando Max entra no seu iglu para fugir dos amigos de Claire, a câmera está junto com ele quando a neve vem abaixo. O mundo é cruel, e Max também. Ele enfrenta sua mãe, que o enfrenta de volta. Ele se enfurece e então sai correndo pela noite, sem rumo e sozinho.

Solidão é o sentimento que perdura no livro de Sendak, um tom sombrio e quase macabro que levou o livro a ser banido em diversas escolas dos EUA. É também o norte da adaptação de Spike Jonze, um diretor especialmente atencioso para a nossa solidão interna — seja na de um roteirista (Adaptação) ou na de um casal (Ela). As criaturas de Jonze são perfeitas nessa intensidade emocional. Jonze às trouxe a vida através de atores fantasiados com roupas gigantes e pesadas, cobertas de pelos e chifres e garras mas com expressões reais demais: os olhos de Carol tremem para não chorar, a boca de Judith luta com ela mesma para xingar outra pessoa; e as vozes — James Gandolfini dá saudade com seu Carol — expressam o que precisamos saber. Todos estão juntos ali, mas todos estão sozinhos porque não entendem o outro muito bem.

Quando Max conhece os monstros na ilha eles estão destruindo suas casas em fúria e com fome, muito como Max gostaria de fazer. Eles se apresentam, consideram devorá-lo mas acabam nomeando-o rei e, no meio do esplendor dessa floresta primitiva, cheia de texturas e sujeira, ele anuncia “que a bagunça comece!”. É tudo novo e assustador, mas Jonze filma tudo com uma familiaridade peculiar. De alguma forma, tudo ecoa aquele início íntimo de Max em casa e na escola. Lentamente a empolgação, a raiva, as lágrimas e a solidão daqueles minutos iniciais do filme acabam entrando e dominando os monstros e a ilha, muito como nossa vida alimenta nossos sonhos. A guerra de neve com os amigos de Claire se transforma em uma guerra de lama seca com os monstros, e Max, que era a criança raivosa, precisa agora lidar com crianças raivosas sozinho.

Carol coloca flores no casco de sua nova casa

Seria fácil demais se esse início de Onde Vivem os Monstros, que pontuam todo o restante do filme, definissem a sua relação com os monstros, que ele agora teria que lidar “com ele mesmo”, mas agora como pai ao invés de ser o filho. A genialidade de Spike Jonze é em complicar qualquer leitura que possa ser feita nas criaturas de Sendak ao dá-las nuance e expressão. Nenhuma leitura é certa o suficiente ou se encaixa perfeitamente nessa ilha. Jonze filma Max ouvindo uma briga entre Carol e KW brigando, com uma discussão que ecoa a de um casal divorciando, mas Carol não é um sentimento de Max; e KW não é uma representação de sua mãe. Eles não são representações exatas das emoções de Max, nem das pessoas à sua volta, nem nada muito certo. Elas são tudo ao mesmo tempo, bem como uma criança cria e sente, e esse entendimento de que nada é muito exato e nada se encaixa como deveria — que a família que a gente cresce também é falha e imperfeita, e vai eventualmente partir o nosso coração — é o que eleva Onde Vivem os Monstros de uma adaptação de livro infantil à uma exploração, belíssima, de como a infância é misteriosa (Michael Sicinski escreveu uma linda análise sobre como o filme lida com o divórcio, inclusive).

Jonze é um mestre em entender a complexidade da nossa condição humana, explorá-la e mesmo assim mantê-la no mistério da nossa existência. Muito é deixado sem explicação na sua adaptação de Onde Vivem os Monstros, principalmente a melancolia que cerca Max. Mas a infância é repleta de mistérios, seja para uma criança ou para o terapeuta dela. Em uma cena, quase que hilária se não fosse assombrosa, um professor explica casualmente para as crianças como o Sol, antes de morrer, vai explodir e sugar a Terra em uma bola de fogo. É um misto de terror e fascinação que percorre o rosto de Max ouvindo isso. A ideia de que uma bola de fogo gigante vai surgir, mas também o sinal de que esse é o fim da existência. Essa explicação vai perdurar na cabeça de Max durante boa parte do filme, em um silêncio que se pode sentir. É nesses momentos quietos, de um monstro cruzando o deserto sozinho ou uma mãe observando o filho comer o bolo de chocolate, que Onde Vivem os Monstros mostra como é todo feito de Max, e à ele deve a dúvida e a estranheza e a beleza e a melancolia. Enquanto ele atravessa o mar rumo ao desconhecido, Jonze filma Max em um close grandioso, como se Max fosse tudo o que importa pra ele mesmo; e então corta para o quão pequena essa criança é na vastidão silenciosa e furiosa do mar. Aí está, simples e sem alarde, a nossa condição humana.


Você pode alugar ou comprar Onde Vivem os Monstros no iTunes, YouTube, e Google Play. O filme também está disponível em blu-ray.